Achille Mbembe, Judith Butler e Slavoj Zizek: Um Punhal nas Costas do Pensamento

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

20/04/2023 • Coluna ANPOF

Achille Mbembe, Judith Butler e Slavoj Zizek, três filósofos que desfrutam hoje de enorme visibilidade internacional, pronunciaram-se em termos inequívocos sobre a Guerra da Ucrânia. “Na Ucrânia, vejo sobretudo o impulso colonial russo: um povo melhor armado e economicamente mais forte quer impor sua lei a outro considerado mais fraco”, explicou Mbembe em uma entrevista. Butler foi um pouco mais longe e caracterizou Putin como um psicopata. “Bem, não tenho certeza se Putin se importa se sua guerra é legítima ou não. Talvez ele esteja efetivamente dizendo que recorrerá à guerra quando quiser, por qualquer motivo que desejar, e ele está desafiando a comunidade internacional a detê-lo. O problema, claro, é como você impede alguém que está disposto a usar força letal contra civis inocentes para atingir seu objetivo. (...) Acho que é muito difícil responsabilizá-lo perante o direito internacional ou as regras da guerra aceitas porque ele ri dessas regras. Ele não se importa com essas regras.” Em um artigo de opinião publicado no The Guardian, Zizek também deixou claro de que lado está. “Hoje, ninguém pode ser de esquerda se não apoiar inequivocamente a Ucrânia.” O título do artigo—“O pacificismo é a resposta errada à guerra na Ucrânia”—parece um grito de guerra dos vingadores.

O curioso é que nenhum dos três levou em consideração o papel desempenhado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte e pelos Estados Unidos na deflagração do conflito. Vedando obstinadamente os próprios olhos—e os olhos dos seus leitores—, os três vingadores omitiram habilmente as maquinações da OTAN e dos EUA. Nada sobre o apoio ao golpe de estado que tirou Viktor Yanukovych do poder. Nada sobre a ofensiva do novo governo contra ucranianos falantes do russo. Nada sobre o financiamento americano a neonazistas ucranianos. Nada sobre o “Foda-se a União Europeia” da embaixadora americana Victoria Nuland. Nada sobre a obra de engenharia social operada na Ucrânia que custou bilhões de dólares aos cofres dos EUA. A narrativa do três vingadores—perfeitamente alinhada aos ditames de Washington e da grande mídia ocidental—é curta e grossa. Putin é o grande vilão da história. De uma forma ou de outra, a Rússia precisa ser detida. Quem quiser refazer a cadeia causal dos acontecimentos que levaram à guerra acabará forçosamente chegando à subjetividade convoluta de Putin, às suas aspirações imperialistas e ao dia 24 de fevereiro de 2022. É dicotomização e descontextualização para dar e vender.

É difícil imaginar uma perspectiva mais superficial das coisas. Ela é eloquente, florida e implacável na adjetivação. Ela é bradada com vigor. No entanto, ela não é mais profunda do que uma poça d’água sob o sol do meio-dia. E o mais importante, ela já tinha sido eviscerada por John Mearsheimer há quase uma década em um artigo amplamente citado. Se Mbembe, Butler e Zizek são bons exemplos do que a filosofia tem a dizer sobre a Guerra da Ucrânia, então a filosofia está em maus lençóis. Os vingadores não poderiam ter feito o dever de casa antes de se pronunciarem? A internet não é difícil de usar. Embora o Google não tenha escrúpulos, é possível, sim, perfurar a cortina de fumaça sem muito esforço (ainda mais usando o DuckDuckGo). O próprio The Guardian—onde Zizek publicou suas invectivas—já tinha revelado em 2004 que os EUA estavam financiando tumultos na Sérbia, na Geórgia, e, claro, na Ucrânia. Sim, em 2004. Há quase duas décadas. A notícia não é nova. 

Por que são praticamente inexistentes as produções hollywoodianas que desafiam a imagem heróica que os EUA pintam de si mesmos? Não se trata apenas de nacionalismo barato. Não se trata apenas de QI baixo. A incapacidade de reflexão da indústria cinematográfica americana é resultado da presença ativa do aparato de defesa em Hollywood. Ela não é independente. Ela não tem autonomia para decidir sobre suas próprias produções. Os militares chegam a reescrever roteiros. O mundo inteiro assiste a propaganda militar comendo pipoca. 

Não é só o cinema hollywoodiano que é mantido na coleira. A mesma coisa acontece com o sistema universitário americano—onde dois dos nossos três vingadores fizeram suas carreiras. O aparato de defesa dos EUA recebe forte apoio das universidades desde os tempos da Guerra Fria. E as coisas pioraram significativamente depois do colapso das Torres Gêmeas (e da Torre 7, que desabou sem ter sofrido impacto de nenhum avião). Segundo a cartilha, o racismo e o sexismo podem e devem ser criticados com regularidade. Mas não a política externa dos EUA. A crítica tem limites. Quem cruza a linha precisa pagar o preço. A liberdade de expressão, tão alardeada pelos americanos, também precisa se submeter à lógica de dois pesos e duas medidas

Então a russofobia dos vingadores não surpreende. Se colocassem em questão as ambições geopolíticas e estratégicas dos EUA, dificilmente teriam virado celebridades intelectuais. Possivelmente jamais teriam conquistado a cena universitária internacional. Pois estariam comprando briga com quem dá as cartas. Desafiar a narrativa de Washington é bastante prejudicial à carreira—seja no cinema, no jornalismo ou na academia. E não só para quem está em território americano. A lei dos EUA vale para o mundo todo. Ao que tudo indica, para se ter sucesso hoje é preciso cravar um punhal nas costas do pensamento. 



 

DO MESMO AUTOR

Teste seus conhecimentos: teoria da conspiração ou teoria do sabidão?

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

22/05/2023 • Coluna ANPOF