Apologia de Pangloss ou sobre como banalizar a filosofia para fins motivacionais

Francisco José Dias de Moraes

Prof. UFRJ

21/01/2022 • Coluna ANPOF

Pense assim: sua felicidade depende apenas de uma decisão repentina sua, de um desejo e de uma coragem de mudar bruscamente o rumo de sua vida. Deixar uma profissão, um relacionamento ou um emprego desgastante e buscar algo novo que traga mais prazer e bem-estar. A pandemia, neste sentido, pode ter sido uma boa coisa, já que deu aquele empurrãozinho que faltava e ajudou muitas pessoas a encararem o futuro de maneira mais promissora, alcançando um presente mais agradável. Pense apenas em seu presente e todos as suas angústias desaparecerão num piscar de olhos! A felicidade está ao seu alcance! Basta um pouco de força de vontade para apanhá-la. Afinal, como diria Pangloss, o “filósofo” satirizado por Voltaire em Cândido, ou o otimismo, “aqueles que afirmaram que tudo está bem disseram uma bobagem; era preciso dizer que tudo está o melhor!” (VOLTAIRE, 2021, p.29) Esta é a mensagem da matéria, publicada na edição de 22 de dezembro de 2021 da Revista Veja, intitulada “Em busca do tempo perdido”, assinada por Duda Monteiro de barros, Nathalie Hanna e Ricardo Ferraz. A matéria, que recebeu destaque na capa da revista, faz apologia do otimismo, ao estilo panglossiano, e traz exemplos concretos de mudanças “para melhor” de pessoas de carne e osso impulsionadas pela pandemia, terminando com os votos de que “todos encontrem a felicidade”. Seria apenas mais uma dessas matérias costumeiras de final de ano não fosse por um detalhe: o uso impróprio e abusivo da filosofia para embasar essa postura, o que termina emprestando à matéria um ar de “coisa séria” que não se coaduna com o seu conteúdo e menos ainda com o seu propósito. É um exemplo eloquente da extrema banalização da filosofia entre nós. Como chegamos a esse ponto? 

Para começar, é preciso fazer uma distinção preliminar. Há duas espécies bem distintas de otimismo: a primeira encarna o desejo de que as coisas exteriores, certos bens externos valorizados e certos acontecimentos, saiam conforme o esperado e assim nos tragam a felicidade. Já a segunda corresponde à confiança que depositamos em nós mesmos no sentido de alcançar a vida que desejamos e de preservá-la, mesmo em meio a circunstâncias adversas. Em ambos os casos, o otimismo supõe a compreensão de que as coisas não são simples de serem resolvidas; nota-se um pessimismo insuperável, seja em relação a nós mesmos seja em relação à capacidade de os eventos exteriores serem fontes autênticas de felicidade para nós. Os filósofos gregos, que eram obcecados pelo assunto, entendiam que a ε?δαιμον?α, palavra que traduzimos por felicidade, não podia ser pensada em desconexão com a virtude. Eram, portanto, defensores convictos da segunda forma de otimismo. No entanto, é preciso que se diga, essa visão dos filósofos gregos estava longe de representar a opinião da maioria. Os gregos eram apegadíssimos à ideia de que o futuro incerto podia trazer-lhes grandes desventuras e grandes venturas. Não por acaso acreditavam piamente em oráculos. Em seus mitos e em suas tragédias, assim como na Ilíada e na Odisséia de Homero, fica manifesta a crença de que os homens dependiam, no que diz respeito a sua felicidade, de poderes superiores e imprevisíveis. Ritos e oferendas eram direcionados aos deuses como forma de atrair o favor divino e prevenir a sua ira, a sua inveja (φθ?νος). Tal influência divina abarcava inclusive as decisões tomadas pelos heróis, já que estas podiam ser “plantadas” por uma divindade que assim dirigia o curso dos acontecimentos. 

A imprevisibilidade dos assuntos humanos deixa um grande espaço para a forma de otimismo que consiste em buscar assegurar, magicamente, que o futuro nos traga venturas e não desventuras. Pode-se dizer que a forma de otimismo que se baseia na confiança que depositamos em nós mesmos surge com a própria filosofia e com o entendimento de que o homem possui uma alma, um si mesmo, que pode fazer frente a essa imprevisibilidade. Um fragmento que chegou até nós de Heráclito de Éfeso, do século VI a.C, diz exatamente isso: ?θος ?νθρ?που δα?μων (“o caráter é o destino”, DK 119, tradução de Dodds). De forma contundente e marcante, já na época clássica, Platão levará a cabo a obra monumental de estabelecer a alma como sede da personalidade humana. O otimismo de Platão estava integralmente baseado na existência filosófica, tal como ele a havia reconhecido em Sócrates. No Fédon, diálogo que retrata os últimos momentos de vida de seu mestre, vemos Sócrates empenhar-se em demonstrar, por meio de argumentos, a imortalidade da alma. O filósofo seria o único capaz de não temer a morte, pois durante toda a vida nada mais teria feito do que exercitar o morrer. Com isso, a morte torna-se uma forma de ação, aquela forma de agir característica do filósofo - o puro pensar - deixando de representar um evento exterior e absolutamente temível. É o pessimismo radical em relação à capacidade de a pólis assegurar a verdadeira justiça que leva ao otimismo, possivelmente extremado, do filósofo autárquico e feliz. Todas as escolas filosóficas do período helenístico, de maneiras diversas, apostaram nessa mesma postura como a via mais adequada para não atrelar a felicidade às circunstâncias contingentes e ao arbítrio humano. Epicuristas, estoicos e céticos elegeram a ?ταραξ?α (imperturbabilidade da alma) como sinônimo de felicidade.  Estes abraçaram o ideal do sábio e, apesar de o formularem diferentemente, foram todos otimistas à maneira socrático-platônica. 

O que se pode, legitimamente, esperar da filosofia em termos práticos? Talvez sua maior utilidade seja mesmo a de mostrar-se perfeitamente inútil, se pensarmos em sua aplicabilidade imediata para fins motivacionais. A filosofia não serve, sem dúvida, para fomentar o otimismo, caso o entendamos como a postura geral a ser difundida, como receita de felicidade pronta e acabada, que deixa para trás o pessimismo “paralisante e contraproducente”. A filosofia, em termos práticos, nos confia a nós mesmos em nossa singularidade. Ela é, por assim dizer, a memória de uma negatividade irredutível a toda e qualquer positividade. O otimismo, desde a perspectiva concreta da vida singular, não pode ser isolado do pessimismo, pois este é o seu próprio fundo possibilitador. 

De volta à matéria da Revista Veja, cabe dizer que a incrível banalização da filosofia para fins motivacionais leva ao absurdo de apresentar um Heráclito “otimista”, grande entusiasta do devir incessante e da perene capacidade de as pessoas se reinventarem sempre, já que o mundo, para ele, estaria em constante mudança e movimento, já que “uma mesma pessoa nunca entra no mesmo rio duas vezes”. Mas se tudo é impermanente, por que não supor antes que sejam vãs todas as tentativas de conferir consistência e durabilidade à nossa vida por meio de nossas ações e decisões? Bastaria “seguir o fluxo” e “dançar conforme a música”? Na verdade, Heráclito não é Crátilo e não se limitava a apontar o dedo ou a assobiar furiosamente. É sob a pressão das margens, que permanecem, que o rio atinge profundidade e pode correr, renovando suas águas. Nada pode ser mais distante de Heráclito, este pensador da morte, do que um otimismo purificado de todo e qualquer pessimismo, do que uma positividade livre de toda negatividade, do que um rio que engolisse suas próprias margens, do que a ideia tão banal de transformar as crises em oportunidades. Mas um Heráclito pessimista, um filósofo que chora, é preciso reconhecer, não ajuda a vender revista. Já o mesmo poderia ser dito de Voltaire? Voltaire enxerga a filosofia como um programa de vida insustentável, como doutrina prática que leva à crueldade, posto que inviabiliza toda iniciativa de agir em benefício dos outros e remediar seus sofrimentos. Esta é a visão mais justa que o senso comum poderia alcançar da filosofia. Mas a mesma obra, que tanto ridiculariza o filósofo metafísico, também pode ser lida como o retrato fidedigno do ridículo em que cai a própria filosofia sempre que pretende tornar-se receituário prático de vida. Pangloss, esta caricatura de filósofo, e não Voltaire, poderia ser citado como autêntico fiador do otimismo da matéria de final de ano da Revista Veja. Pois, como exclama um desiludido Cândido:

Ó Pangloss!”, exclamou Cândido, “não tinhas adivinhado esta abominação; acabou-se, será preciso que afinal eu renuncie a seu otimismo.” “O que é otimismo?” dizia Cacambo. “Lamentável!”, disse Cândido, “é a fúria de sustentar que tudo está bem quando se está mal.(VOLTAIRE, 2012, p. 73)

 

Bibliografia:

DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Trad. Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta, 2002.

PLATÃO. Fédon. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2011.

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2012.