Besteira, cinismo e fake: modos de combate

Benito Eduardo Araujo Maeso

Professor do IFPR; Professor Colaborador do PGFILOS-UFPR

21/09/2022 • Coluna ANPOF

Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof

Se é papel da filosofia combater à besteira, o que fazer numa sociedade na qual o fake (a besteira no maior grau imaginado) virou sinônimo de verdade? 

Alguns passos conceituais são necessários para estabelecer o campo de análise do problema que incomoda a tod@s hoje: como sobreviver num tecido social no qual pessoas aparentemente detentoras de conhecimento, ponderação ou de modos até simpáticos, que dão bom dia no elevador e perguntam do tempo, abraçam sem pejo comportamentos e ideias claramente irracionais, hostis e delirantes? Muitos atribuem tal processo à enxurrada do que se convencionou chamar de Fake News, como se tudo pudesse ser resumido a um embate entre certo e errado, verdadeiro e falso, e que bastaria mostrar a verdade e assim libertar tais concidadãos e concidadãs deste transe hipnótico.  

Não pensamos de modo tão otimista ou ingênuo. 

Aquilo que é chamado por alguns de fake tornou-se o concreto, possuindo dimensão material e efeitos na chamada realidade, desnudando algo que já estava presente: o ressentimento latente, a antipolítica e a mentalidade de competição de todos contra todos. Para tentar esboçar alguma resposta e, principalmente, modos de agir, é preciso um pequeno mergulho em tentativas anteriores de explicação de fenômenos que guardam certa proximidade com os atuais, para então buscar mobilizar e articular forças de criação de pensamentos e ações – quem sabe? – com potencial para uma intervenção concreta no que chamamos aqui pelo oximoro Realidade Fake, um constructo social, material e ideológico que opera em seu cerne os conceitos de Cinismo, conforme Theodor Adorno, e Besteira, conforme Gilles Deleuze.

Besteiras cínicas

Gilles Deleuze dirá que uma das funções da filosofia é constranger a besteira com todas as forças, “fazer da besteira algo vergonhoso. [A filosofia] Não tem outra serventia, a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento em todas as suas formas” (DELEUZE, 2018a, p. 136). Mas, ao mesmo tempo que define um objetivo para o ato filosófico, coloca-se a questão: afinal, o que é essa besteira que tanto deve ser combatida? 

A besteira seria um tipo de avesso do pensamento, seu reflexo distorcido: a baixeza pensada. Um pensamento não-efetivado, não diferenciado, um fundo indeterminado que, todavia, se apresenta ao sujeito como possibilidade do pensar e para pensar.  E falar besteira não pode ser resumido em proferir um discurso tolo ou sem fundamento, mas significa a ação daqueles que se contentam com a reprodução sem critério de questões, discursos e chavões já conhecidos. Quem pensa contempla a besteira – como discurso baixo ou como fundo que nos provoca a reação de constrangimento - e é tomado/a por um ímpeto de vergonha que se volta contra o objeto “besteirento” contemplado ou pensado de forma simultânea, para que este objeto/pensamento seja, de alguma forma, constrangido. 

Deste constrangimento surge o que Deleuze chamaria de “ato criativo” do pensamento: o confronto com os consensos já estabelecidos – portadores das besteiras – abrindo as potências criadoras do pensar. Assim, o filosofar funcionaria como uma barreira contra o excesso de besteira que o próprio pensamento pode produzir.

De maneira própria, tal imagem da besteira acaba por ressoar a definição de ideologia como forma de compreensão, operação e existência organizada a partir do  conjunto de determinantes culturais e sociais que se complementam às convicções prévias do indivíduo ou grupo, tendo sentido e valor para tais. Este caráter lacunar do discurso ideológico (cfe. CHAUI, 2016) faz o ouvinte completar os espaços conceituais-discursivos como desejar, gerando identificação com o agente propagador e com a informação enviesada, ou seja, com a besteira. 

Este processo de atribuição de sentidos é necessariamente imbricado ao desaparecimento da fronteira entre os conceitos de verdadeiro e falso: em primeiro lugar, se o que determina esta separação é o sentido (de extensão maior do que cada um destes conceitos separadamente), qualquer pensamento ou informação podem ser consideradas “verdadeiras” desde que façam sentido para o agente discursivo. Em segundo lugar, porque a construção deste sentido ideológico exige um movimento simultâneo de negação do que não se encaixa no discurso – mesmo que sejam pensamentos ou fatos mensuráveis – e de validação das convicções prévias sob um verniz de mensurabilidade ou correspondência, de forma a organizar psicologicamente as contradições que operam tanto no manejo das informações como na personalidade do indivíduo, dando-lhes a coerência que uma análise puramente factual das informações apontaria como inexistente.

Este segundo processo, crucial até mesmo para conceituarmos a besteira, já é nomeado por ADORNO (2019) em seus estudos sobre a sobrevivência do autoritarismo no pós-II Guerra como Cinismo. Em tais estudos o problema da separação falso/verdadeiro, ou da atribuição de sentido, é abordado por outro prisma: o falso torna-se o próprio índice de verdade em si, uma verdade construída sem necessidade de correspondência completa aos dados e que passa a ter valor absoluto para quem a abraça, o que, no limite, chega a abarcar o próprio conceito do real e sua compreensão deste. 

À pseudo-coesão discursiva, ainda que recheada de contradições patentes como “intervenção militar para a manutenção da democracia”, segue-se a pseudo-coerência entre discurso e prática. O cinismo é como a novilíngua orwelliana e seus oximoros "Guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força", inclusive pelo fato de que aquele que adota o discurso e a prática cínica não percebe (ou ignora deliberadamente) a dissonância cognitiva existente entre sua visão de mundo e os processos que ocorrem na realidade.

Como exemplo, para um/a terraplanista, fatos ocorrem e se explicam metodologicamente como se o planeta fosse plano, independentemente do consenso científico e das explicações corroboradas em sentido contrário à crença deste sujeito. Numa subversão solipsista do método cartesiano, o fato da pessoa pensar tal absurdo dá a ela a convicção que, pelo fato de poder ter sido pensado, há Verdade no pensado. Ou, ainda, o indivíduo cínico pode até ter consciência do alcance de seus atos, mas deliberadamente prefere não se importar com isso ou se esconder sob o dístico de “apenas cumprir ordens” em nome de uma universalidade fictícia ou uma coerência de superfície entre ação e pensamento. 

Ao nos debruçarmos no quadro nacional, não faltam exemplos de besteira e cinismo no amálgama de verdeamarelismo, populismo do Messias, negacionismo e neoliberalismo selvagem que nos cerca. Mas para além de saber quais seriam as condições que permitiriam atribuir os valores de verdadeiro e falso, ou seja, como se dá a construção do sentido e da negação de sentido destes valores, a questão fundamental é: como agir? Se o papel da filosofia é o combate à besteira, o que fazemos nós, que lidamos com ela em nosso cotidiano, numa sociedade na qual o fake, a besteira como modo de vida, o mais bem-acabado exemplo do Falso, virou sinônimo da própria verdade concreta? 

Contradiscurso contra a besteira

Uma resposta inicial pode estar na ideia do contradiscurso conforme Chaui: buscar um para desmontar o discurso ideológico – o discurso da besteira - não pelo preenchimento daquilo que supostamente lhe falta, mas pelo reconhecimento das fraturas, buracos e contradições deste discurso que permite desde dentro produzir sua contradição e o desmantelo de suas ideias, ou seja, segundo Chaui “encontrando uma via pela qual a contradição interna ao discurso ideológico o faça explodir” (2013, p.139). Deixa-se de lado uma lógica de falta, de busca da universalidade, para o engendramento da singularidade do objeto analisado. Não trabalhar pela oposição e carência em relação ao universal (ideológico), mas pela gênese do singular capaz de desmantelar a própria ideia desta universalidade naturalizada. Virar a besteira pelo avesso, de forma imanente, não transcendente a ela. Talvez mostrar suas contradições a partir de sua própria enunciação, da prece ao meme?

Do contradiscurso, pode-se ambicionar uma contra-prática, uma contra-ação? Numa sociedade que, de cima a baixo, mostra-se cínica no sentido adorniano, o cinismo é acompanhado pela busca da satisfação dos interesses individuais sobre os coletivos. Paradoxalmente, quanto mais convencidos os indivíduos estão de que suas ações alucinadas convergem na direção de tal satisfação, mais é perceptível que os efeitos reais de seus atos vão contra esta premissa. Seria uma estratégia possível partir deste paradoxo de interesses para, dialeticamente, extrair um “universal provisório flutuante” a partir destes singulares? Uma política menor que não opere significantes vazios no qual a pessoa precise se reconhecer ou reconhecer sua identidade, mas que crie tal identidade e reconhecimento a partir da imbricação indivíduo/grupo? Como é possível a alguém imerso no fake perceber que seus interesses concretos somente podem ser realmente atendidos fora da realidade irreal na qual julga viver (ou, em termos muito cotidianos, a promessa do acesso à arma ou se vestir de azul ou rosa não coloca mais comida na mesa do trabalhador)? Nossa luta contra a besteira e o cinismo exige uma dimensão material muito além da simples denúncia de ideologias ou da promoção de bandeiras de construção de um tecido social diverso: passa, novamente, pela luta franca para o entendimento e apropriação, pel@s indivídu@s, da compreensão de que é preciso transformar suas condições de vida de forma simultaneamente individual e coletiva. 

Ainda hoje, a prova do pudim consiste em comê-lo.


Referências

ADORNO, T. W, Aspectos do novo radicalismo de direita. SP : Ed. Unesp, 2020

_____, Estudos sobre a personalidade autoritária. SP : Ed. Unesp, 2019

ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento.. RJ : Zahar, 1985

CHAUÍ, M. Contra a servidão voluntária. Escritos v.1. BH : Autêntica, 2013

_____, Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Escritos v.2. BH : Autêntica, 2014

_____, Sobre a Violência. Escritos de Marilena Chauí v.5. BH : Autêntica, 2017

_____, Ideologia e educação. Educ. Pesqui., SP, v.42, n.1, p.245-257, jan-mar/2016

DELEUZE, G. Diferença e Repetição. 1a. ed. SP: Paz e Terra, 2018a

DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. SP: n-1, 2018b

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