Bem-vinda ao século XXI, senhora Arendt

Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho

UFBA, CNPq

20/12/2021 • Coluna ANPOF

Entre 1928 e 1940 Theodor W. Adorno e Walter Benjamin trocaram correspondência regularmente. Essa correspondência, além de ser um valioso documento para compreendermos a arquitetura do monumental Passagens de Benjamin e as motivações para o pensamento de Adorno, é uma testemunha potente das transformações que arrastaram a cultura alemã para a grande calamidade do século XX. Na sua última carta para o amigo, datada de 25 de setembro de 1940, Benjamin sentencia: “Numa situação sem saída, não tenho outra escolha senão por fim a tudo”. Ele sabia, seu amigo sabia e hoje todos nós sabemos o que aconteceu com a Alemanha: logo depois Walter Benjamin, o genial filósofo em sua eterna fuga, o filósofo que buscava alguma forma de redenção, tirou a própria vida como único recurso diante do horror.

Para aqueles que puderam fugir ou tiveram a fortuna de sobreviver, restou optar pelo silêncio apavorado, o esquecimento culpado, penitente ou seguir na tagarelice nervosa do rancor, do ressentimento, do medo de que o mundo desabasse novamente – como, de fato, não faltaram casos em que acordamos no meio da paz aparente e nos damos conta de que a URSS, Ruanda, Chile, Argentina, Argélia, Brasil nos repetem aos gritos que não foi apenas um sonho ruim, mas a besta real que se nos avizinha, um escorpião que põe seus ovos sob nosso travesseiro. Não foi e não é um pesadelo: é a grande máquina humana da destruição.

Diz-se que Hannah Arendt, estimada amiga de Benjamin, meses depois da data fatal, procurou em vão a sepultura de “Benji”, como ela o chamava, em Portbou, na fronteira entre França e Espanha. O que Hannah procurava e não achou? Não foi apenas o cheiro da morte que o assombrava, mas o fato de que o totalitarismo já havia confiscado seus livros e o material no qual ele trabalhava; havia roubado o que lhe era mais valioso, a possibilidade de pensar. Ao perder tudo e se encontrar em um beco sem saída, Benji era o retrato fiel do fracasso da civilização europeia: não conseguia mais pensar algo diferente, dar um salto para além da dor do presente; perdera-se a esperança e a imaginação de um tempo e um lugar melhores.

Não temos como avaliar precisamente o impacto emocional da decisão trágica de Benjamin na alma da jovem Hannah. O certo, porém, é que ela, como sobrevivente, não optou pelo silêncio ou pelo rancor; ela optou seguir um caminho na contramão de Benji, levantar, tijolo por tijolo, uma obra ancorada da esperança e na imaginação de uma outra geografia. E aqui está, o alcance de nossas mãos, essa preciosa obra, Pensar sem Corrimão, que a Bazar do Tempo nos brinda exatamente no momento em que todos nós nos encontramos na mesma fronteira na qual Walter Benjamin se perdeu, à beira de um precipício, num lugar ermo onde a besta avança e os ovos de escorpião já eclodiram. E agora, atados à nova crise entre passado e futuro chamado século XXI, também nós precisamos fazer nossas escolhas.

Pensar sem Corrimão é uma obra poderosa, volumosa, inquieta, esculpida para nos perturbar hoje, no tormento do incerto século XXI. Com organização de Jerome Kohn, diretor do Hannah Arendt Center na New School for Social Research, este livro apresenta 42 artigos, ensaios, aulas, entrevistas, discursos e resenhas que cobrem duas décadas intensas até o último ano de vida da Sra. Arendt – e que só foram reunidos em uma publicação em inglês em 2018.

A edição brasileira pela Bazar do Tempo recebeu um tratamento gráfico de Elisa von Randow de excepcional qualidade e uma tradução competentíssima que ficou a cargo de Beatriz Andreiuolo, Daniela Cerdeira, Pedro Duarte e Virgínia Starling. Como objeto cultural, está à altura da sua importância.

A explicação para o título, Pensar sem Corrimão, se encontra no texto “Hannah Arendt sobre Hannah Arendt” (pp. 499-531) que registra uma discussão ocorrida em 1972 promovida pela Sociedade de Toronto para o Estudo do Pensamento Social e Político. Diante de interlocutores e críticos argutos, a Sra. Arendt fala sobre seu próprio modo de trabalhar, como ela enfrenta seus principais temas, como construiu seus argumentos e críticas até aquele momento... No fundo, ela não está exatamente tratando das matérias do seu pensamento, mas do próprio ato de pensar. A Sra. Arendt, como um Montaigne da nova era, diz que tudo o que fez e escreveu foi “uma tentativa” e ainda que acredita que “todo o pensar, o modo como me entreguei a ele um pouco além da medida, uma extravagância, tem a marca distintiva de ser uma tentativa” (p. 531). Este é o ponto que tem feito Arendt ser tão cultuada ou tão incompreendida: sua arte de pensar.

O pensamento é, ao mesmo tempo, uma forma de distanciamento, de observação “de fora” que não se confunde com a ação e também é uma forma de reconciliação com a ação. Dá-se um passo atrás, a pessoa se divide do mundo para, finalmente, compreender o mundo onde se está mergulhado. De certo modo, é fácil acreditar que estamos compreendemos o mundo enquanto nos apoiamos numa tradição segura, mas isso tem o elevado custo de observarmos o mundo por caminhos rotineiros, muitas vezes viciados. Quando a calamidade se aproxima, quando todo o mundo conhecido e as esperanças do passado desmoronam, a tradição pouco nos vale... e assim perdemos a chance de compreender.

Numa certa altura, desafiada por Hans Morgenthau, que lhe pergunta “O que você é? Conservadora? Liberal? Qual a sua posição dentro das possibilidades contemporâneas?”, a Sra. Arendt responde de um modo que, até hoje, perturba os filósofos políticos brasileiros, sobretudo os de esquerda: “Eu não sei.” Como assim, Hannah Arendt não sabe o que ela mesma é dentro das possibilidades contemporâneas? “Não sei mesmo – ela continua – e nunca soube” (p. 527). E é precisamente aqui que se descortina o encanto do seu pensamento. Logo adiante, para evitar a etiqueta dramática de um “pensamento sem fundamentos metafísicos”, ela diz que tem “uma metáfora que não é tão cruel e que nunca publiquei; guardei para mim mesma. Eu a chamo de pensar sem corrimão. Em alemão, ‘Denken ohne Geländer’. Ou seja, à medida que você sobe e desce os degraus, sempre pode segurar no corrimão para não cair. Mas nós perdemos esse corrimão. É assim que digo a mim mesma. E é isso, de fato, o que tento fazer” (pp. 529-530). Dedicar-se ao trabalho de pensar, para a Sra. Arendt é como subir e descer uma escada sem o conforto do amparo de um corrimão, sempre com o risco de despencar no vazio ou, em bom português, quebrar a cara. 

Pensar se corrimão carrega consigo muitos riscos (riscos que, no mais das vezes, os filósofos não estão dispostos a assumir), mas é tal liberdade que provê toda a força crítica e desafiadora para combater dogmatismos, enfrentar preconceitos e infringir doutrinas e hábitos que permite imaginar um outro tempo e lugar para além daquilo que nos trouxe a essa tragédia, a essa calamidade.

O valor dessa liberdade para o pensamento político, seu antidogmatismo, sua crítica a qualquer forma de totalitarismo, é inestimável, sobretudo porque a imensa diversidade de circunstâncias e pensamentos é incontornável e não dispomos de um critério racional para os julgar. Como escreve Heloísa Starling, “sem corrimão, a imaginação revela todo o seu poder e acende a visão clara que permite ver as coisas sem seus muitos ângulos.”

A Sra. Arendt não só pensou o que outros ignoraram nas suas especulações sobre política, revolução e violência... ela pensou de modo diferente, sem corrimão, numa corda bamba sem uma rede de proteção embaixo para desespero dos seus alunos e inconformismo dos seus interlocutores.

Mas o caso é que estamos aqui e a editora Bazar do Tempo nos trouxe esse livro. 

É impossível traçar um desenho nítido desse livro imenso neste espaço. Podemos, entrementes, considerar que era improvável, mas chegamos ao século XXI. Olhando bem ao redor, nosso passado é uma coleção de barbaridades, morticínios, esperanças frustradas; aqui no Brasil, nos acostumamos ao autoritarismo, ao mandonismo, à escravidão nas suas faces mais cínicas e deixamos a besta aparecer, sem nos perturbarmos com o odor expelido pelos seus buracos. Nosso futuro perdeu a nitidez – especialmente nós que cultivamos um eterno futuro por chegar, uma terra prometida como uma paz perpétua indesejada... Tudo o que era nítido, esboroou-se. E talvez nosso destino seja essa desgraça, como foi para Benji.

Bem-vinda, Sra. Arendt ao século XXI, espero que o calor no Brasil não lhe seja incômodo. Como a senhora pode ver, temos muitos assuntos para conversar. A senhora aceita uma bebida? Lamento, mas aqui é proibido fumar.

Comentário sobre o livro Pensar sem Corrimão: Compreender 1953-1975 de Hannah Arendt (Rio de Janeiro : Bazar do Tempo, 2021, 639 pp.).

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