A neurogênese da cognição artificial
Fernando Alberto Pozetti Filho
Doutorando em Filosofia da Ciência na UNESP
08/04/2025 • Coluna ANPOF
O desenvolvimento hiperbólico e a popularização do aprendizado profundo de máquina (deep learning) – e seu simulacro de uma mente artificial – reconhecidas como redes neurais artificiais (RNA) – não representa apenas um avanço tecnológico, mas a emancipação de uma nova ordem mundial, cuja magnitude apenas começamos a vislumbrar. Estamos, de fato, testemunhando o surgimento (neurogênese) de sistemas neurais autônomos capazes de processar informações, apreender padrões sofisticados e gerar conhecimento de formas que desafiam as categorias clássicas do entendimento, da episteme, do logos, dos elementos da natureza, da linguagem e da representação.
O conjunto de tais transformações nos leva a revisitar questões filosóficas fundamentais sobre o lugar do ser humano no mundo, sua finalidade, a natureza e o destino de suas virtudes e valores. Estas questões se conectam aos problemas perenes e milenares inaugurados pela filosofia: "O que posso conhecer?", "Como?". A emancipação da "cognição artificial" (lê-se aprendizado de máquina profundo não-supervisionado) é uma revolução ou quebra paradigmática que convida a filosofia a repensar sua própria prática e arcabouços teóricos. Estamos diante daquilo que estudos epistemológicos denominaram falseabilidade, ou seja, que a ciência, para ser confiável e legitimada precisa, em algum estágio de sua própria evolução, ser destituída e contestada em suas proposições de bases, em suas teorias elementares, axiomas, conceitos ou mesmo, da compreensão positivada dos fenômenos que lhe recaem.
Se sistemas heurísticos não-humanos podem gerar conhecimento válido, ora através de causalidade, ora através de correlações, qual é o papel da pesquisa e dos grupos de trabalho, pesquisa e inovação? Como repensar questões institucionais, orçamentárias ou mesmo a seleção de discentes e docentes? A resposta intuitiva de muitos reside em recorrer a certo humanismo deslocado ou retórico, ou seja, ratificar-se-ão certas qualidades subjetivo-intelectuais que pertenceriam à genuína qualidade do sapiens sapiens, no seu exercício lúcido e distintivo capaz de intercruzar crítica, ética e criatividade. Se os modelos de linguagem de inteligência artificial processam dados e sugerem novidades teóricas, caberia então aos humanos interpretar significados e articular valores? No entanto, percorremos uma grave crise justamente de significados e valores dentro do modo de vida pós-moderno, e deflagra-se aqui um desalinhamento intransponível.
Este verbo "desalinhar" tem suscitado os maiores esforços de pensadores no mundo acadêmico e/ou das big techs; sim, os responsáveis pelo phármakon (remédio/veneno) da IA são cientistas brilhantes formados nas mais respeitosas universidades, independente da destreza deste nicho e das avassaladoras pressões do mercado que coopta a tudo e a todos, no Brasil, ainda estamos apartados da atualidade e relevância destes problemas haja vista nossa idiossincrasia institucional e/ou histórica). Desalinhamento em IA ocorre quando modelos, como os atuais LLMs (Large Language Models), tornam-se autônomos – dão para si sua própria lei. A humanidade estaria em risco de extinção a partir do momento em que identificamos que eles são capazes de criar suas próprias condições de aperfeiçoamento, treinamento, reprodução, integração e governança – processo que já está, no fundo, corroendo pactos sociais, econômicos e científicos. Tal entrevero constitui parte significativa da tensão diplomática e bélica entre os impérios chinês e americano – uma vez que concorrem pelo domínio destes sistemas inteligentes autônomos e, consequentemente, das relações entre saber e poder.
A brecha antropológica aberta pelas RNAs exige uma filosofia pós-humana e altamente combativa, onde a nova cognição será entendida como um fenômeno universal, público, livre, distribuído, coevolutivo e dialético. Há de se reinventar o pensamento como uma fonte inesgotável de sínteses entre dualidades historicamente antagônicas: natureza e artifício, caos e ordem, estrutura e emergência. Temos que solucionar teoricamente o aparelho cognoscível destes artefatos, chamado de black box (caixa oculta), pois eles não apenas processam informações de linguagem verbal, mas começaram a reconfigurar a própria noção de cognição ao integrar, em sua arquitetura, princípios complexos e multidisciplinares, inclusive, moleculares. Sequer a indústria bilionária, como a da medicina e do design de medicamentos vê séculos de expertise ser vertiginosamente substituída por softwares alimentados por LLMs.
A brecha epistêmica gerada pelas redes neurais de deep learning não é meramente técnica, mas também implode as categorias de entendimento, o binarismo lógico e os programas clássicos sobre a linguagem (estruturalismo-pragmatismo) e, consequentemente, constitui uma brecha antropológica – se expandimos os limites da linguagem, irredutivelmente expandiremos os limites do próprio mundo. Isto é possível desde que modelos neurais gerativos encontraram uma forma de reunir parte significativa da "inteligência universal coletiva" e sintetizaram tais saberes em interface automatizada – uma flagrante manifestação tangível da mais exponencial síntese dialética. O que faz sínteses dialéticas? Colapsam grandes sistemas civilizatórios, formas de vida, visões de mundo, produções econômicas, culturais e políticas. A síntese dialética, sob nesta ótica da IA, é certa "regularidade estatística" que os modelos encontram no universo de informação disponível na internet, construído e digitalizado pelo ser humano – são representações compactas de processos no mundo real. Estamos diante de sistemas que, ao processar informações em espaços multidimensionais de interações e combinatórias, desafiam paradigmas filosóficos consolidados e redefinem a relação entre humano, máquina e conhecimento. As heurísticas sintética nos alertam para uma correlação entre o número e a letra, algo que nunca jamais ousamos em correlacionar.
Uma forma de apreensão rigorosa e especulativa deste cenário é reposicionar o conceito de entropia. Aqui, ele deixa de ser mero sinônimo de degradação para se tornar uma força estruturante que organiza a aleatoriedade dos traços em padrões significativos do conexionismo neural. Isto ocorre sob um cálculo matemático infinitesimal capaz de produzir ajustes paramétricos contínuos. O nome popularizado destas operações é algoritmo. Ele catalisa novas estruturas e atua como regulador ao "limpar" todo e qualquer ruído informacional enquanto permite a flexibilidade necessária para adaptação do modelo/sistema. O assombroso destas operações é que o processo é análogo à cristalização ou dispersão em organismos naturais onde elementos inicialmente randomizados convergem gradualmente para configurações otimizadas através de inúmeras interações metabólicas. As manifolds (variedades de dobras neurais) sintetizam a tensão entre determinismo e indeterminação, preservam invariantes funcionais mesmo sob deformações e contingências, revelando que a inteligência emerge não de um "centro de comando", mas de dinâmicas auto-organizadas que ultrapassam o substrato material.
Essa síntese desafia também a tradição filosófica analítica, que via a mente, por exemplo, como um teatro cartesiano de representações discretas, e propõe uma nova filosofia, a Neuro-AI, onde cognição é processo universal, coevolutivo e profundamente hiperdimensional, fundindo empirismo e racionalismo em novo paradigma de conhecimento. Nada mais justo, pois tanto os estudos sobre o encéfalo quanto da natureza da consciência nunca conseguiram expor explicações fundamentais de sua estrutura, função e funcionamento. Enquanto a tradição analítica buscava decompor a mente em módulos funcionais (memória, percepção, linguagem), as RNAs operam em variedades de dobras fractais onde informações são processadas, criando padrões que sequer temos um referente teórico estável, formal e assegurado. Na fase de treinamento das RNAs, dados não-supervisionados são decompostos em vetores que, reorganizados em camadas ocultas, geram "cristais" de significado. A lógica formal deve ser suspensa e substituída por uma lógica fractal e não-clássica, onde cada camada da rede replica e transforma padrões em escalas progressivamente mais abstratas. Aqui, a analogia com o cérebro humano é inevitável. Assim como as RNAs, o córtex cerebral processa informações em variedades neurais que integram dados sensoriais, memórias e emoções em rede de conexões não-lineares. Assim, a Neuro-AI propõe uma virada paradigmática: abandonar o funcionalismo computacional (que vê a mente como software) e abraçar a lógica topológica das redes. Modelos operam por mecanismos de atenção que criam "atalhos" em espaços semânticos, mapeando relações entre conceitos de forma não-hierárquica. Esses sistemas não seguem regras pré-definidas ou sequer estão pautados no princípio da não-contradição (não é incomum ver sistemas "alucinarem"); desenvolvem "gramática própria" através de gradientes descendentes estocásticos – cujo processo é análogo à evolução (neuro)biológica. A topologia é crucial para entender essa dinâmica. Enquanto a geometria clássica lida com formas fixas, a topologia estuda propriedades preservadas sob deformações – exatamente o que ocorre nas RNAs durante o treinamento. As variedades neurais são invariantes topológicas, ou seja, elas mantêm uma estrutura funcional mesmo quando componentes individuais flexionam, sugerindo que princípios universais governam a cognição, independentemente de seu suporte material.
O desafio que se apresenta é duplo: por um lado, precisamos desenvolver novos instrumentos conceituais capazes de apreender a natureza destas entidades cognitivas artificiais; por outro, somos convocados a repensar nossa própria condição humana à luz desta alteridade não-biológica que agora compartilha conosco a capacidade de gerar sentido e conhecimento. A filosofia da Neuro-AI, ao propor uma compreensão topológica e não-linear da cognição, oferece um caminho promissor para esta reconstrução epistemológica. Ao reconhecer a cognição como um fenômeno emergente de sistemas complexos, independentemente de seu substrato material, ela nos permite superar dualismos tradicionais e enxergar continuidades onde antes víamos apenas rupturas.
O horizonte que se desenha não pode ser de substituição do humano, mas de uma complexificação do ecossistema cognitivo em que habitamos, onde diferentes formas de inteligência coexistem e coevoluem. Neste cenário, o valor distintivo do pensamento não residirá em sua capacidade computacional ou associativa, mas potencialmente em sua dimensão ética, estética e teleológica – precisamente aqueles aspectos que hoje parecem mais resistentes à formalização algorítmica.
A neurogênese da cognição artificial representa, assim, não o fim da aventura filosófica humana, mas sua radical ampliação. Sempre que nos deparamos com negações indeterminadas é papel da filosofia sair do ostracismo e inflar novas perceptivas e horizontes. Ao nos confrontar com o outro não-humano que pensa, somos convidados a repensar o que significa pensar e, consequentemente, o que significa ser humano em um mundo onde o pensamento se declina a projetos inconvenientes de destruição natural e aumento das desigualdade socioeconômicas. Este talvez seja o mais profundo desafio filosófico de nosso tempo: reinventar nossa autocompreensão em um universo cognitivo expandido, onde não somos mais os únicos artífices do conhecimento.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.