A falácia do militante total ou do engodo foucaultiano

Wendel de Holanda P. Campelo

Doutor em Filosofia pela UFMG e professor adjunto de Filosofia do IFPA

17/10/2024 • Coluna ANPOF

Neste breve ensaio, irei comentar um pouco sobre o que chamo de "falácia do militante total" e suas implicações nas práticas políticas ordinárias, para além das institucionais. Nomeio também essa falácia de "engodo foucaultiano" justamente porque está baseada num falso argumento vulgarmente atribuído ao filósofo francês Michel Foucault cuja premissa é que "tudo (na sociedade) é relação de poder" e daí se conclui que "tudo é política".

Embora eu particularmente não acredite que a teoria foucaultiana seja tão simplista, é inegável que muitos a utilizam para justificar certas inconveniências. A meu ver, a máxima "tudo é política" pode levar a uma postura excessivamente militante, ao sugerir que todas as interações sociais são inevitavelmente marcadas por disputas de poder, tornando-as essencialmente políticas. No entanto, essa afirmação é falaciosa, pois, ao tentar explicar tudo, acaba por não explicar nada de forma substancial. Quando aceita sem a devida reflexão crítica, essa perspectiva pode promover uma visão totalitária e reducionista da militância, afastando-nos da temperança e da justa medida que devemos cultivar entre o engajamento político e outras esferas fundamentais da vida humana.

Porém, antes de comentar especificamente sobre essa falácia, farei algumas considerações iniciais. Há alguns milênios, Aristóteles diria que o ser humano é um animal político, visto que seu domínio de vida é a "pólis", palavra grega geralmente traduzida como "cidade". Do termo "pólis", os gregos criaram a palavra "politikós" para designar aqueles que vivem na pólis, ou seja, nas cidades gregas. Portanto, é do termo "politikós" que se deriva a palavra "política" tal como usamos hoje para indicar o que muitos autores clássicos chamariam de "arte de governar". Há também um sentido público no que chamamos de "política". Por essa razão, é preciso cautela ao dizer que um "bom político" é equivalente a um "bom gestor", pois, no segundo caso, não há necessariamente referência ao âmbito público onde a política, de fato, se exerce.

Ao contrário, mede-se um "bom gestor" tão somente pela sua eficiência e utilidade para os propósitos particulares de uma determinada corporação. Não obstante, a política já se inicia pela disputa dos propósitos ou das finalidades através de grupos políticos antagônicos. Portanto, é verdadeiro que, em nossas sociedades modernas, a política acontece em meio a interesses diversos e até contraditórios entre si.

Dito isso, agora passemos para nossa questão inicial que diz respeito a "falácia do militante total", tal como se dá no seguinte silogismo: 

[1] Tudo (na sociedade) é relação de poder;

[2] A relação de poder é política;

[3] Logo, tudo é política.

1. Comecemos com a premissa maior "Tudo é relações de poder":

Será mesmo que tudo na sociedade se reduz a uma "relação de poder"? Evocamos aqui Popper no que diz respeito a um tal enunciado aparentemente irrefutável, visto que não só explica, como também explica até demais. E talvez aí esteja o real problema da sua formulação. Ora, partindo da premissa de que "tudo é uma relação de poder", posso perfeitamente interpretar qualquer acontecimento, mesmo aqueles contraditórios entre si, com base nessa hipótese.

Por exemplo, se digo que "Amélia é muito maltratada pelo marido". Posso perfeitamente inferir daí que, para maltratar Amélia, o marido dela precisa exercer algum tipo de poder sobre ela. Se, pelo contrário, digo que "Amélia é muito bem-tratada pelo marido", posso perfeitamente também inferir daí que o marido dela exerce algum tipo de poder sobre ela. Mas, neste segundo caso, acrescenta-se que o marido da Amélia opera ardilosamente para influenciá-la no sentido de manter o poder sobre ela e, por isso, costuma tratá-la muito bem (ainda que, supostamente, com más intenções).

Assim, para o "militante total", em ambos os casos, sempre haverá uma "relação de poder". Todavia, tal enunciado "tudo é uma relação de poder", ao explicar tudo, também não oferece nada realmente de substantivo sobre a realidade. Ao contrário, trata-se de uma ideia demasiado vaga que se acomoda a qualquer estado de coisas.

2. Agora, passemos para premissa menor "a relação de poder é política":

Como notei acima, a palavra "política" deriva do termo grego "pólis" que significa cidade, enquanto a palavra "poder" deriva do termo latino "possum" que significa “ser capaz de”. Por conseguinte, são termos que etimologicamente não têm diretamente ligação um com outro. Ao contrário, o termo latino para política é "politicus". Por conseguinte, não há qualquer associação direta possível entre "política" e "relação de poder".

Quando pensamos em "relações de poder", muitas das vezes estamos pensando em relações de dominação e de subordinação, isto é, relações em que alguém consegue se sobrepor ao outro a partir de alguma capacidade - ter mais dinheiro, força, inteligência, idade, conhecimento etc.

Mas essa noção de poder é até contrária ao sentido original de política, através do qual se supõe uma relação entre iguais e não de desigualdade. Aliás, este é o sentido, por exemplo, do sufrágio universal: mesmo numa sociedade desigual, o voto de cada cidadão tem o mesmo peso, não importa se é rico ou pobre, homem ou mulher, negro ou branco, etc.

É óbvio que podemos argumentar que nossas sociedades modernas são diversas e tal política entre iguais seria uma noção completamente inverídica, visto que não corresponde à sociedade existente. Bastaria, por exemplo, ver o Brasil tal como é para facilmente chegarmos à conclusão de que não existe uma tal igualdade.

Não obstante, o propósito da política é justamente este: fazer com que os cidadãos, em sua diversidade, tenham certas garantias e direitos iguais. Não é um plano dado, mas é um plano artificial: é o propósito da política.

Em outros termos, o propósito da política é justamente seguir num sentido inverso das meras "relações de poder" existentes na sociedade. Porém, isto não significa que a política não lida com tais "relações de poder". Ao contrário, a política está a todo momento ocupando-se daquilo que diz respeito a certas relações ou disputas de poder na sociedade, muito embora não se confunda necessariamente com elas.

3. Por fim, examinemos a conclusão "Tudo é política":

Ora, assim como não estamos suficientemente autorizados a concluir que a "política" é estritamente "relações de poder", muito menos podemos inferir daí que "tudo é política". Ainda que seja trivial dizer que tudo na sociedade está de algum modo relacionado com outra coisa é, porém, muito difícil daí concluir que todas essas relações são necessariamente "relações de poder". Há muitos tipos de relações que podemos ter na sociedade e, portanto, jogar tudo no mesmo pacote é um reducionismo pueril.

Dito isso, afirmar que tudo é política é querer ser incansavelmente um militante em todas as situações. O que resulta numa personalidade um tanto inconveniente e inoportuna. Por isso, devemos ser cautelosos com nossas "micropolíticas". Aliás, a internet cria a falsa ideia de que participamos mais da política quando apenas nos tornamos mais engajados a crenças e emoções algoritmicamente atiçadas.

Conclusão

Deste falso silogismo decorre uma série de problemas, dentre eles, uma visão totalitária do conceito de militância, isto é, que deveríamos militar 24h em nossas vidas, que o plano moral e político se entrecruza e se confunde. Não havendo mais espaço, no âmbito da vida privada, para a reflexão, para a dúvida e para a incerteza, já que precisamos estar sempre certos e convictos o tempo inteiro, sem jamais vacilar.

Ora, a política é apenas uma das atividades fundamentais dos seres humanos e, por isso mesmo, não é desejável que tal ocupação, ainda que inegavelmente importante, invada todos os espaços da vida humana. Por isso, nunca é demais recomendar àqueles jovens obstinados: "descanse, militante!".


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

DO MESMO AUTOR

O conservador (i)moral

Wendel de Holanda P. Campelo

Doutor em Filosofia pela UFMG e professor adjunto de Filosofia do IFPA

15/10/2021 • Coluna ANPOF