A enchente como derrocada ou da fragilidade da bondade

Tiago dos Santos Rodrigues

Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professor adjunto de filosofia na Faculdade do CEFI (FACEFI).

29/05/2024 • Coluna ANPOF

As enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul no mês de maio nos dão o que pensar. O caráter (ainda) atípico delas, sua densidade e a extensão da sua destruição impressionaram a todos nós. O evento dessas enchentes fora vivenciado, sem dúvida, como algo incomum, como um extraordinário a invadir o nosso cotidiano. Pensamos, porém, que a situação calamitosa advinda das enchentes, paradoxalmente, nos revela um ordinário da condição humana, uma condição existencial fundamental. François-David Sebbah, em seu livro A ética do sobrevivente: Levinas, uma filosofia da derrocada, nos oferece um caminho em direção a essa compreensão. Neste seu texto, Sebbah propõe uma hipótese de leitura da obra levinasiana desde um romance inacabado do filósofo lituano-francês; Levinas, em seu escrito, se refere ao seu “palco de Alençon”, um palco onde “as coisas se decompõem, perdem seu sentido”[1], um palco em que toma cena a experiência da derrocada.

“A derrocada – exemplarmente manifestada no que Levinas chama de ‘meu palco de Alençon’ –, esta é a nossa hipótese, tem valor de épochè levinasiana: ela suspende a tese da existência do mundo. Porém, essa épochè fenomenológica não é uma redução fenomenológica já que ela não leva a nenhum fundamento sólido sobre o qual apoiar – e certamente não conduz a um ‘ego transcendental’ absoluto, fonte e garantia de qualquer sentido. A suspensão descobre um colapso sem fundo, uma lacuna: ausência de sentido, ausência de valor, e até mesmo falta de qualquer ‘mundo’, uma vez que a percepção se esvai do ‘mundo’ (como totalidade aberta nos seus horizontes)”[2].

Não poderíamos descrever assim o evento destas enchentes? A enchente como derrocada, como uma épochè, um pôr entre parênteses, põe em suspensão a “tese do mundo”, tira o mundo da sua posição até então tão firmemente estabelecida; retira do sujeito aquele ponto ao mesmo tempo interno e externo ao mundo que o protegia das hostilidades desse mesmo mundo e que permitia que ele elaborasse um mundo seu, um mundo habitável – a sua casa. Dirá Levinas: “A maneira do Eu contra o ‘outro’ do mundo consiste em permanecer, em identificar-se existindo aí em sua casa. [...]. O ‘em sua casa’ não é um continente, mas o lugar onde eu posso, onde, dependente de uma realidade outra, sou, apesar dessa dependência, ou graças a ela, livre”[3]. Toda a casa é um abrigo, a nossa casa é um abrigo, é o ponto de partida – de referência –  de um passeio ou de uma viagem que faz justamente com que os lugares de passeio e viagem sejam apenas isso, passeio e viagem, ou seja, transitórios, independente de quanto tempo se passe neles. A casa certamente é um espaço físico interior ao mundo, mas é uma interioridade que abre uma exterioridade com relação a esse mesmo mundo. Exterioridade com relação ao mundo porque interioridade de um sujeito. É o espaço exterior, no interior do mundo, em que o sujeito pode ser senhor, lugar que ele dispõe, em que não está jogado à mercê de forças outras. As águas que invadem a casa jogam o sujeito para o exterior de um mundo hostil, onde ele já não pode se proteger da vista alheia, para um lugar em que ele não tem lugar, onde as coisas já não se apresentem “à mão”, mas que estão dispostas (pré-dispostas com relação a ele) e em poder de outras vontades.

Até antes da enchente o mundo seguia o seu curso normal. O sujeito trabalha, estuda, se programa, faz economias; tudo isso supondo que o mundo será mundo amanhã e depois de amanhã. A realidade se apresenta estável, imóvel – a derrocada põe em suspensão esse mundo, questiona a sua firmeza e a sua solidez. A enchente transforma em água o que pensávamos ser pedra. O ser das coisas – com as quais a existência humana se veste, com as quais se cobre de sentido – se esvai e resta somente ao ente humano o ser do seu próprio ser. A derrocada dissipa o horizonte, antes largo, em que o sujeito se projetava e põe de manifesto ante seus olhos a miséria da nudez de sua própria existência. As famílias abandonando suas casas enquanto a água avança, carregando seus animais, algumas malas e sacolas com objetos “inúteis”, um livro, uma foto, uma lembrança qualquer – isso não é somente uma questão material, mas espiritual: um esforço último de ainda salvar algo do seu existir, do sentido do seu existir. Há nisso tudo, dirá Levinas, algo de patético e irrisório: é o perceber a insuficiência do nosso ser, de como somos mendicantes de sentido – não importa o quanto sejamos, nosso ser sempre é pouco ou mesmo nada.

A derrocada reduz o real a um circo, a uma fantasia, enquanto pensamos ser fantasia o real da realidade. O desabrigado quer “acordar desse pesadelo”, quer pensar estar no sonho cartesiano, quer pensar estar num mero exercício metodológico de uma mente excêntrica e cética, e pede por um Deus (infinito e bom) que possibilite o retorno à “sua realidade”. Todavia, a derrocada, ainda que não seja uma redução fenomenológica, metódica, é uma redução real. A épochè levinasiana nos retira da ingenuidade do “homem da rua” para quem as coisas possuem uma “ordem natural”. A enchente, enquanto derrocada, põe entre parênteses o incerto das nossas produções culturais e nos joga no colo da inquestionável (e, por vezes, vergonhosa) presença do nosso ser a nós mesmos.

Mas assim como a épochè fenomenológica não acusa como ilusão a tese do mundo suspendida, a épochè levinasiana tampouco faz o mesmo. Não é que esse mundo de nossas economias, esse mundo em que comemos de uma boa sopa, tomamos de um bom vinho e em que jogamos uma boa conversa fora com nossos amigos, seja uma ilusão. Ele não é uma ilusão, não é falso – ele é frágil. E aqui podemos recorrer à expressão de Martha Nussbaum. As “bondades” do mundo, a boa sopa, o bom vinho e a boa conversa, são frágeis. Há uma fragilidade da bondade, uma vulnerabilidade perante a fortuna[4]. A bondade do mundo, ontologicamente falando, não é primeira, não é originária. Ela é construída – com trabalho, suor, lágrimas e, não raras vezes, sangue – sobre uma matéria estranha a nós, aquilo a que Levinas chamará de “elemental”. O que significa que fora, talvez, a vida mesma, nada mais nos é dado, no sentido de ser uma “dádiva”. O que temos de bom na vida, o temos como resultado de esforço, de trabalho, isto é, não é natural. A natureza mesma, se é permitido nos expressar assim (e aqui não no referimos ao “meio-ambiente”, mas à própria condição do existir) guarda como que uma hostilidade originária contra a qual, todas as manhãs e a cada dia, lutamos contra. No interior do Rio Grande do Sul, o pequeno agricultor diz que vai “lutar com as vacas” (tirar leite), que vai “lutar no milharal” (cortar o milho); expressões existencialmente exatas. A derrocada, numa enchente, num incêndio ou numa guerra, é o momento em que se perde essa luta, em que a existência (o “há” [il y a] levinasiano) sobrepõe o existente.

Essa condição na qual boa parte da população gaúcha foi exposta, digamos uma vez mais, não é extraordinária, ainda que o evento o posa ser. Não só porque ela ocorre de fato a todo instante e em todo o mundo, sendo a condição do morador de rua, do refugiado de guerra, do palestino na campanha de genocídio israelense; mas porque ela é o prius sobre o qual erguemos nossas vidas. É o ordinário que descansa sob a existência que preenchemos de sentido – essa, sim, extraordinária. A vida humana é humana porque extravasa a existência, transborda do seu próprio ser. A bondade é esse transbordamento.

Mas ainda que a bondade da vida seja frágil, mesmo assim é gostosa, talvez porque saibamos ser rara. Há um gosto especial na boa sopa, no bom vinho e na boa conversa, o gosto de termos arrancado – com suor, sangue e lágrimas – uma vitória, vitória extraordinária (glória da vida), sobre um adversário que sabemos ser mais forte.


[1] LEVINAS, Emmanuel. Escritos Inéditos 1. Cadernos del cautiverio, Escritos sobre el cautiverio, Notas filosóficas diversas. Trad. Miguel García-Boró. Madrid: Editorial Trotta, 2013. p. 75.

[2] SEBBAH, François-David. A ética do sobrevivente: Levinas, uma filosofia da derrocada. Trad. Leonardo Meirelles. Passo Fundo: Editora Conhecer, 2021. p. 18. [destaques do autor].

[3] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 25. [destaques do autor].

[4] Cf. NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.