A falácia da dificuldade da matemática

Luís Fernando Crespo

Prof. Dr. (USF)

11/05/2023 • Coluna ANPOF

Inicio, assumindo que: primeiro, defendo um lado, sim, o da filosofia, mas não apenas dela, e sim de todos os outros componentes curriculares da escola que são preteridos (seja em número de aulas, seja na importância dada dentro do conjunto); segundo, meu objetivo não é o de preterir a matemática e dizer que ela não tem importância (eu até gosto dela e até tenho amigos que se dedicam a ela) - neste segundo ponto, se não fosse assim, eu estaria reproduzindo aquilo que já existe, socialmente falando, em muitos âmbitos da convivência: os oprimidos desejando serem opressores, ao invés de pensar uma vivência de mais igualdade; e terceiro, sim, entendo que a matemática está em um certo lugar de opressor sobre os demais, no conjunto dos componentes (e até com certa aprovação social - embora de senso comum).

Talvez eu possa começar pensando a partir da ideia de utilidade. Em nossa sociedade, que assume a produção material (e suas relacionadas) como objetivo de vida, a matemática é pensada como um dos conhecimentos mais úteis que se aprende, sendo base para outros conhecimentos. Mas não é base para todos os outros. Poder-se-ia tentar afirmar, então, que, mesmo que ela não tenha uma usabilidade prática para todos os conhecimentos, pelo menos o raciocínio que ela exige vai ser útil em diversas situações da vida. Mas vale observar que este tal raciocínio não é proporcionado apenas pela matemática - inclusive, se pensarmos a matemática como um ramo da lógica, a filosofia poderia dar conta. Ah, mas não dá, com apenas 1 ou 2 aulas por semana. Eu até conheço um colégio no qual, com uma 1 por semana, o professor deve revezar o conteúdo entre filosofia e sociologia.

Parece loucura o que apresento como provocação, pois alguém poderia dizer “Se com 4, 5 ou 6 aulas semanais, já é difícil fazer acontecer o aprendizado e a prática dos temas, com 2 ou 3 aulas seria impossível! Como os estudantes conseguiriam compreender e realizar de 20 a 30 exercícios, treinando diferentes métodos de resolução de matrizes e determinantes?! E ainda é preciso que o professor faça a correção…”

E eu pergunto: como é possível que um professor de filosofia utilize apenas 1 ou 2 aulas para explicar todo o idealismo alemão? Como esperar que os estudantes entendam e ainda consigam bem fazer um exercício que seja corrigido pelo professor? Claro que é possível: apenas citando que algo existiu, que há alguns pensadores representantes e dando apenas um exemplo significativo de uma única ideia de Hegel, por exemplo. Ninguém precisa entender ‘por dentro’, bastando apenas saber que existiu. Pois, se o objetivo fosse o de que os estudantes compreendessem, praticassem e houvesse correção com comentários, eu, no caso, diria que precisaria de, no mínimo, umas 5 aulas, para garantir que os estudantes tivessem uma boa noção apenas deste tema.

A matemática é apenas uma opção feita; mas não é feita de forma ingênua, pois tem significativas implicações sociais, principalmente na atualidade. Mesmo que se pudesse considerar determinadas necessidades em outro período, hoje o contexto permite - exige - uma revisão. O raciocínio proporcionado pela matemática auxilia a vida prática em diferentes âmbitos? Com certeza; mas, ainda assim, trata-se de um conhecimento cujo objeto vem de fora para se ensinar a calcular a realidade humana (Heidegger falaria da razão calculadora da ciência de uma lado, e da razão do sentido do pensamento de outro). A matemática é base não apenas para o cálculo, mas para a visão calculadora do mundo, assumida pelas ciências em geral. O objeto matemático não toca o ser humano em sua humanidade: posso até ter dificuldade em realizar um determinado cálculo, mas eu, enquanto sujeito, não sou abarcado em tal cálculo - não vou entrar em crise, nem chegarei a pensar que a sociedade deveria mudar por conta disso. Não sou perturbado nem me perturbo; não sou perigo.

De modo diverso, quando eu estudo ética, sou abarcado como instância do objeto de estudo. Compreender as ideias ‘por dentro’ implica tentar enxergar aquilo que os pensadores enxergaram e que os motivou à reflexão. Eu sou o objeto, e o que assumo para ele, significa a possibilidade - ou necessidade - de assumir para mim (Jaspers fala do perigo que é a filosofia, pois, se eu me dedicar verdadeiramente a ela, posso chegar à necessidade de uma mudança radical). O objeto da filosofia bate em mim, em minhas certezas e afeta minha configuração de mundo. Sou perturbado e posso perturbar; posso ser perigo.

Se a questão é refletir sobre a base do pensamento, e se a matemática é considerada como base para muitos outros conhecimentos, eu pergunto quanto da filosofia é base da própria matemática. E nem vou entrar aqui em outra discussão, com relação ao Novo Ensino Médio, mas me pergunto por que os conhecimentos da matemática não poderiam entrar apenas como conhecimento transversal para o ensino de empreendedorismo ou de habilidades culinárias… Enfim, sigo meus dias, 22 anos depois de terminar minha graduação, nunca mais tendo utilizado a fórmula de Bhaskara.

DO MESMO AUTOR

Continuando o diálogo - os desvios políticos do pensamento

Luís Fernando Crespo

Prof. Dr. (USF)

24/05/2023 • Coluna ANPOF