A Filosofia e o espaço das mulheres

Mariana Rocha Bernardi

Doutoranda em Filosofia pela UCS

19/10/2022 • Coluna ANPOF

A Filosofia ocidental foi e ainda é um ambiente majoritariamente masculino e isso é um reflexo direto dos costumes e cultura que vem do próprio conhecimento absorvido da Grécia antiga, em especial de Atenas. A história de como o conhecimento filosófico foi se dissipando no ocidente encontra relação direta com os costumes da grande cidade-estado grega.  Do que se “bebe” de conhecimento desde os filósofos pré-socráticos, ao longo de toda a história, às mulheres em geral era reservado o papel de administradoras ou cuidadoras da esfera privada, não participantes da esfera pública e, portanto, de decisões da pólis, senão por meio da “tutela de um homem: pai, marido, irmão, filho ou, até mesmo, um outro membro masculino de sua família” (CUCHET, 2015). Nesse aspecto, não diferiam muito dos estrangeiros ou mesmo dos escravos, na medida que sua atuação era restrita. E embora não se deixe de considerar a importância que a administração da esfera privada tinha para (e desde) os gregos, a “função” das mulheres foi assim sedimentada.

 As poucas mulheres que conseguiram um status diferenciado, como Hipátia de Alexandria (355 a.C), deveu-se, em muito, ao seu berço. Hipátia era filha de Theon, um conhecido matemático da época e professor do museu de Alexandria, que a incentivava nos estudos e possibilitou a sua introdução no ambiente do conhecimento e das preleções, onde ela pôde se destacar (STROHER, 2015). Ainda assim, pouco ou nada se estuda sobre Hipátia no ambiente acadêmico filosófico, seja 1) pela quase ausência de escritos próprios (porque não preservados), 2) seja porque o pouco que dela se conhece é através de “cartas e relatos de seus discípulos e admiradores, como é o caso de seu aluno e discípulo Hesiquio, o hebreu” (STROHER, 2015), ou, ainda 3) porque persiste uma (real) falta de interesse em nos questionarmos sobre a forma como se conduz o ensino da historicidade e da própria Filosofia no ocidente. A luta por um espaço em definitivo de fala no ambiente acadêmico perpassa a linha não dinâmica (mas estática) da preservação contínua do ensino de determinados autores e certas perspectivas, ainda que o cerne da própria Filosofia seja a permanente inquietação e indagação dos status quo

Na Filosofia em geral, e a partir da história dela, o foco deve estar voltado para a sua essência, que é a pergunta, e trabalhar a partir de diferentes perspectivas (narrativas e registros). É o questionamento da forma como vemos e ensinamos a Filosofia que merece atenção: estamos a lidar com a busca dos argumentos que nos permitam encontrar as verdades em cada questionamento, e não apenas com uma de suas faces. É óbvio que a massificada produção filosófica pertence aos homens justamente pela seu envolvimento histórico e costumeiro com os interesses do coletivo (a administração da esfera pública, dos interesses da pólis, para remeter ao contexto grego que estudamos como base), o que inevitavelmente leva ao denso registro intelectual. Mas também é obvio, ainda que se precise registrar, que os homens, ao longo da história e dos costumes, não precisavam (e ainda, em sua maioria, não precisam) atender às demandas simultâneas das “esferas pública e privada”, o que lhes garante a manutenção ad infinitum dos espaços de fala. 

O argumento de que “mulheres não iam às batalhas porque deveriam ser protegidas para a perpetuidade das gerações” manteve as mulheres, em sua esmagadora maioria, restritas ao ambiente doméstico, o que reflete no número ainda ínfimo de mulheres que efetivamente ocupam posições de destaque ou liderança no ambiente público, incluindo o acadêmico. O mesmo “instinto protetivo” do homem relegou as mulheres a uma posição geral que podemos chamar de subalterna: estando sob a autoridade sistematizada do homem, remanesce o prejuízo da inserção ou reinserção da mulher no mercado de trabalho em geral, nos cargos políticos e no protagonismo da academia, em especial em áreas como a Filosofia [1]. 

Não é forçoso concluir que há, portanto, uma dificuldade ou resistência que ambientes intelectuais, mesmo o da questionadora Filosofia, sejam pouco ocupados por mulheres. As professoras Carla Rodrigues e Susana de Castro, em artigo publicado pela coluna Anpof em 2017, já alertavam para o silêncio com relação à inexpressiva participação nos espaços púbicos, o que acabava por excluí-las integralmente da história e, portanto, dos programas de ensino da Filosofia (CASTRO E RODRIGUES, 2017). Não se pode olvidar, portanto, sendo o marco inicial do estudo filosófico a Grécia antiga, que um dos seus maiores expoentes analíticos, Aristóteles, na obra A Política, tenha asseverado que "toda fêmea é inferior ao macho", numa clara ênfase à suposta existência de características naturais que tornariam as mulheres menos capacitadas para a realização de certas atividades que os homens. Nos bancos acadêmicos acabamos por aprender a reproduzir esse tipo de conhecimento, não a questioná-lo (embora fosse essa a conduta esperada): asserções levam, inegavelmente, à presunção de que são premissas que levarão inevitavelmente a uma conclusão. O resultado de um silogismo só pode ser oriundo da consideração das premissas que o formam e se tais premissas são consideradas verdadeiras, não há por que contestá-las. Eu, particularmente recordo que minhas aulas de Filosofia do Direito foram basicamente centradas na análise dialética Hegeliana. Esse recorte traz consequências: todos os desdobramentos práticos da Filosofia do Direito terão por base o conhecimento produzido por Hegel. Assim, chegamos a uma espécie de "endogenia acadêmica" e permanecemos dificultando a presença, a liderança e/ou os espaços de fala das mulheres.


Rerências

CASTRO, Susana de, e RODRIGUES, Carla. As mulheres ou os 'silêncios' da história da filosofia. Coluna Anpof. 08 de Março de 2017. Disponível em https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/as-mulheres-ou-os-silencios-da-historia-da-filosofia

CUCHET, Violaine Sebillotte. Cidadãos e cidadãs na cidade grega clássica. Onde atua o gênero? Tempo 21 (38) • Jul-Dec 2015. Disponível em https://www.scielo.br/j/tem/a/wKZ3nkdNP833CgcBJ8c5kXs/?lang=pt

STROHER, Marga Janete. Hipácia: A filósofa negra de Alexandria. Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.1 n. 1 | p. 21-29 | jul.-dez. 2015. 

TRABULSI, José Antonio Dabdab. Uma Cidade da "Inclusão": Mulheres, Estrangeiros e Escravos na Cidade Grega Positivista. Phoinix, Rio de Janeiro, 6: 207-225, 2000. 


Notas

[1]  No que se referem a dados, vide matéria da Agência Brasil, de 2021, sobre o tema.

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Mariana Rocha Bernardi

Doutoranda em Filosofia pela UCS

19/07/2022 • Coluna ANPOF