160 anos de nascimento do filósofo Farias Brito

Francisco José da Silva

Professor Adjunto do curso de Filosofia (UFCA) e Coordenador da Licenciatura em Filosofia (UFCA)

05/07/2022 • Coluna ANPOF

Introdução 

A filosofia deitou no Ceará raízes profundas. A Terra do Sol teve um filósofo que pode ser considerado um dos mais importantes, autênticos e mais originais filósofos brasileiros, Farias Brito. Raimundo de Farias Brito nasceu em 24 de Julho de 1862 em São Benedito (CE), fez seus primeiros estudos em Sobral, mas com a seca de 1877 muda-se com a família para Fortaleza, completando o curso secundário no Liceu do Ceará (neste ínterim dava aulas particulares a colegas); foi a Pernambuco cursar Direito na Escola do Recife, onde ensinava o polêmico Tobias Barreto (1839-1889). Após a formatura, em 1884, regressou ao Ceará atuando como promotor em Aquiraz. Fez parte de agremiações literárias importantes do final do século XIX no Ceará, como o Clube literário (1886-1887), publicando artigos e poemas na revista A Quinzena

Entre suas principais publicações destaca-se A Finalidade do Mundo (1895-1905), em três volumes: I. A filosofia como atividade permanente do espírito, II. Os dois grandes métodos da filosofia moderna, e, III. Teoria da finalidade. Farias Brito então viaja ao Pará, atuando como advogado, promotor e professor da Faculdade de Direito de Belém. Em 1909 vai definitivamente para o Rio de Janeiro e ali faz concurso para professor de Lógica no Colégio Pedro II, tirando o primeiro lugar, mas só assumindo depois da morte de Euclides da Cunha (autor de Os Sertões), que fora selecionado por influência política. Farias Brito publicou ainda A verdade como regras das ações (1905), A Base Física do Espírito (1912) e O Mundo Interior (1914), restando um volume com Inéditos e Dispersos. Faleceu o filósofo em 16 de Janeiro de 1917. 

Em sua homenagem a cidade de Quixará no Cariri cearense passa a chamar-se Farias Brito, no ano de 1953. Outras homenagens são feitas no Ceará, tais como o nome de uma organização educacional privada (Colégio e Faculdade Farias Brito) e diversos monumentos (na cidade de São Benedito e Fortaleza), e no Pará através da série “Farias Brito” (coleção Amazônica da Universidade Federal do Pará) com a tradução dos Diálogos de Platão organizada por Bendito Nunes.     

A época e o pensamento de Farias Brito

O panorama filosófico de sua época (final do séc. XIX) envolve diversas correntes de pensamento que se debatiam entre as questões científicas, morais, políticas e estéticas advindas das filosofias de Hegel, Schopenhauer, Comte, Spencer e Bergson, que estavam num impasse diante do cientificismo positivista e do espiritualismo metafísico. A Europa vivia um clima de transformações decorrentes do capitalismo industrial, dos avanços científicos, da independência das colônias e da secularização, enquanto no Brasil as elites se dividiam entre a manutenção do Império, a abolição da escravatura e a instauração da República. 

A escola de pensamento predominante no cenário filosófico nacional era o Positivismo de Augusto Comte (1798-1857). Uma de suas principais características é ser uma ideologia cientificista que desacreditava todos os conceitos metafísicos e postulava a ciência empírica como única forma válida e legítima de explicar o real e possibilitar o seu controle, postulando o princípio de “ordem e progresso”. Essa filosofia reforçava a crítica ao tradicionalismo católico que tanto atravancava o desenvolvimento do país com seu conservadorismo, paralelamente a questão religiosa que surge no fim do século XIX, acirrando a oposição entre Igreja Católica e Maçonaria. 

Como crítico do Positivismo, Farias Brito enfatizava entre suas desvantagens a de ter suprimido a Filosofia do ensino básico, como ele constata decepcionado: “O que se quer, são obras que produzam resultado material; o que se exige, são trabalhos que resultem vantagens pecuniárias. E este modo de pensar, principalmente depois que começou a desenvolver-se no Rio, o Centro Positivista, tem se tornado tão geral que chegou a predominar nas classes diretoras da sociedade, influindo mesmo sobre o governo. É assim que depois que foi proclamada a República, em consequência do movimento de 15 de novembro, o governo revolucionário que se estabeleceu em seguida, sob a direção do Marechal Deodoro da Fonseca, começou a sua obra de reconstrução suprimindo o ensino oficial da filosofia” (GALEFFI, 1979, p.13).

Farias Brito rompe com essa visão cientificista e reducionista que é, em seu fundamento, oposta à Filosofia. Para ele, a Filosofia seria um saber universal que busca responder aos problemas fundamentais da existência humana, por isso muitos comentadores de sua obra consideram-no um dos precursores do existencialismo no Brasil (GUIMARÃES, 1979). Para o filósofo cearense, a Filosofia tem uma tarefa superior e não pode ser confundida, nem reduzida à mera constatação empírica dos fatos, ela é teoria (contemplação da verdade) e prática (orientadora de nossas ações). Neste sentido, há em Farias Brito uma revalorização da Metafísica a partir de uma perspectiva existencial, pois como sabemos muitos fatos marcantes em sua vida colaboraram para que ele se voltasse para estas questões. 

Os principais temas tratados na obra de Farias Brito decorrem de sua experiência trágica da vida, em especial diante do sofrimento vivenciado no enfretamento da seca e da varíola, que tantas mortes causaram no fim do século XIX em todo Nordeste, além disso, podemos destacar a experiência da morte que foi vivida de perto por ele e que o marcou profundamente, basta lembrar a morte de seu pai, de sua primeira mulher, de um filho e de um parente próximo. No início de sua obra A Finalidade do Mundo, ele destaca essa questão da morte como ponto de partida de seu filosofar, citando inclusive a afirmação socrático-platônica de que “filosofar é aprender a morrer” (Fédon). Segundo o filósofo cearense: “Em nossas relações ordinárias, no exercício comum de nossa atividade, vivemos sempre como se nunca tivéssemos de morrer, consideramos as coisas como se nossa vida tivesse de ser eterna, mas nisso somos vítimas de uma ilusão permanente” (GALEFFI, 1979, p.31).

Essa concepção trágica segue a trilha de Schopenhauer, diríamos que, para Farias Brito, “a filosofia tem na morte sua musa”, pois a condição humana reflete a miséria e a dor que tem seu fim nesta, é nela, pois que a vida encontra seu sentido. Segundo Farias Brito: “Quando se diz de um corpo que se move: - ele vive – logo se pode acrescentar: - morrerá. Morte – eis a verdade suprema. Morte – eis a palavra terrível com que facilmente se poderá abater o orgulho dos poderosos do mundo, indo tudo fatalmente terminar na lúgubre sentença: - vaidade das vaidades, tudo vaidade. Omne vivum in pulverem” (GALEFFI, 1979, p.14).

Em suma, a Filosofia para Farias Brito é concebida como uma atividade permanente do espírito, ou seja, uma “philosophia perennis”, que se divide em pré-científica, enquanto busca da verdade, e pós-científica, ao estabelecer os princípios de orientação do agir na Moral, na Política e no Direito. Em tempos de crise ecológica sua visão da Natureza merece destaque, uma vez que era pensada como um todo cujo telos é alcançar a autoconsciência, o que ele denominava de Metafísica naturalista. Em sua abordagem, Farias Brito busca entender o sentido da vida e a finalidade do mundo. Seu legado abarca ainda a reflexão sobre a Moral, a Arte (em especial a Poesia), o Direito e a Religião. Enfim, para ele, a filosofia busca o Bem, sua atividade produz a Ciência, esta por sua vez conduz à verdade, que nos permite uma visão do todo e nos orienta em nosso agir, e, por fim, a uma visão quase mística da realidade que o levou a um sonho no qual teria compreendido a natureza de Deus como Luz (BRITO, 2012/vol. II, p.16). 

Considerações finais

Farias Brito teve como destino elevar a especulação filosófica no Brasil a um patamar ambicioso, pois foi o primeiro filósofo brasileiro a travar diálogo crítico com os sistemas filosóficos europeus e ousar uma interpretação própria da realidade contra as opiniões já reconhecidas. Criticado por uns e elogiado por outros, nosso filósofo fez com que a filosofia não se enclausurasse na academia e ao mesmo tempo não se limitasse apenas a repetição do que se escrevia na Europa, contribuindo, mesmo que modestamente, para um filosofar ousado e autêntico, que não foi empreendido por nenhum de seus críticos. 

Farias Brito merece o nosso reconhecimento como filósofo que teve como inspiração primordial uma busca quase religiosa de verdade, movido por um amor sincero para além das escolas e correntes de pensamento da "moda". Por essas razões, celebramos os 160 anos de seu nascimento, cuja vida e dedicação à causa da Filosofia nos remete a desafiadora divisa kantiana, sapere aude, ouse saber!


REFERÊNCIAS

BRITO, R.F. A Finalidade do Mundo. 3 vols. Brasília, Senado Federal, 2012.

_____ A verdade como regra das ações. Brasília, Senado Federal, 2005.

_____ O Mundo Interior. Brasília, Senado Federal, 2006.

_____ A base física do Espirito. Brasília, Senado Federal, 2006.

CARVALHO, L.R. A formação filosófica de Farias Brito. SP, Ed. Universidade de São Paulo, 1977.

GALEFFI, G.M (Org.). Farias Brito, Antologia. Edições GDR, 1979.

GUIMARÃES, Aquiles Cortes. Farias Brito e as origens do existencialismo no Brasil. RJ, Tempo Brasileiro, 1979.

KLEIN, A.C. Farias Brito. Fortaleza, Demócrito Rocha, 2004.

RABELLO, S. Farias Brito ou uma aventura do espirito. RJ, Civilização Brasileira, 1967.

DO MESMO AUTOR

110 anos de José Nogueira Machado, SJ: Um Padre jesuíta do Cariri cearense, tradutor de Hegel

Francisco José da Silva

Professor Adjunto do curso de Filosofia (UFCA) e Coordenador da Licenciatura em Filosofia (UFCA)

26/06/2024 • Coluna ANPOF