A posição social no Brasil como arma política

Marcelo Vinicius Miranda Barros

Doutorando em Filosofia pela UFBA; membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da ANPOF

08/09/2022 • Coluna ANPOF

A edição de 2021 do relatório sobre riqueza global feito pelo banco Credit Suisse, mostra que o Brasil não somente permanece como um dos países mais desiguais do mundo, como ainda essa situação vem se agravando. “A desigualdade de riqueza é alta na América Latina, especialmente no Brasil, que tem um dos mais altos níveis de desigualdade de riqueza no mundo. O índice de Gini, que aponta a desigualdade de uma economia, mostra que coeficiente de riqueza em 2020 foi de 89, acima dos 84,7 em 2000. Essa riqueza se concentra nas mãos de 1% da população mais abastada que é agora dona de 49,6% contra 44,2% em 2000”, afirma [1].

Esse breve relatório se apresenta somente como uma fundamentação para a desigualdade social no Brasil que estamos afirmando, com intuito de prosseguimos com o nosso objetivo principal, a saber, como pensar em um país desigual que acredita em posição social em detrimento da consciência de classe.

Entendemos, grosso modo, que para o filósofo Axel Honneth a falta de reconhecimento se refere as patologias sociais que dizem respeito aos comportamentos humanos que violam os princípios morais e éticos, ou melhor, que não reconhecem o direito do outro, fazendo deste um sujeito sem sentimentos [2]. Com efeito, Honneth mostra o quanto o ser humano dependente do reconhecimento social. Ele sustenta, a todo o momento, a complexa rede de relações intersubjetivas em que a humanidade está vinculada, assim, tendo como consequência uma dependência estrutural do reconhecimento de um com outros seres humanos.

Contudo, vivemos em uma época de luta de posição social. Isto é, a luta de classes designa os conflitos sociais entre os integrantes das classes mais abonadas e os das classes desprovidas financeiramente, o que dividiu a sociedade em proprietários, a burguesia, e trabalhadores, o proletariado. Marx, Proudhon e Bakunin, cada um à sua maneira, afirmaram que a luta de classes seria o motor de radicais mudanças sociais. Isso é algo que ainda está presente no Brasil, mas que a modernidade ofuscou.

Com o surgimento da modernidade, essas classes não continuaram tão nítidas assim, foram ofuscadas, pois, hoje, há uma aparência cada vez maior da mudança de lugar dos indivíduos brasileiros na sociedade. Isto é, o Brasil continua sendo muito desigual, com poucas possibilidades de ascensão social, mas há uma ideologia que permeia a nossa estrutura social e que é operacionada pelo neoliberalismo que se diz flexível, isso na acepção de que o indivíduo acredita poder obter um relativo sucesso – acredita ser responsável pelo seu destino – ao mesmo tempo em que na prática mostra-se a real impossibilidade de um caráter emancipador.

Assim, o indivíduo não se reconhece mais como pertencente a um grupo social brasileiro, mas sim como categorias dessocializadas: ao invés de proletariado e burguesia, tais indivíduos enxergam posições sociais que retiraram a nitidez da divisão de luta de classes. Há, agora, a luta pela posição social que se revela em níveis. A variação gradativa, a passagem sutil e fluída de uma posição para outra, confundem indivíduos enquanto o seu lugar na estratificação social. Se outrora havia um lugar relativamente fixo, no qual se ocupava um lugar determinado, hoje há o chamado multipolar, que é uma ordem dinâmica que leva o individuo a mudar de lugar no decorrer de sua existência ou até ocupar diversos lugares ao mesmo tempo.

Não há mais um sentimento de pertencimento, mas de suposto multipertencimento que se tornou em uma estratégia para que o indivíduo não se identifique com um único lugar, afastando dele aquela consciência de classe. Nessa perspectiva, a luta de lugares tende a substituir a luta de classes. Com isso, traz uma suposta liberdade de escolha e, ao mesmo tempo, uma competição que acarreta insegurança, medo e exclusão social. Temos uma sociedade fragmentada e frágil. Hoje, o indivíduo não tem mais uma referência com um grupo, ele agora é a sua própria referência enquanto posição social que promete a “própria realização”. O que parece uma liberdade, faz com o que o “eu” de cada um dos seres humanos se torne em seu próprio fardo. Sem a classe, o adoecimento mental está ligado a uma desclassificação.

Isso mostra que todo problema pessoal é ao mesmo tempo um problema social. Os indivíduos não são somente psicologicamente portadores de afetos, emoções, como também de aspectos ideológicos, culturais, econômicos. É assim que ele vai ancorar a sua própria história. Sem sentimento de pertencimento a um grupo ou classe, como outrora denunciado pelo pensamento marxiano, o indivíduo parece pertencer a uma clivagem entre o mental e o social, impondo-se existencialmente, ciente ou não disso, em duas cenas independentes. Uma seria “interna”, com afetos, emoções e representações, e a outra seria “externa”, onde há desafios econômicos e socais, constituindo as condições concretas de existência que definem as relações sociais.

Essa clivagem vai contrariar o entendimento de que tal indivíduo é um ser social, e que se dá em uma única cena. O “interno” e o “externo” idealizado pelo ser humano são coisas distintas que jamais poderiam se comunicar, o que o coloca como um ser abstrato e, assim, em conflito. Tentar se compreender na atual conjuntura é perceber o peso da história enquanto uma dialética entre a história pessoal e a história social, senão a cisão que coloca o indivíduo no abstrato faz com que ele não saiba de onde veio, com efeito, não permite saber “quem ele é”, ou seja, não admite criar uma identidade para si. Fora da luta de classes, e dentro da luta de posição social, o indivíduo com sentimento de não pertencimento invoca uma angústia, por a sua posição social não ser “unidimensional”.

Esses deslocamentos sucessivos de posição social afrontam o próprio indivíduo em um constante trabalho de ajustes. Essa omissão da luta de classes coloca o problema do deslocamento social como fundamentalmente relacionado ao desenvolvimento do individualismo que, por sua vez, torna-se difícil uma experiência de alteridade, pois o outro é “anulado” pela consciência de posição social que existe em detrimento da consciência de classe. A frase clássica “você sabe com quem está falando?” descreve bem essa situação.

É devido a esse ser humano estar socialmente em conflito e carecido pela busca da possiblidade de deslocamento, mesmo que não consciente, é que há uma imaginação de um lugar distinto da sua realidade concreta. A falta de apreensão de uma realidade concreta tenta ser compensada pela imaginação. As lacunas existenciais precisam ser preenchidas de modo que o mundo faça sentido para o indivíduo, caso contrário ele se encontra no não-lugar. Assim, é com esse sentimento de não pertencimento que se abre a ambiguidade de tal sentimento que gera a necessidade da luta pelo reconhecimento ao mesmo tempo em que isso se torna condição para uma ideologia alienante da posição social.

Esse reconhecimento diz também respeito a um indivíduo que reivindica o direito a possuir sua identidade reconhecida nas relações intersubjetivas. Isso reverbera na política identitária que, distanciando-se da luta de classes, mentem uma pauta identitária que interdita o debate político mais elementar e seu discurso sectário se afasta do diálogo popular. Isso é a busca do sentimento de pertencimento por parte do indivíduo, por exemplo; é o afastamento do não-lugar que o coloca na invisibilidade social, mas que, por outro lado, é o mesmo sentimento oriundo da fluidez da posição social que permite expressar o individualismo que caracteriza a fragilidade do indivíduo frente a incerteza da vida. Logo, esse sentimento se torna ambíguo.

Muitas vezes utopicamente tal indivíduo almeja o melhor lugar na sociedade, já que não se trata mais de consciência de classe, mas sim de consciência de posição social. Nisso há uma fluidez que, por ser fluída, cria uma falsa esperança que poderá ter uma nova posição social e, se caso a tenha, acredita ser fixa. Sem se dar conta, na disputa com o outro, o indivíduo se contradiz ao acreditar que pela fluidez pode alcançar novos voos ao mesmo tempo em que crer ser fixo o que conseguir alcançar. Isso é resultado de um reconhecimento como status.

Por isso, como já dito, a relevância que Honneth também considera ao reconhecimento nas relações intersubjetivas, mas sem negar o Estado que é uma mediação entre um indivíduo/coletivo e o outro em uma participação direta da intersubjetividade. Na verdade, a criminalização do racismo e da homofobia, por exemplo, não vieram do Estado, este foi pressionado por movimentos sociais e, mesmo que agora o racismo seja crime, não se quer dizer que o racismo desapareceu da sociedade, porque a patologia social é muito mais extensa, mais ampla, do que a estrutura legal.


Notas

[1] CREDIT SUISSE. (2021, p. 53). “Brazil, Chile and Mexico”. In.: Global wealth report 2021. Zurique: Credit Suisse Research Institute, E-book. Disponível em: https://www.credit-suisse.com/about-us/en/reports-research/global-wealth-report.html. Acesso em: 31 de maio de 2022.
[2] HONNETH, A. La société du mépris: vers une nouvelle théorie critique. Paris: La Découverte, 2006, p. 286.

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