A Caixa de Pandora do neofascismo: por que as redes sociais privilegiam a extrema direita?

Cristian Arão

Doutor em Filosofia (UFBA) e pesquisador de pós-doutorado no projeto "Inteligência artificial: desafios filosóficos" do PPGFIL/UnB

29/08/2024 • Coluna ANPOF

Em 1º de janeiro de 2019, durante a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro, seus apoiadores o recepcionaram com gritos de "WhatsApp" e "Facebook". Esses gritos refletem a crença dos eleitores de que essas plataformas foram fundamentais para o crescimento do bolsonarismo. Essa opinião é compartilhada tanto pelos críticos desse movimento quanto por especialistas que estudam o avanço da extrema direita. De maneira semelhante, em outras partes do mundo, as redes sociais também são vistas como facilitadoras do progresso desse tipo de neofascismo. Diante dessas observações, surgem questões como: será que bolsonaristas e trumpistas são mais eficazes na comunicação digital? Ou a esquerda não conseguiu se adaptar ao ambiente virtual?

É importante destacar que o sucesso de ultradireitistas nas redes sociais não está relacionado a uma superioridade de conhecimento por parte deles, nem a uma falta de habilidade da esquerda. Embora haja exemplos de momentos em que a extrema direita soube aproveitar as novas tecnologias de informação, também existem diversos casos em que esteve atrasada. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Cambridge Analytica (CA) – que mais tarde trabalharia com o Partido Republicano e causaria grande impacto ao ser acusada de manipular as eleições de 2016 – não foi pioneira no uso de Big Data e inteligência artificial em campanhas políticas.

Quando Alexander Nix, fundador da CA, começou a procurar potenciais clientes nos EUA, o Partido Democrata já estava sendo atendido por empresas como Blue State Digital, BlueLabs, NGP VAN, Civis Analytics e HaystaqDNA. A BlueLabs, por exemplo, já havia trabalhado na campanha de Obama e era uma referência no uso de estatísticas para a persuasão política. Portanto, a aliança entre Nix e os republicanos não foi motivada por uma afinidade ideológica, mas sim pela defasagem tecnológica da direita norte-americana.

A Cambridge Analytica também não possuía sistemas significativamente mais avançados ou precisos do que os de suas concorrentes, apesar das alegações contrárias de seu CEO Alexander Nix. Essa visão é apoiada por Aleksandr Kogan, o pesquisador de Cambridge que desenvolveu o sistema utilizado pela CA. Em uma entrevista, Kogan afirmou que as altas taxas de conversão das quais Nix se vangloriava eram mais uma estratégia de autopromoção para atrair investidores. Na prática, os algoritmos de classificação muitas vezes apresentavam resultados que pouco superavam a aleatoriedade.

Portanto, a extrema direita não possui maior expertise sobre política nas redes sociais, nem as empresas que a apoiam são necessariamente mais competentes que outras do setor. Então, por que esse espectro político parece ter melhor desempenho? Há algum tempo, a relação entre algoritmos e o enfraquecimento da democracia vem sendo estudada em diversos países. Essas pesquisas revelam que o espaço virtual tende a favorecer conteúdos da extrema direita.

Mesmo que esse não seja o objetivo explícito, ao promover a disseminação de discursos de ódio, fake news e teorias da conspiração — narrativas frequentemente utilizadas pela ultradireita — as empresas de tecnologia acabam por beneficiar esse campo político. Apesar dos esforços e investimentos dos progressistas na criação de conteúdo online, eles enfrentam uma desvantagem estrutural. Páginas e influenciadores que adotam discursos radicalizados tendem a se destacar mais nas plataformas, rapidamente atraindo seguidores.

As redes sociais preferem esse tipo de conteúdo porque ele captura nossa atenção, e a atenção é o que gera lucro para as empresas por meio de anúncios. Embora os algoritmos não tenham como propósito explícito favorecer a extrema direita, eles pouco fazem para evitar esse efeito colateral. Os algoritmos não criaram a extrema direita, mas abriram caminhos que facilitam a expressão de afetos e ideias autoritárias que antes estavam mais contidos.

Sabe-se que o modus operandi da extrema direita baseia-se justamente no sensacionalismo, explorando o ódio e o medo que por vezes se mantém submerso. O viés de confirmação que por muitas vezes guia esse espectro político é justamente baseado nesses afetos. Esse “viés de negatividade” foi encontrado pelos pesquisadores Fessler, Pisor e Navarrete em um estudo empírico que revelou que os conservadores possuem mais tendência em acreditar em teorias da conspiração e em histórias falsas que incitam o pânico. O que a extrema direita fez foi organizar essa negatividade difusa dando-lhe uma finalidade política.

A internet, com suas vastas possibilidades de comunicação e acesso à informação, se tornou um espaço propício para a perpetuação de preconceitos e o surgimento de movimentos de extrema direita.  Nas brumas do inconsciente, onde a luz da razão nem sempre alcança, residem os instintos destrutivos, como a raiva e o ódio. A internet, por sua vez, esconde um submundo obscuro onde preconceitos adormecidos aguardam o momento oportuno para emergir. Nesse ambiente virtual, os movimentos de extrema direita assumem o papel de catalisadores, reunindo as frustrações e moldando-as em uma identidade conservadora. É como se navegassem pelas profundezas da rede, despertando os fantasmas do passado e alimentando a chama do ódio e da intolerância.

As grandes empresas de tecnologia, na tentativa de capturar nossa atenção ao máximo, acabaram por abrir a Caixa de Pandora da extrema direita. Embora as big techs não tenham criado o neofascismo, elas têm responsabilidade no crescimento desse movimento, pois desenvolveram algoritmos que favorecem esse espectro político. É provável que essa preferência não seja deliberada, mas também não é puramente acidental. As redes sociais, assim como os meios de comunicação anteriores, sabem que explorar o ódio e o medo é uma maneira eficaz de manter as pessoas engajadas. Por isso, o discurso sensacionalista é tão prevalente em todos os meios de comunicação.

Assim, intencionalmente ou não, os algoritmos acabam promovendo conteúdos que ressoam com os aspectos mais sombrios de nossa natureza. Além disso, as comunidades digitais, ao tentarem unir pessoas, acabam por isolá-las do restante do mundo. Por esses motivos, não basta punir indivíduos que propagam discursos de ódio ou fake news. Em um sistema que privilegia esse tipo de conteúdo, punir alguém é como enxugar gelo: uma pessoa pode ser penalizada, mas muitas outras tomarão o seu lugar.

Dado o papel central dos algoritmos na vida pública (assim como na cultura, nas relações pessoais e na capacidade de concentração, entre outras áreas), não é prudente deixar que as big techs decidam quais sentimentos devem ser cultivados na sociedade. O lucro dessas empresas, que depende de nossa atenção, não pode ser usado como justificativa para o aumento da barbárie.

Muitas vezes, qualquer menção à regulamentação das redes sociais provoca uma reação em defesa da liberdade de expressão. No entanto, em um ambiente onde os algoritmos favorecem o discurso sensacionalista, a liberdade é ilusória. Os criadores de conteúdo nas mais diversas plataformas não estão em igualdade de condições e são incentivados (conscientemente ou não) a abordar certos temas de uma determinada maneira, caso queiram que seus conteúdos alcancem o público. Isso significa que esses criadores não são realmente livres. Para alcançar a audiência, eles precisam se comportar de uma maneira específica e abordar certos temas. Caso contrário, seus vídeos, podcasts ou postagens terão pouca visibilidade. Nesse contexto, a verdadeira liberdade é a dos algoritmos a quem servimos, se o objetivo é ser visto ou ouvido. Como esses sistemas automatizados não são realmente autônomos, as únicas verdadeiramente livres nessa relação são as big techs, que, em nome do lucro, estão minando o que resta de civilidade.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.