110 anos de José Nogueira Machado, SJ: Um Padre jesuíta do Cariri cearense, tradutor de Hegel

Francisco José da Silva

Professor Adjunto do curso de Filosofia (UFCA) e Coordenador da Licenciatura em Filosofia (UFCA)

26/06/2024 • Coluna ANPOF

Introdução

A tradução da obra de Hegel é uma empreitada que exige um profundo conhecimento não apenas da língua alemã, mas acima de tudo de sua filosofia e dos debates filosófico-científicos de sua época. Dentre as principais obras do filósofo alemão, a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830), por exemplo, nos dá uma visão da amplitude e complexidade de seu sistema, cuja pretensão é abarcar a totalidade.

O segundo volume da Enciclopédia de Hegel aborda um dos temas mais instigantes do período do Idealismo Alemão, a compreensão especulativa da Natureza ou Filosofia da Natureza. Assim, Hegel abarcando o saber de sua época e dialogando com diversas correntes do pensamento científico sobre a Natureza, elabora uma nova compreensão dialética desta. Embora seja considerada uma das partes do sistema hegeliano que receberam menos atenção e maiores recusas, esse texto traz uma importante contribuição para o entendimento do pensamento hegeliano em seu todo.

Nessa breve comunicação, rendemos nossa homenagem à vida e legado de um dos principais tradutores da obra do filósofo de Stuttgart entre nós, Padre José Nogueira Machado, S.J., um hegeliano do Cariri cearense que neste de ano 2024 completaria 110 anos (1914-2024). Pe Machado realizou a tradução do segundo volume da Enciclopédia (Filosofia da Natureza) e colaborou na tradução segunda parte da Fenomenologia, em parceria com outro cearense, Pe Paulo Meneses, S.J., legando uma contribuição duradoura e inestimável aos estudos filosóficos no Brasil.

Vida e obra de José Nogueira Machado

José Nogueira Machado nasceu em 04 de agosto de 1914, em Caririaçu (no sítio Farias, entre Juazeiro do Norte e Crato) no Ceará. Filho de José Pereira Melo e Ana Machado, prósperos agricultores que com frequência eram vítimas do bando de Lampião. Neste sítio passou a infância com mais cinco irmãos. Sua mãe cuidou dele até os quinze anos, confiando sua educação aos Jesuítas. José Machado estudou filosofia em Braga (Portugal), matemática e física na Sorbonne (França), e se destacou resolvendo problemas matemáticos considerados insolúveis. Na França estudou com o famoso físico Louis de Broglie (1892-1987)[1], um dos criadores da mecânica quântica.

Neste período, ordenou-se jesuíta no Rio Grande do Sul em 1946, onde estudou teologia, em seguida esteve em missões acadêmicas no Nordeste. Em 1953 transferiu-se para o Recife, posteriormente em 1964, com o golpe militar, foi expulso do Recife considerado subversivo, já que colaborava com Dom Hélder Câmara e no ano de 1979 foi nomeado Provincial dos Jesuítas da Região Nordeste Setentrional.[2].

Dedicou-se à Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)[3] e foi professor na Universidade Regional de Campina Grande (Paraíba). Esteve por alguns anos no Piauí, organizando e reforçando, a pedido da SUDENE, a Universidade Federal do Piauí (UFPI), orientando seus melhores alunos para cursos de pós-graduação. Pe. Machado também atuou como professor da Escola Politécnica de Pernambuco. Sua notável atuação lhe rendeu o título de Professor Honoris Causa daquela instituição. Colaborou com a UFPE quando nela se iniciou a pós-graduação em Física e no ensino do Eletromagnetismo na graduação do Departamento de Física[4], além de se envolver com pesquisas e discussões na área da Física e da filosofia científica.

Pe. Machado foi um homem de extensa e profunda cultura, uma pessoa humilde, afável e piedoso. Na Física discutiu com o Professor Hélio Coelho alguns aspectos do princípio da indeterminação de Heisenberg e, posteriormente, publicou um artigo na Revista Symposium da UNICAP (1980), sob o título Determinismo e Indeterminismo na ciência. Publicou ainda artigos sobre equações diferenciais. Em 1989, enviou um artigo para a revista Veja (15/03/1989, página 1) sobre os erros da tradução brasileira do livro Uma Breve História do Tempo, do físico e escritor inglês Stephen Hawking (1942-2018).

Residiu durante algum tempo na casa dos jesuítas em Beberibe, Olinda, e lá se dedicou a cultivar frutas. Era considerado um homem feliz e humilde, no espírito de um ser dedicado ao Cristianismo. Faleceu em Recife no dia 31 de outubro de 1996, em um acidente fatal ao ser atropelado por um ônibus nas imediações do Colégio Nóbrega.

A tradução da Filosofia da Natureza de Hegel (Enciclopédia 1830)

O interesse científico de Pe. Machado entendia-se à exegese bíblica, à etimologia, à história da Igreja, à história universal e à filosofia, além das ciências naturais, como Física, Astronomia e Matemática. Conhecia dez idiomas (além do Português): Latim, Hebraico, Grego, Francês, Alemão, Inglês, Italiano, Árabe, Russo, Tupi e Esperanto[5].

Nos últimos anos de sua vida dedicou-se, juntamente com o Professor Pe. Paulo Meneses, a traduzir do alemão para o português a Fenomenologia do Espírito (1807) e a Filosofia da Natureza (2º volume da Enciclopédia) de Hegel. Foi um trabalho árduo e difícil, pois como dizia o Pe. Meneses, “a maior dificuldade foi o entendimento exato do pensamento de Hegel, e em seguida foi vertê-lo para um português acessível e bonito[6]. No primeiro trabalho, a Fenomenologia do Espírito, colaborou com a tradução do 2º volume da obra; já no segundo, Enciclopédia das Ciências filosóficas, dedicou-se aos três volumes como colaborador, sendo responsável pela tradução do segundo volume, Filosofia da Natureza.

A Filosofia da Natureza, como já dito acima, encontra-se no segundo volume da Enciclopédia e abarca uma gama imensa de questões que incluem a Física, a Química e a Biologia, refletindo as principais teorias da natureza à época do filósofo[7], como, por exemplo, a teorias da gravitação universal, a teoria de Lamarck sobre as mutações nas espécies, o conceito de vida, etc. Sobre a tradução do volume sobre a Filosofia da Natureza feita pelo Pe Machado, nos esclarece Paulo Meneses (em entrevista a IHU online): “Foi Pe Machado que traduziu a Filosofia da Natureza porque, na opinião do Pe Vaz, era única pessoa no Brasil capaz de fazê-lo (por conhecer tanto a filosofia, como a ciência e sua história). Eu colaborei a cada etapa, como ele mesmo reconheceu na sua introdução” (edição 217, 30 de abril de 2007).

Essa versão também é confirmada na nota do tradutor da edição do segundo volume da Enciclopédia das Ciências filosóficas em compêndio (1830), nela Pe José Machado nos informa sobre a característica de sua tradução: “Essa tradução tenta antes ser literal que livre. O que pode conservar ou aumentar um tanto a dificuldade da compreensão, mas diminuindo o risco de uma compreensão desviada. Há centenas de anos foram assim traduzidas inicialmente do grego, por exemplo, para um estranho latim, muitas expressões fundamentais sobre religião, ciência, filosofia” (HEGEL, 1997, p.09).

Assim, Pe Machado nos deixa cientes das dificuldades sobre suas escolhas e limitações na tradução desta obra, que por seu caráter específico agrega conceitos da obra hegeliana àqueles específicos da Ciência e da Filosofia da Natureza, uma área que tinha encontrado sua expressão mais peculiar nos filósofos Kant e Schelling. Seu trabalho dedicado e rigoroso foi fundamental para a realização da tradução que hoje temos em mãos.

Considerações finais

Consideramos de suma importância fazer referência à vida e ao legado do Padre José Nogueira Machado, SJ, que muito contribuiu com os estudos filosóficos ao trazer a lume a tradução de uma das obras mais difíceis de Hegel, não apenas do ponto de vista da temática em si, mas principalmente pela necessidade de um domínio profundo do conhecimento científico da época do filosofo alemão (como já enfatizara Lima Vaz).

Por essas razões, Pe José Machado merece nossa homenagem, pela sua atuação em defesa da ciência, por seu legado à filosofia e, em especial, aos estudos hegelianos, os quais no Ceará tem tradição consolidada, a qual teve sua origem nas primeiras traduções de Hegel em língua portuguesa por tradutores e pesquisadores cearenses: Lívio Barreto (1936), Djacir Menezes (1969), Paulo Meneses e José Machado (1992/1997). A eles rendemos nosso reconhecimento e agradecimento.


Referências bibliográficas

HEGEL, GWF. Fenomenologia do Espírito (2 volumes). Tradução Paulo Meneses e Karl Heinz Efken, com a colaboração de José Machado (volume 2), Petrópolis, Vozes, 1992.

____ Enciclopédia das ciências filosóficas em epitome (1830), vol.II – Filosofia da Natureza. Tradução José Machado e Paulo Meneses, SP, Loyola, 1997.

____ Enciclopédia das Ciências filosóficas. Tradução Lívio Xavier, RJ, Athena, 1936.

LIMA VAZ, Henrique Claudio de. A formação do pensamento de Hegel. SP, Loyola, 2014.

MENEZES. D. Hegel: Textos Dialéticos. RJ, Zahar, 1969.

SILVA, Ascendino F.; GALINDO, Marcos; PESSOA JR, Osvaldo F; FILHO, W.V. História da Física no Recife. Recife, Editora CEPE, 2022.

SANTOS, Carlos A. Pesquisa em Física no Recife: um caso de sucesso brasileiro. In: Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 45, 2023.

UTZ, K; SOARES, Marly C; BAVARESCO, A. A Noiva do Espírito: A Natureza em Hegel (V Congresso da Sociedade Hegel Brasileira). RS, Edipucrs, 2010


Notas

[1] Louis de Broglie (1892-1987), foi um físico francês que contribuiu para a formulação da teoria da mecânica quântica.

[2] Dom Helder Câmara (1909-1999), cearense, bispo católico e arcebispo emérito de Olinda e Recife. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e grande defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar. Pregava uma Igreja voltada para os pobres e a não-violência. Por sua atuação, recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais. Foi o brasileiro por mais vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz (quatro indicações).

[3] A Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) teve início com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manoel da Nóbrega, em 18 de abril de 1943, e sua formalização como universidade se deu em 27 de setembro de 1951, a partir da agregação de unidades preexistentes.

[4] SANTOS, Carlos A. Pesquisa em Física no Recife: um caso de sucesso brasileiro. In: Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 45, 2023.

[5] Em sua estadia em Paris dirigiu um congresso de Esperanto.

[6] IHU (Instituto Humanitas Unisinos) online, edição 217, 30 de abril de 2007.

[7] Sobre o tema da Natureza em Hegel, conferir a coletânea do V Congresso da Sociedade Hegel Brasileira: UTZ, K; SOARES, Marly C; BAVARESCO, A. A Noiva do Espírito: A Natureza em Hegel. RS, Edipucrs, 2010


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

DO MESMO AUTOR

160 anos de nascimento do filósofo Farias Brito

Francisco José da Silva

Professor Adjunto do curso de Filosofia (UFCA) e Coordenador da Licenciatura em Filosofia (UFCA)

05/07/2022 • Coluna ANPOF