A banalidade do mal (ou do mal como um fenômeno de superfície) | Especial XX Anpof

Adriano Correia

Professor da UFG e pesquisador do CNPq

14/08/2024 • Coluna ANPOF

No polêmico intercâmbio epistolar público entre Scholem e Arendt em torno a Eichmann em Jerusalém, Scholem concluiu sua carta com uma referência ácida à noção de “banalidade do mal”. Ele considerou a expressão nada convincente e, de resto, disse lamentar não ter qualquer coisa de positivo a dizer sobre as “teses” de Arendt no livro. Como a expressão apareceu no subtítulo do livro, era de esperar, disse ele, que o tema fosse desenvolvido, mas acabou por se mostrar mais uma frase feita, distintamente da análise profunda do “mal radical” levada a cabo por Arendt em Origens do totalitarismo, quando ela “ainda não havia descoberto que o mal é banal”. O mal radical, que a análise de Arendt em Origens do totalitarismo teria demonstrado de modo elegante e com conhecimento de causa, “perdeu-se em um slogan” (Arendt; Scholem, 2010, p. 434 [24 jun.1963]). Para ele, para ser mais que um slogan seria necessário situar a noção de banalidade do mal em um plano mais profundo da filosofia moral e da moralidade política, como julgava ter sido o caso do que ela fez com a noção de mal radical.

Arendt também reservou para o final de sua carta, publicada junto à de Scholem como uma resposta, suas considerações sobre os comentários dele. As afirmações de Arendt são peremptórias e, em grande medida, oblíquas, considerando seu desenvolvimento posterior do tema. Ela considerou as observações de Scholem sobre o mal o único ponto de acordo entre eles, na medida em que indicaria uma mudança de posição por parte dela, que não falaria mais de “mal radical”:

na verdade, hoje sou da opinião de que o mal é sempre apenas extremo, mas nunca radical, não possui profundidade nem demônios. Pode devastar o mundo inteiro precisamente porque continua a crescer como um fungo sobre a superfície. Mas só o bem é profundo e radical (Arendt; Scholem, 2010, p. 444 [20 jul.1963]).

Arendt não voltou ao tema do bem como profundo e radical. Algum tempo depois ela teria dito a Joachim Fest que “‘o supostamente bom também pode ser vazio e impensado – e ainda por cima implacável” (Fest, 2004, p. 186). Na correspondência privada que se seguiu às cartas publicadas, editadas apenas recentemente, Arendt e Scholem discutiram ajustes para a publicação das cartas, mas também retornaram ao tema do mal, dentre outros. Scholem insistiu que não se deixava convencer pela suposta descrição de Eichmann como um “Senhor banal” (banale Herr) por Arendt e que precisariam conversar sobre mal e banalidade por meio da burocracia ou no interior dela, porque, mesmo ele admitindo que esse tipo de mal banal possa existir, defendeu que teria de ser considerado filosoficamente de modo distinto, mais aprofundado (Arendt; Scholem, 2010, p. 453 [12 ago. 1963]). A reação de Arendt permite divisar a diretriz que orientou o exame das implicações da noção de banalidade do mal que ela de fato realizou apenas após Eichmann em Jerusalém, ainda que de modo esparso e mais em material inédito que na obra publicada:

mais uma vez você entendeu mal a expressão “banalidade do mal”. A questão é que o mal é um fenômeno de superfície (Oberflächenphänomen) e não que seja “banalizado” ou minimizado. Trata-se do oposto. O decisivo é que pessoas completamente medianas, nem boas nem más por natureza, foram capazes de causar uma catástrofe tão monstruosa (Arendt; Scholem, 2010, p. 458-459 [14 set. 1963]).

Algumas semanas após essa carta a Scholem, em anotações para uma palestra na Universidade de Chicago, Arendt especificou o que então queria dizer com a expressão “banalidade do mal”. Não se tratava de defender que o mal é um lugar-comum, no sentido de algo ordinário, corriqueiro, pois, insistiu, algo pode ser banal sem acontecer com frequência. Para ela, o modo como Eichmann se expressava poderia até ser corriqueiro, mas “era banal no sentido de uma superficialidade de arrepiar os cabelos” (Arendt, 1963, p. 3). O que tornou tão difícil compreender esse mal é o fato de que, quando o pensamento busca por suas raízes, nada encontra.

Foram os motivos mais banais e não os malignos, como “o sadismo, o desejo de humilhar ou a vontade de poder”, que fizeram de Eichmann um malfeitor terrível, incapaz de imaginar o sentido do sofrimento que estava causando. Mesmo no julgamento em Jerusalém ele seguiu pronunciando os mesmos clichês, parecendo não se dar conta de onde estava nem de com quem estava falando. Esse mal “nunca é radical, não tem raízes, é um fenômeno de superfície; por essa razão é tão contagioso. Ele pode espalhar-se por todo o mundo como um fungo e devastá-lo precisamente porque não está enraizado em lugar algum” (Arendt, 1963, p. 3).

Para Arendt, a genuína incompreensão da expressão banalidade do mal se devia ao fato de que as pessoas se recusavam a associar um mal extremo à superficialidade: “O que torna esse fenômeno tão assustador” é o fato de que algo “pode nascer na sarjeta e, apesar de sua falta de profundidade, ao mesmo tempo ganhar poder sobre quase todos” (Arendt; Koch, 2016, p. 786). É um mal que tem a ver “com o modo como ‘pessoas  comuns’ podem cometer atos maus sem serem monstros viciosos ou mesmo ter intenções más” (Bernstein, 2010, p. 135). Ela disse compreender que isso tenha abalado muitas pessoas, inclusive porque também era algo para o qual não estava preparada (Arendt; Fest, 2021, p. 325).

A muitos soou bastante mitigador e mesmo desrespeitoso apresentar Eichmann, um perpetrador do extermínio, como um burocrata irrefletido e não como um monstro, mas para Arendt, se burocratas irrefletidos não forjaram sozinhos a dominação total (são necessários líderes ideológicos como Hitler e oportunistas burgueses como Himmler, dentre outros), sem eles ela não é possível. De fato, sem indivíduos como Eichmann, “mas também sem os controladores de tráfego ferroviário, os fabricantes de cimento e os amanuenses dos ministérios, um Stalin ou um Hitler não passam de um odre estufado de ódio e terrores impotentes” (Littel, 2007, p. 27).

Em um ensaio em homenagem a Bertolt Brecht para a revista The New Yorker (1966), coligido posteriormente na obra Homens em tempos sombrios (Men in dark times), Hannah Arendt mencionou um trecho das notas de Brecht à obra A resistível ascensão de Arturo Ui (1941), uma sátira da ascensão de Hitler ao poder:

os grandes criminosos políticos têm de ser expostos de todos os modos, e especialmente pelo ridículo. Porquanto eles são acima de tudo não grandes criminosos políticos, mas os perpetradores de grandes crimes políticos, o que de modo algum é a mesma coisa. O fracasso nos empreendimentos de Hitler não significa que ele era um idiota, e a abrangência dos seus empreendimentos não significa que ele era um grande homem (Arendt, 2003, p. 211).

A despeito de ter concebido este ensaio pouco após publicar o livro Eichmann em Jerusalém, apenas em uma entrevista concedida em 1973 a Roger Errera, para a rede pública de rádio e TV da França (ORTF), Arendt estabeleceu uma relação entre a posição de Brecht e a sua própria em Eichmann em Jerusalém, afirmando que, embora chocante, a declaração é inteiramente verdadeira. Na entrevista, ela ainda cita outro trecho decisivo das notas de Brecht:

se as classes dominantes permitem que um pequeno trapaceiro se torne um grande trapaceiro, ele não tem direito a uma posição privilegiada em nossa visão da história. Isto é, o fato de que ele tenha se tornado um grande trapaceiro e que o que ele faz tem grandes consequências nada acrescenta a sua estatura (Arendt; Errera, 2021, p. 561).

E ela concluiu, com suas próprias palavras: “Não importa o que ele faça, se ele matou dez milhões de pessoas, ele é ainda um palhaço” (Arendt; Errera, 2021, p. 561). Nessa entrevista, Arendt vinculou Eichmann em Jerusalém às considerações de Brecht observando que uma de suas intenções principais em sua obra consistia em destruir a lenda da grandeza e da força demoníaca do mal. Essa lenda acabava por levar as pessoas a admirar os grandes malfeitores “e grandes personagens nefastos como Ricardo III ou Macbeth” (Arendt; Errera, 2021, p. 560), ao menos na medida em que eram realizadores bem-sucedidos de seus empreendimentos, não importando quais fossem.

A noção de banalidade do mal visava abarcar o fenômeno de um mal que é desarraigado porque não é pessoal – não é determinado pelas paixões ou pelos motivos autointeressados de seu perpetrador –, mas irrefletido, realizado por indivíduos que não se atualizam como pessoas por meio da experiência do pensamento e se recusam a julgar, a escolher a companhia a que aspiram ser para si mesmos. Nesse descuido de si, nesse autoabandono, nessa disponibilidade para ser conduzido, escancara-se a possibilidade de um mal sistemático, que ultrapassa a fronteira do que podem mesmo os piores indivíduos e assume essa forma extrema, coletiva, impessoal e devastadora. É disso que trataremos no minicurso, em diálogo principalmente com a filosofia moral de Kant.


BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. “Private reply to Jewish critics” (1963). Hannah Arendt Papers. Manuscript Division, Library of Congress, Washington DC (1898 to 1977) (https://www.loc.gov/collections/hannah-arendt-papers).

___________. Bertolt Brecht: 1898-1956. In: _______. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 177-213.

ARENDT, Hannah; ERRERA, Roger. Entrevista com Roger Errera. In: ARENDT, Hannah. Pensar sem corrimão – compreender 1953-1975. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

ARENDT, Hannah; FEST, Joachim. “Como se falássemos com uma parede” – uma conversa com Joachim Fest. In: ARENDT, Hannah. Pensar sem corrimão – compreender 1953-1975. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

ARENDT, Hannah; KOCH, Thilo. O caso Eichmann e os alemães – uma conversa com Thilo Koch. ARENDT, Hannah. Escritos judaicos. Barueri/SP: Amarylis, 2016, pp. 783-789.

ARENDT, Hannah; SCHOLEM, Gershom. Der Briefwechsel. Berlim: Suhrkamp, 2010.

BERNSTEIN, Richard. Is evil banal? A misleading question. In: BERKOWITZ, R., KATZ, Jeffrey, KEENAN, Thomas. Thinking in dark times: Hannah Arendt on ethics and politics. Nova York: Fordham University Press, 2010.

FEST, Joachim. Das Mädchen aus der Fremde: Hannah Arendt und das Leben auf lauter Zwischenstationen. In: ________. Begegnungen: Über nahe und ferne Freunde. Hamburgo: Rowohlt, 2004.

LITTELL, Jonathan. As benevolentes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.


O minicurso "A banalidade do mal" será ministrado pelo professor Dr. Adriano Correia (UFG), integrando a programação do GT Filosofia Política Contemporânea no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.

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