A astúcia da arrogância

Eduardo Novaes

Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia

09/02/2024 • Coluna ANPOF

Wittgenstein: If a man says to me, looking at the sky, 'I think it will rain, therefore I exist, ' I do not understand him.
Pritchard: That's all very fine; what we want to know is: is the cogito valid or not?
(Ray Monk, Wittgenstein: The duty of genius)

História filosofante da filosofia, filosofia da história da filosofia ou simplesmente história da filosofia nunca se encontraram em tão porto-seguro em um único parágrafo que nos embebe e dá epígrafe a confrades com trajes semelhantes em uma mesma mesa. Na súmula do jogo que jogam estão, no cálculo geral da configuração particular de ver a questão, duas fronts: aquela que enamora o postulado tético na contrafação crítica e a sua antípoda que parece ser, não saibamos ao certo, pois é preciso duvidar da crença, porém não da ideia, que envolve um ato de confiança cega na certeza contida no conteúdo da crença, a leitura que distancia vivência de existência. Pode a constatação subvencionar a predicação de existência da ipseidade? - pergunta-se Wittgenstein, enquanto Pritchard, um senhor de idade graduando da Cornell University, em Ithaca, Estados Unidos da América, com os muitos ouvintes de Oxford, pergunta apenas se o cogito é um argumento válido. Segundo relata Ray Monk em sua biografia de Wittgenstein, a resposta do autor do Tractatus à questão foi vista como claro exemplo de arrogância do já famoso filósofo austríaco de Cambridge, em meio à presença forte da história no peso lógico do currículo acadêmico em Oxford.

Que tudo se resolva em Sobre a certeza, disso já sabemos. Que não somente Moore seja mobilizado, que não somente o estatuto filosófico do realismo seja mitigado e o idealismo desmerecido, disso depende a minha tese que, por favor, não me furtem o recorte dessa apresentação. Brincadeiras à parte, o que o título do nosso texto apresenta será aquele esforço de sistematizar o tempo histórico interno ao tempo lógico externo, particulares na estrutura da obra de Wittgenstein; em outras palavras, vivência ética contra coerção moral, o bem contra mal, a filosofia do primeiro Wittgenstein daquele segundo Ludwig em um único voo. A tese que nos importa, que malgrado fez Martin Heidegger emudecer a segunda parte d’Ser e Tempo é que não há palavras que explicite o significado da vivência sem que a pergunta pelo histórico da palavra nos encaminhe à questão filosofante que nada fundante implica – e é assim que a questão da constatação fática do ôntico encontra o grande muro de Berlim da linguagem e o seu respectivo sistema de gravitação entre a crença e a ideia, o traço do juízo ante as imagens. Desconstruir o significante nessa cruz lógica entre a ausência sensível de um gesto indiciário e a presença inteligível do comando regrado, então, significa perguntar pela fundamentação lógica do fundamento.

Imaginemos a seguinte situação: imagine que a nossa lei de causalidade exponha o que é dado à percepção e o seu mecanismo de discernimento ontológico de sucessão regressiva, com o objeto de atomizar a expansão de uma semântica da predicação, na progressiva e contínua eventualidade daquilo que antes percebemos atualmente como efeito. Virtualmente considere, então, que nós termos conhecimento direto do mundo através do agir indiscriminado em divorciar uma convenção da causalidade do nosso mecanismo potencial de mundo com uma substância formada por estados de coisas, nesse caso, coexistentes. É como se todas as jogadas possíveis do xadrez estivessem presentes num mesmo momento de criação. Envergonhado por não haver fenomenologia para Wittgenstein, o empirista radical, que apelida sensível com ‘percepção’, padeceria do mesmo dogma do qual é militante revés e as filosofias que partilham disso que converge chamar, muito aquém de uma simples aprendizagem semântica de prioridade alternativa à unilateralidade, de percepção dogmática dos jogos sensíveis. É assim, por exemplo, que em carta endereçada a John Locke, apresenta Molyneaux um monolito tão atual quanto o jornal de amanhã:

Suponha um homem, nascido cego e agora adulto, que aprendeu pelo toque a distinguir entre um cubo e uma esfera do mesmo metal e do mesmo tamanho, de modo a dizer, quando ele sente uma ou outra, qual é o cubo e qual é a esfera. Suponha então que o cubo e a esfera sejam postos sobre uma mesa e o homem cego possa agora ver. Pergunta: Se apenas por sua vista, antes de tocá-las, ele poderia agora distingui-las e dizer qual é o globo e qual é o cubo?

Não. Pelo pensamento ele obteve a experiência de como um globo ou como uma esfera afetam seu toque. Entretanto, ele não alcançou a experiência de saber que o que afeta seu toque assim ou assado deve afetar sua visão assim ou assado…

A resposta de Molyneaux é, antes mesmo de constituir-se como um problema, uma negação ao problema, pois a premissa teórica do experimento mental é, desde o início, a percepção, sem que a intermediação do tato seja um termo distribuído na conclusão. Vemos, pois com os olhos voltados à face da mente, mais com a nossa consciência que com as nossas mãos, que, dentre os órgãos dos sentidos, aliás, discerne muito mais que a visão. A questão da harmonia de uma aprendizagem da técnica de perceber essa realidade alternativa à imagem de mundo habitual tampouco é recalculada em sua lógica geral. Muito pelo contrário, ela é pressuposta, no sentido de uma cisão, pelo tato que na circunstância é logicamente a pele de uma decisão: o valor epistemológico da percepção. A passagem, então, do mecanismo de produção do conhecimento para a constatação não podia ser, para Molyneaux, o adestramento em uma aprendizagem contínua, aberta à reparação, como supõe os nossos jogos de linguagem, nem tampouco a pergunta pela questão do fundamento do discernimento sensível entre o cubo e uma esfera. A questão, pois, das passagens de recondução de um ocaso para a constatação da verdade de um fato dinâmico é a ausência do caso na ordem das provas à constatação da situação discriminada, do seu valor filosófico à história regular de nossas vinculações de conhecimento através de causa e efeito sucedâneos ao ilegítimo problema se é ou não válida a ilação interna entre a história das peças contidas no jogo de linguagem e a cultura do agir segundo regras silenciadas na circularidade do agir.

Para concluir, a constatação da verdade não pode situar a verdade da existência pois faz parte do método que traduz a lógica interna da asserção de existência. O problema do valor do juízo é, pois, anterior, é uma falácia de falsa bifurcação, quando ocorre que a uma falácia de pergunta complexa não se pode responder nem que sim nem que não ou que sim e que não - mas que há uma terceira alternativa: ‘talvez’. É, pois, uma experiência lógica construída no âmbito da razão a partir da topologia de relevos de quantificação no regime das coisas percebidas e das inexistentes. Decai inevitavelmente em lógica de predicados. Posso assim acreditar que o atual rei da França é calvo e exige mais a epiderme da questão o fator epistemológico da certeza depender de proposições não somente caracteristicamente vagas, mas falsas ou com grau baixo de segurança epistêmica: posso crer que é uma rainha e a peça que envolve o problema me impede de enxergar a questão essencial: pode a verdade e a constatação auxiliar os fundamentos gramaticais da lógica filosófica? Eis um enigma que perpassa os Prolegômenos a Sobre a Certeza de Wittgenstein, esse título que dei ao meu livro dos próximos anos, que será escrito em companhia à história da filosofia moderna e contemporânea.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

DO MESMO AUTOR

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Eduardo Novaes

Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia

14/05/2024 • Coluna ANPOF