A odisseia do Moisés acorrentado

Adriano Bittencourt

Doutorando em Filosofia (UFC)

06/08/2023 • Coluna ANPOF

A inteligência artificial tem trazido algumas reflexões sérias de intelectuais de diversas  áreas do conhecimento, em particular, no que concerne ao que devemos "permitir" aos robôs  fazerem por nós. Entre as várias discussões que se apresentam nesse debate, chamarei atenção  para as consequências sobre o papel de um personagem que é parte essencial do modo de  produção capitalista, a saber, o especialista.  

Quando me pus a pensar no que fazer profissionalmente, comecei observando os cursos  e carreiras “em alta” e que, por essa razão, apresentavam melhores oportunidades de ganhos  financeiros a um curto tempo. Esses cursos, porém, tinham uma característica que me  desanimava: limitavam-se a um corpo muito restrito de informações sobre o assunto que se  destinavam a abordar. Eram, em sua maioria, técnicos ou graduações tecnológicas: óptica,  informática (e seus vários “ramos”), enfermagem, administração, contabilidade etc. Não há  nada de errado em optar-se por quaisquer dessas formações, no entanto, àquela altura, eu não  conseguia me encaixar em nada! Assim, lendo “uma coisa aqui e outra ali” ingressei em uma  faculdade de filosofia. No primeiro ano de curso, pensei em mudar para física, mas depois fui  me familiarizando e logo comecei a me perguntar como uma área que se “comunica” tanto com  os demais campos do saber se tornara tão restrita à academia. Existiam várias respostas para a  indagação que fazia, mas a que escolhi para esse texto se refere propriamente à forma como o  conhecimento precisou “caber” dentro de um sistema cuja meta é, objetivamente, associar o  saber aos lucros.  

A chamada “especialização” é um fenômeno decorrente da divisão social do trabalho cujo propósito seria oferecer um maior grau de precisão analítica em função do tempo,  restringindo a pesquisa ao escopo das tarefas realizadas no âmbito de um mundo que, de modo  cada vez mais célere, iria se complexificando tecnologicamente. Analisemos brevemente um personagem capital nesse contexto: o engenheiro. A outrora ideia “romântica” do físico que  “sabe de filosofia à astronomia”, como um Einstein, Heisenberg ou Schrödinger, ou mesmo, de  modo irreverente, um “Sheldon Cooper” [1], fora progressivamente reduzida à figura, vale dizer, genérica, do “engenheiro”, o qual teria “muito mais” a oferecer ao industrial do que o físico puro por fazer o “ajuste” entre as exigências do mercado e a pesquisa científica sem se importar  com aprofundamentos teóricos. [2] 

Tomamos a engenharia como exemplo por ser ela peça-chave na consolidação do  processo de decomposição de saberes nas sociedades industriais, mas é óbvio que o fenômeno  da especialização vai muito além de uma única área de conhecimento. Não obstante os exageros  e anedotas que circulam nas faculdades de física, é inegável a enorme relevância dos diversos  ramos da engenharia na sociedade e na pesquisa em geral. 

Acontece que hoje vemos de modo mais claro o que resultou daquele progressivo ajuste a um sistema cuja lógica inexorável “fecha a porta do paraíso com espada de fogo”, deixando nos perplexos tal como um Moisés: fizeste-nos caminhar contigo e não pudemos ver a terra  prometida! Os longos anos de dedicação a ser uma função no sistema agora assombra: o risco  do supérfluo cavalga à altíssima velocidade em direção aos seus criadores especialistas. Decorre, portanto, duas alternativas: ou jogamos o sistema no lixo ou vamos para o lixo do  sistema! 

É irrelevante entrarmos no mérito de elencar a enxurrada de profissões e funções que  progressivamente têm sido “vítimas” d(x) Sr.(x) Máquina” (que não reclama e não precisa de  salário!), iniciando com a substituição do trabalho humano em algumas funções nas fábricas e  indústrias e, atualmente, realizando operações tecnologicamente complexas nas diversas  atividades no mundo do trabalho. Assim, à sombra do que hoje se apresenta como futuro para  a humanidade, é preciso repensar o que o próprio sistema fez com o homem, absorvendo a  maior parte do seu tempo, deixando-lhe apenas migalhas para desenvolver-se em outras atividades, para usá-lo como gerador de lucro até, por fim, descartá-lo. Desse modo, como os  deuses, um dia criadores, foram substituídos pelos homens, estamos vivendo a época em que  os homens, os criadores da máquina, pressagiam serem solapados pelas suas criações, e podemos até mesmo imaginar, no futuro, um protótipo, ao estilo de um Xenófanes ou Nietzsche, ensinando aos seus alunos: “os homens são uma ilusão”. E, considerando o Sistema, estariam  errados?  

[1] Personagem da famosa sitcom, The Big Bang Theory, interpretado por Jim Parsons, o qual emula, de modo  caricato e cômico, as idiossincrasias de um intelectual acadêmico diante das praticidades do cotidiano.

[2]  Sobre esse assunto, ver, de Max Horkheimer, Eclipse da Razão.