A inteligência transferida na série Pantheon e a irreplicabilidade da experiência subjetiva

Guilherme Arraes

Doutorando em Filosofia na UNESP

28/01/2025 • Coluna ANPOF

Enquanto escrevo as primeiras linhas deste texto, estou apreciando um bom café expresso sem açúcar. As notas frutadas com o fundo da torra amarga espantam o sono que ameaça tomar minha tarde. O cheiro que exala da xícara ajuda a perfumar o cômodo. Minha experiência de escrita está permeada por essas qualidades subjetivas que se convencionou chamar de qualia na filosofia da mente. Cada nota de sabor, cada variação de aroma, fazem parte deste ponto de vista, aqui e agora, tomando este café, escrevendo este texto. Quer dizer, isso que chamo de “Eu”.

É certo que o Eu está estreitamente ligado a isto  que chamo de “meu corpo”. É através das papilas gustativas desta boca que discrimino e experiencio as variações de sabor do café expresso. É através dos receptores olfativos que sinto o ambiente ser tomado pela fragrância dos grãos torrados, moídos e passados na água quente. Se estivesse gripado, por exemplo, é possível que não conseguiria apreciar este café como agora, pois poderia não sentir tão bem o seu sabor e o seu cheiro. Ou seja, sem este corpo funcionando de forma típica, não conseguiria apreciar este pequeno prazer das tardes preguiçosas. Parece que o Eu depende deste corpo. Por que não dizer que o Eu é este corpo?

Mas de que forma o Eu é este corpo? Talvez a biologia explique detalhadamente como cada parte deste organismo opera em conjunto para manter o Eu em homeostase. Mesmo assim, a biologia ainda não poderia explicar ao certo o que é este ponto de vista do Eu que aprecia café sem açúcar nas tardes preguiçosas. Este ponto de vista parece ser acessível apenas pelo próprio Eu. Por mais que tente expressar em palavras a sensação que sinto agora ao tomar esta bebida,  quem me lê não consegue experienciar de fato o que estou tentando comunicar. Thomas Nagel[1] diria que isso faz parte do como ser Eu. Esse “ser como” é o que a biologia com todas as suas subáreas, a neurociência em especial, não consegue descrever em termos físicos e químicos como nos demais processos orgânicos. Eis o problema difícil da consciência.

Não quero abordar o problema difícil da consciência, mas apenas indicar do que se trata para, em seguida, avaliar a hipótese do que a série de animação “Pantheon”[2] chama de Inteligência Transferida (Upload Intelligence) possuir uma experiência subjetiva. Esse problema coloca em questão justamente aquilo do que tratávamos: Por que existe algo que é como ser um sujeito consciente? Em outras palavras, qual a natureza da experiência subjetiva em si? Ou, então, como é ser Eu? O problema segue sem resposta. Não intento solucioná-lo. O que quero salientar é que nós não sabemos explicar o que significa ser como alguém (ou algum ser senciente como um morcego, p. ex.) que possui experiências subjetivas.

Se não sabemos o que é ser como alguém, será que conseguiríamos replicar essa experiência de ser como alguém? Em um mundo hipotético como o de Pantheon, suponhamos que tenhamos uma tecnologia a laser capaz de escanear e mapear todas as sinapses do cérebro de alguém para fazer um upload dessa conexões para um programa de computador. É essa tecnologia que a empresa fictícia Logorhythms possui no seriado em questão. Uma tecnologia que consome fisicamente todo o sistemas nervoso central das pessoas no processo de upload, resultando na morte do Eu orgânico original. Em seguida, um programa de computador passa a simular as suas sinapses, que chamaremos de Eu virtual. O Eu virtual possui todos os “ingredientes” para simular a identidade pessoal do Eu original, isto é, todas as conexões relacionadas às suas memórias, emoções, percepções etc. O que ele não possui é um corpo orgânico para processar esses “ingredientes”. Esse Eu virtual é colocado em um ambiente virtual que simula um ambiente real como, por exemplo, um quarto com janela, cadeira, mesa etc. O Eu virtual não sabe que está em uma simulação. Tendo em vista esse cenário, podemos levantar os seguintes questionamentos: Existe algo que é ser como o Eu virtual, tal qual havia para o Eu original? Se houver, o ponto de vista do Eu virtual é o mesmo ponto de vista do Eu original, quer dizer, há uma continuidade entre a experiência subjetiva do Eu original e a experiência subjetiva do Eu virtual?

Digamos que eu seja uma inteligência transferida (IT) escrevendo este texto neste exato momento em uma simulação. Como os cientistas que estão monitorando a simulação saberiam se eu tenho ou não uma experiência subjetiva? Eu poderia estar operando tal qual uma inteligência artificial generativa como as que temos por aí, ou seja, eu poderia estar apenas operando sintática e estatisticamente todas as informações recebidas e processadas pelas minhas sinapses virtuais. Eu poderia possuir uma linguagem lógica diferente dos chatbots, mas mesmo assim operar com base nos mesmos princípios de processamento. Na série, surge essa dúvida, mesmo que ela não seja bem explorada e desenvolvida. Em algum momento, uma das personagens questiona se aquela inteligência transferida é realmente aquele que foi seu marido. Será que a IT do marido, a qual possui memórias de momentos importantes de seu relacionamento, que manifesta um comportamento verbal e não verbal esperado de quem sente amor e ciúmes, realmente é o Eu original daquela pessoa? Será que o Eu virtual em questão é um outro Eu, mas com a identidade pessoal do Eu original? Ou será que ela não possui qualquer tipo de subjetividade?

O mapeamento digital e a simulação das sinapses cerebrais não é apenas ficção científica. Recentemente, um grupo de pesquisadores completou um conectoma digital dos 139,255 neurônios e 50 milhões de conexões de uma Drosophila, a mosca-das-frutas.[3] Esse conectoma é capaz de realizar simulações. Em uma simulação da percepção de uma água açucarada, o modelo computacional conseguiu prever as sinapses corretas associadas à percepção da solução e à resposta motora correspondente de sucção, com vistas à nutrição do organismo. Da mesma forma, o modelo computacional conseguiu prever as sinapses associadas à percepção e à resposta motora de afastamento de uma solução amargosa, que considera a possibilidade de envenenamento do organismo. Será que existe nessa simulação o que é como o sabor açucarado ou amargoso que a mosca sente ao ter contato com essas soluções no mundo não digital? Ou, retomando nossa questão, será que tem na simulação o ponto de vista do ser como a mosca?

Considerando que tanto no caso fictício de Pantheon quanto no caso do modelo real da Drosophila não há a presença de um corpo orgânico processando essas sinapses, parece difícil haver a possibilidade de realmente existir uma experiência subjetiva nessas simulações. A consciência é fruto de toda uma história evolutiva dos organismos vivos e está incorporada de tal modo que não é possível conceber uma consciência sem corpo. A consciência age no corpo e através do corpo como um todo, em um ambiente natural situado. Sendo assim, a hipótese da inteligência transferida não poderia replicar um ponto de vista, um Eu, e, mesmo que conseguisse, a descontinuidade física e ontológica entre o corpo orgânico e o modelo computacional produziria dois Eus distintos, mas com a mesma identidade pessoal. Talvez, os pontos de vista individuais sejam, de fato, irreplicáveis. Entretanto, mais avanços no conhecimento do funcionamento cerebral e da consciência são necessários para uma resposta conclusiva. Permanecemos, por enquanto, apenas com ideias interessantes e séries de ficção científica inspiradoras.


Notas

[1] NAGEL, T. What is it like to be a bat? The Philosophical Review, Vol. 83, No. 4, p. 435-450, 1974.

[2] PANTHEON. Direção: Juno John Lee et al. Produção: AMC. 2022-2023.

[3] SANDERS, R. Researchers simulate na entire fly brain on a laptop. Is a human brain next?. 2024. Disponível em: . Acesso em: 19 dez. 2024.


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