A pesquisa histórica em Simone de Beauvoir

Magda Guadalupe dos Santos

Profa. Dra. (PUC/MG/UEMG)

03/03/2022 • Coluna ANPOF

Nas universidades do mundo inteiro, Simone de Beauvoir é lida de distintas perspectivas. Seus escritos são traduzidos do francês para as diversas línguas do Ocidente. Beauvoir esteve também no Japão e na China, nos anos 1960, onde se manifestou sempre crítica ao colonialismo europeu, suas entrevistas e conferências tendo sido traduzidas para aquelas línguas [1].

Tenho dedicado meus últimos quarenta anos ao estudo de filosofia e teorias feministas, especialmente sobre Simone de Beauvoir. Estes são temas de investigação que exigem reflexão e pensamento crítico e não podem ser falseados, repetindo-se falsos clichês para servir ao comodismo de não ousar pensar. Registre-se que as obras de Simone de Beauvoir sempre foram objeto de pesquisas também nas universidades brasileiras.

Sob o olhar crítico da Lei de Talião

Leciono filosofia na Faculdade de Direito da PUC Minas e, a cada semestre, preparo um seminário sobre um escrito de Beauvoir, publicado na revista Les Temps Modernes, em 1946, intitulado “Œil pour œil” (Olho por olho). Nele, Beauvoir relata como os colaboracionistas franceses foram julgados e condenados pelo Estado francês, após a desocupação nazista, ocorrida em 1944. Entre os acusados, políticos e jornalistas, alguns incitavam ações antissemitas, assinavam artigos discriminatórios, especialmente do jornal Je suis partout. O texto trata da difícil fase de ocupação nazista em território francês, de 1940 a 1944, das prisões e torturas praticadas pelos colaboracionistas e pela Gestapo, bem como do ritual dos julgamentos ocorridos em 1945, os quais chamavam a atenção do público sem satisfazer os anseios de reparação pelos acontecimentos vividos. 

Após a Segunda Guerra ocorrendo o “Acerto de contas”, para a reorganização das políticas internacionais, Beauvoir reflete sobre a passagem, na França, da situação de “vingança individual” para a autoridade da “sanção do Estado”, visando recuperar o equilíbrio social perdido durante a guerra. A expressão olho por olho é uma referência à Lei de Talião, que já sustentava o Código de Hamurábi, no século XVIII a. C. Entretanto, o que se destaca no texto é a necessidade de o Estado francês do pós-guerra “restaurar uma comunidade humana conforme a ideia que esta se fez de si mesma, manter os valores que o crime havia negado” [2]. Conforme Michel Kail [3], Beauvoir se depara com a dificuldade de “retomar as noções de vingança e de justiça, na perspectiva da filosofia da liberdade, aqui rudemente solicitada”. No pós-guerra, não são conceitos simples de serem revisitados.

Durante os anos de ocupação nazista, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, com outros intelectuais, criaram um grupo de resistência denominado “Socialismo e Liberdade”. Em A Força da Idade, ela relata sobre o grupo e descreve em minúcias, numa narrativa de diário, as vicissitudes dos anos sombrios: “politicamente, vimo-nos reduzidos a uma impotência total” [4]. Trata-se possivelmente da mesma sensação que temos hoje diante de novas guerras, incluindo a atual, da Rússia contra a Ucrânia.

Mas o grande escândalo que Beauvoir causa em certas leitoras deve-se à publicação, em 1949, de O segundo sexo. Como esta obra é considerada o berço do feminismo do século XX, muitas a veneram, pelo tom desafiador à tradição patriarcal, outras a temem, por terem tido acesso apenas a alguns de seus trechos; nem todas sabendo lê-la em sua complexidade, deturpando-lhe o sentido. Como o livro foi escrito de forma crítica aos costumes e imposições culturais, em defesa dos direitos das mulheres, há quem se sinta perturbado pela condição de Outro e por tal situação ser naturalizada no ethos da cultura.

Nos fios da memória

Beauvoir nos deixou várias obras de Memória, em que relata a história do século XX, como observadora e escritora de suas mudanças. Nelas estão tanto detalhes dos acontecimentos vivenciados, quanto narrativas das variações históricas. Seus temas versavam sobre valores morais e políticos, cujos signos eram interpretados em função da sociedade temporalizada e das individualidades existentes. Julia Kristeva destacou, na apresentação da tradução italiana de O segundo sexo, como Beauvoir “manifesta a sua capacidade de perseguir uma filosofia política da liberdade no microcosmo do íntimo” [5]. Transitava do universal ao singular, permitindo-se ir a fundo nos problemas históricos e individuais.

No segundo volume de Na Força da Idade, ela relata, entre acontecimentos históricos e vivências singularizadas, aspectos de sua vida como professora, tomando-se como inovadora em estilos e linguagem, tratando suas alunas com amizade e atenção, apesar do distanciamento hierárquico nas instituições de ensino. Algumas alunas lhe escreviam sobre suas vidas, dela se aproximavam, desejosas por ouvir algo sobre liberdade num mundo cercado por rígidas regras morais.

Em seus relatos lê-se especificamente como ela se depara, após doze anos de docência, com a fúria da mãe de uma de suas alunas, que recebe nos escritos de Mémoires o nome de Lise. A filha teria “deixado escapar um partido vantajoso”, e a mãe sugeriu a Beauvoir que usasse sua “influência para fazê-la voltar a seu primeiro amante” [6]. Diante de sua recusa, a mãe a denuncia por “desencaminhamento de menor”. Conforme Beauvoir, “antes da guerra a coisa não teria tido consequências; com o bando de Abel Bonnard foi diferente” [7]. Beauvoir relata que no final do ano escolar (de 1941), foi-lhe comunicado que ela “estava excluída da Universidade” [8]. Numa nota de rodapé da mesma página, ela aponta haver obtido sua reintegração por ocasião da Libertação (na desocupação nazista); contudo ela nunca mais retornou ao ensino [9]. A escrita já havia incorporado a sua vida e escrever era a sua condição existencial maior.

Amor necessário e amores contingentes

Ao lado do filósofo Jean-Paul Sartre, seu companheiro de vida, Beauvoir deu várias conferências pelo mundo, inclusive no Brasil, em 1960. Ambos firmaram um pacto de amizade e amor, prometendo um ao outro nunca se casarem, nem entre si e nem com outras pessoas. Diziam criar um “amor necessário” entre si – e poderiam viver com outras pessoas apenas “amores contingentes” [10]. Nunca viveram falsos moralismos, sempre relataram um ao outro e ao mundo a paixão pela escrita, o reconhecimento das diferenças. Em certas ocasiões, a condição experimentada de amor contingente era sentida pesadamente por uma das amigas, embora todas soubessem do pacto estabelecido entre eles. Entre elas, Bianca Lamblin, que, nas Mémoires, ganha o pseudônimo de Bianca Bienenfeld, sentiu-se seduzida pelos encantos intelectuais de Sartre, mas se escandaliza ao descobrir que ele recontava a Beauvoir os seus encontros amorosos. Diversas personagens se apresentam nos escritos memorialísticos, como Olga e Wanda Kosakievicz, Camille, Gegé, Louise Perron, Lise, entre outras. Seus nomes são criações de escrita, embora as personagens fossem reais. No círculo de amizades, algumas delas viveram claramente a situação de amor contingente. Não se pode esquecer como, no caso de Beauvoir, houve o longo embora interrupto romance com o escritor norte-americano Nelson Algren [11]. Suas cartas são objeto de um livro prefaciado por Sylvie Le Bon, sua filha adotiva e guardiã de suas obras, que compreende ser esta ligação amorosa “não o encontro de um outro eu, que é o mesmo, como fazem, por exemplo, as cartas a Sartre, mas o encontro de um outro, tout court (e nada mais do que isto)” [12]. Conforme Le Bon, além da diferença há algo que “sempre impõe aos dois protagonistas um banal, porém contínuo estatuto de ‘estrangeiro’”; eles são compreendidos pelos leitores por meio do “estereótipo da francesa e do americano” [13]. Este distanciamento tanto os separa quanto os atrai.

Não nos compete julgar formas de comportamento moral ou sexual de personagens reais da história. O relacionamento entre Beauvoir e Sartre para muitas pessoas ainda hoje parece um tanto escandaloso; tais apreciações podem transparecer falsos moralismos em tempos de descriminalização do adultério, de revisão do que pode ser considerado “violação dos deveres do casamento como fator de insuportabilidade da vida em comum”, conforme a codificação penal e a civil da atualidade, inclusive, brasileiras. A lei, como ponto máximo dos costumes, não deixa mentir o que a conjugalidade atual demanda como vínculos familiares e afetivos.

Segundo Julia Kristeva, Sartre e Beauvoir teriam “reinventado o sentido mesmo de casal”; tendo sido de competência de Beauvoir criar “a palavra que convém à arte de viver”, e que, pela escrita, garante aos leitores “um diálogo entre dois indivíduos autônomos, com o sexo e para além do sexo” [14]. Eles ressaltaram uma forma de entendimento que parecia faltar ainda para ser inventada, tendo a liberdade e a autonomia individual como pontos de partida.

Como forma de conclusão, convido a todas para lerem seus escritos, para que, especialmente, a história das mulheres não possa mais ser escrita por outros sujeitos que não elas mesmas. Nós somos os sujeitos de nossa própria história e devemos sempre nos orgulhar disso e sempre saber diferenciar verdade de falsidade. Este é um lema beauvoiriano! 

[1] Conforme Claude Francis e Fernande Gontier, editores de Les écrits de Simone de Beauvoir de setembro a outubro de 1966, Beauvoir e Sartre foram convidados por seu editor japonês e pela Universidade de Keio para uma série de conferências. “Todos os livros de Simone de Beauvoir e de Sartre são traduzidos em japonês”. FRANCIS, C.; GONTIER, F. Les écrits de Simone de Beauvoir. La vie- l’écriture. Paris: Gallimard, 1979, p.79.

[2] BEAUVOIR, Simone de. Œil pour œil. In: BEAUVOIR, Simone de. L’existentialisme et la sagesse des nations. Paris: Gallimard.  2008, p.85-111. p.97.

[3] KAIL, M. Une Leçon de lecture.  Présentation. BEAUVOIR, Simone de. L’existentialisme et la sagesse des nations. Paris: Gallimard.  2008, p.I-X.

[4] BEAUVOIR, Simone de. Na Força da Idade. Tradução de Sérgio Milliet. v.II. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961. p.119. Continua Beauvoir. “Para nós que não queríamos consentir no triunfo do Reich e não ousávamos confiar em sua derrota, foi este um período tão ambíguo que até a recordação que dele guardei se turvou. Senti muitas vezes quanto seria difícil, com a volta da paz, falar dessa época a quem não a tivesse vivido”.

[5]  KRISTEVA, J. Prefazione. In: BEAUVOIR, Simone de. Il secondo sesso. Traduzione di R. Cantini e M. Andreose. Milano [1961] 2008, p. 9-13, p.13.

[6]  BEAUVOIR, Simone de. Na Força da Idade. v.I. 1961. p.155.

[7] Segundo LITTLEJOHN, David. The Patriotic Traitors. London: Heinemann, 1972, p.222, Abel Bonnard foi um dos ministros da Educação Nacional durante o regime de Vichy, na França, entre 1942 a 1944. Era membro do grupo de colaboracionistas, visando estreitar laços culturais entre França e Alemanha neste período de guerra. Foi membro expulso da Academia francesa após 1944, taxado de colaboracionista, condenado, à revelia, à morte durante o período da expurgos legais (épuration légale) pelas atividades de guerra, fugindo para a Espanha franquista.

[8] BEAUVOIR, Simone de. Na Força da Idade. Tradução de Sérgio Milliet. v.II. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961. p 155. La force de l’âge. Tome I. Paris: Gallimard, [1960] 1985. p.618.

[9] BEAUVOIR, Simone de. Na Força da Idade. v.II. 1961. p.155. La force de l’âge. 1985. p.618.

[10] BEAUVOIR, Simone de. Na Força da Idade. 1961. p.19. La force de l’âge. Tome I. 1984. p.288.

[11] BEAUVOIR, Simone de. Cartas a Nelson Algren. Um amor transatlântico. 1947-1964. Tradução de Márcia. N. Teixeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

[12] LE BON DE BEAUVOIR, Sylvie. Apresentação. In: BEAUVOIR, Simone de. Cartas a Nelson Algren. Um amor transatlântico. 1947-1964. Traducção de Márcia. N. Teixeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p.9.

[13] LE BON DE BEAUVOIR, Sylvie. Apresentação. In: BEAUVOIR, Simone de. Cartas a Nelson Algren. 2000. p.8.

[14] KRISTEVA, Julia.  Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, ou a reinvenção do casal. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.162, jul-set. 2005. p. 37-46. p.46.