As pactuações acadêmicas na manutenção convencional de violências e traumas

Ialley Lopes da Silva

Doutoranda em Filosofia na UFPE

04/06/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com GT Filosofia e Raça da Anpof

Na filosofia da linguagem, o estudo da convencionalidade se refere à análise das regras, rituais ou pactos presentes no contexto em que pessoas possam estar presentes ao se comunicarem. De maneira geral, essas convenções podem ser formais, como um congresso, ou informais, como uma conversa de bar. As regras que a constituem podem ser explícitas, como em circunstâncias formais, ou implícitas, como ocorre frequentemente em circunstâncias informais, nas quais podem emergir a possibilidade de quebra. Ao quebrar as regras nesses contextos, os participantes podem ser repreendidos, disciplinados ou excluídos do cenário.

A universidade, tal como uma instituição atravessada e que atravessa o social, é concebida por esse conjunto convencional: regras formais e informais que estruturam o que pode ou não ser feito, dito e criticado entre suas paredes. Essas regras são atuadas em todos os níveis, da recepção à reitoria, com suas particularidades, interesses e possibilidades, estruturando uma prática social.

Não intenciono dar conta de todas essas coletividades, mas analisar como a violência institucional atua diante da quebra dessas regras, especialmente em nome de uma reparabilidade com grupos minorizados. As violências (étnico-racial, de gênero, territorial, de classe) atuam por convenções, uma convencionalidade que, segundo Judith Butler (2021), é citacional e histórica. Citacional, pois temos o momento da ação em que o discurso é citado ou dito; histórica, pois essa ação ultrapassa o presente da citação rumo a uma cadeia de significações e desloca consequências futuras.

A exemplo, um discente elabora e apresenta uma pesquisa com título transfóbico. Nesse cenário, temos o momento da ação, porém também temos uma reencenação da violência, no qual o título se relaciona com uma cadeia de significações e desloca consequências futuras, especialmente para quem sofreu a violência da ação.

A convencionalidade da violência se encontra nessa citacionalidade-histórica, na forma em que os participantes do cenário entram em comunhão com as práticas sociais da violência, cumprindo suas regras. A reencenação independe da intencionalidade da ação, visto que não há controle sobre as consequências e danos que podem ser causados. Contudo, a quebra das regras nesse cenário se encontra no momento em que temos uma denúncia da violência performada.

O movimento de denúncia é equiparável ao que Grada Kilomba (2019, p. 71) elabora sobre dizer o indizível, isso é, “um fenômeno periférico aos padrões essenciais de desenvolvimento da vida social e política”. O rompimento com esse “padrão essencial” faz emergir uma série de fenômenos que perpassam desde a defesa do autor da violência à outrificação de quem sofreu com a violência. Um ato de pactuação.

Pactuações, em linhas gerais, dizem respeito à formação de grupos que se aliam em prol de um objetivo em comum. Aqui, atravessam e são atravessadas por essa convencionalidade citacional-histórica, possuindo regras para garantir sua efetividade e organizando-se em uma pactuação narcísica e ecoica. Esses pactos estabelecem fronteiras de reconhecimento e outrificação, se realizam e se renovam em pactos discursivo-materiais – práticas reiterativas em que linguagem, imagem e corpo intra-agem para produzir a diferença como um fato sensível.

Ao delinear acerca dos Pactos Narcísicos, Cida Bento argumenta que, no medo da ascensão do que difere racialmente, a branquitude se utiliza de recursos para enclausurar o outro e construir uma humanidade ideal que é branca. Os recursos engendram o imaginário de um inimigo em comum, contribuindo para a “formação de alianças”. Assim, a branquitude possibilita a preservação dos seus privilégios, em consequência, é demarcada uma desigualdade racial que pretere “[...] negros com as mesmas habilitações que os brancos [...]” (Carneiro, 2011, p. 114).

Por meio da continuidade meritocrática de autopromoção, o pacto narcísico da branquitude tem como pretensão assegurar a preservação dos próprios interesses. Quem não faz parte dessa aliança hegemônica é impossibilitado de romper com as regras estabelecidas no jogo da branquitude, visto que a crítica ao privilégio branco e a ocupação de espaços de destaque social são sentidos como agressividade e ameaça (Bento, 2002, p. 105-109). Nessa pactuação narcísica, que ultrapassa a dimensão da racialidade e não se encerra nela, pode-se afirmar que uma das regras fundamentais para a sua efetividade é a subordinação de um grupo.

A subordinação desvela um outro tipo de pactuação que emerge na necessidade da coação ou do desejo de quem não faz parte da aliança narcísica. Diferente do Pacto Narcísico, o Pacto Ecoico atua por intermédio dessa subordinação, repetindo os discursos hegemônicos e contribuindo para a manutenção das alianças da branquitude. Seja no desejo de fazer parte do grupo seleto seja na coação ao falar mais do que se deveria.

A repetição assume o papel fundamental de um eco: ao tempo em que ressoa o discurso, reforça o significado do que foi dito, sendo “aquele que ecoa, reproduz, repete e adota por norma e padrão quem é seguido e idealizado de perto” (SILVA, 2024, p. 207). Isso sugere a existência de uma cadeia de significação, retomando uma convencionalidade que não é apenas citacional, mas histórica.

É comum encontrar pessoas de grupos minorizados alimentando a crença de possibilidade de pactuação com a hegemonia, em uma tentativa de transmutação em “neo-narcisos”. Todavia, na aliança hegemônica, elas são relegadas a um papel ecoico de repetição, gozando de uma promessa frágil de promoção e privilégio que tensiona o limite do que pode ser dito.

Tanto o Pacto Narcísico quanto o Pacto Ecoico não se constituem como entidades fechadas ou anteriores às suas manifestações. Ambos são práticas discursivo-materiais, conceito de Karen Barad (2007), que intra-agem, é dizer, constituem simultaneamente os sujeitos, os corpos e as linguagens do cenário. Assim como Eco não fala por si, mas apenas em resposta, e Narciso só se reconhece em reflexo, os sujeitos do cenário emergem juntos, enredados em aparatos que produzem o visível e o dizível – ou sua negação.

Ao retomar o exemplo da transfobia institucional, no que se refere à defesa do autor da violência, pode ser observado a princípio uma negação intencional do ato ou defesas coletivas voltadas à moralidade. Como ilustração: o autor não é transfóbico. Para a complexidade da questão, digamos que a pesquisa seja pró comunidade trans: o autor não é transfóbico, a pesquisa apoia a comunidade trans.

A ironia faz referência à história da negrinha em um evento realizado por pessoas brancas para e sobre pessoas negras, contado por Lelia Gonzalez (1984). Ao realizar uma denúncia sobre problemáticas do evento, um alvoroço se formou, ora pois, era um evento em apoio à comunidade negra. No “alto do próprio poder” ou no desejo em possuir esse poder, a pactuação faz uma sátira de si mesma ao querer dar voz na mesma medida em que a remove.

A indizibilidade ou negação de atos que subordinam na academia contribui para uma restrição do que se pode ou não falar, demonstrando um jogo de poder e interesse. Como consequência, temos a sistematização, estruturação e banalização de um ato que fere e faz ferir. Mediante uma ignorância dissimulada, diz não saber das violências cometidas, entretanto exige que os alvos se utilizem de um silenciamento imposto.

Nessa composição, é possível afirmar que as pactuações estabelecem quais corporalidades são passíveis de serem empatizadas, acolhidas e apoiadas. Em continuidade, também há o estabelecimento de quais corporalidades são passíveis à ausência compulsória e boicote, havendo uma destituição da humanidade de quem é excluído do ciclo de alianças. Um encaminhamento ao isolamento que não partilha de uma escolha ativa, mas em decorrência sequencial de perdas de oportunidades e retaliações pessoais.

A irreparabilidade para com as pessoas que sofrem, promove uma reencenação do trauma em um cenário de completa insegurança. Segundo Kilomba (2019, p. 213-214), “o conceito de trauma refere-se a qualquer dano em que a pele é rompida como consequência de violência externa”, esse rompimento pode ocupar um simbolismo material ao tratar de violência psicológica, implícita e espacial.

O trauma da violência acadêmica, que é guiado por práticas discursivo-materiais, possui a capacidade de deslocar as vítimas para o vazio da outridade. Provoca silenciamento, impede a capacidade de agir e coage a um esquecimento. Segundo Silva ao citar Rae Langton (2024, p. 218), o silenciamento “impede os sujeitos subordinados de agir, tem como finalidade impedir que o discurso se torne uma ação, especialmente no impedimento desse discurso se tornar ‘[...] a ação que foi destinada a ser’”.

A tentativa de fazer esquecer emerge na dissimulação da própria intenção da violência cometida, dificultando a assimilação, a denúncia e o processamento do trauma. Segundo Kilomba (2019, p. 162), “o jogo de palavras doces e amargas não apenas dificulta a identificação do racismo; ele também é uma forma de produzir racismo”. Em outras palavras, a dissimulação da violência reencena convencionalmente a própria violência, relega narcisicamente o outro a um “[...] papel ecoico de só poder falar quando há autorização para tal e, mesmo havendo, só pode falar enquanto pactua-se à Narciso” (SILVA, 2024, p. 225).


Referências

BENTO, M. A. S. Pactos Narcísicos no Racismo: Branquitude e Poder nas Organizações Empresárias e no Poder Público. São Paulo: s.n., 2002.

BUTLER, Judith. Discurso de Ódio: Uma Política do Performativo. São Paulo: EditoraUnesp, 2021.

BARAD, Karen. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning. Durham; London: Duke University Press, 2007.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2011.

GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, p. 223-244, 1984.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio deJaneiro: Editora Cobogó, 2019.

LANGTON, Rae. Speech Acts and Unspeakable Acts. Philosophy & Public Affairs.United Kingdon. Vol. 22, No. 4, p. 293-330, 1993.

SILVA, Ialley Lopes da. Pactos Ecoicos no Racismo. Revista Perspectiva Filosófica. Vol. 51, No. 3, p. 205-230, 2024.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.