Carolina Maria de Jesus: contribuições para pensar o Brasil

Maísa Martorano Suarez Pardo

Doutora em Filosofia (Unicamp); Pesquisadora Pós-Doutorado Departamento de Filosofia - CECH Universidade Federal de São Carlos

16/06/2022 • Coluna ANPOF

Como eu poderia abordar a obra de Carolina de Jesus sem cair na armadilha de romantizar sua experiência de vida? Como escapar ao conto da mulher negra e pobre que, mãe de três filhos e moradora da favela do Canindé em São Paulo realizou o sonho de se tornar escritora. Esclareço de antemão que, de maneira nenhuma, esses fatos sobre sua vida são irrelevantes. Mas o meu desafio era não me colocar como uma mulher branca que nunca viveu numa favela a analisar a vida de uma mulher negra que conheceu a miséria e a favela, porque ela o era e porque assim viveu. Me pareceu que o melhor caminho era colocar sob análise os elementos da obra da autora que relacionam-se diretamente à minha pesquisa em teoria política. Tomando-a como escritora cujo pensamento contribui para a construção de um conhecimento político sobre o Brasil. Assim, surgem algumas questões: quais os elementos políticos contidos na obra de Carolina? O que eles revelam sobre as estruturas sociais e políticas brasileiras? 

 A obra O Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus foi publicada pela primeira vez em 1960. Sobre ela, abundam trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior. O título da obra contém o primeiro elemento político do qual trataremos: o problema estrutural da pobreza no Brasil, a omissão estrutural do Estado e da sociedade brasileira às questões de moradia e miséria. Escolhido pelo editor – o jornalista Audálio Dantas – o título retoma uma metáfora utilizada repetidamente pela autora: “As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.(…) Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (JESUS,1960) p. 33. Além de usar o termo ‘quarto de despejo’ para se referir à favela, outros termos também fazem alusão a espaços da casa comumente destinados para guardar objetos em desuso, entulho ou lixo: “Eu classifico São Paulo assim: o Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” (JESUS, 1960, p.28). 

A presença mais sentida do Estado nas periferias parece ser aquela da força militar. Isso também aparece nos relatos de Carolina, que menciona constantemente a presença da Rádio Patrulha na favela. Um outro fator também marcante, e que se refere às relações de comando e obediência, é o tratamento dado aos jovens marginalizados pelo aparato jurídico e militar do Estado: “Recebi uma intimação para comparecer as 8 horas da noite na Delegacia do 12. Passei o dia catando papel. A noite os meus pés doiam tanto que eu não podia andar. Começou a chover. Eu ia na delegacia, ia levar o José Carlos. A intimação era para ele. O José Carlos está com 9 anos.” (JESUS, 1960 p. 25).

Essa relação de exclusão da favela e seus moradores, o abuso das forças policiais, a condenação de uma juventude que nasce e cresce em condições que desafiam todos os direitos humanos revelam a fraqueza do Estado e da democracia brasileira. Tudo isso chega até nós hoje como um problema de segurança: não uma segurança pensada de forma global, mas que dirige-se apenas aos que não estão nas favelas. A dura verdade é que a sala de visitas, a sala de jantar e o jardim não se preocupam com o quarto de despejo – talvez até desejem que alguém os livre dos entulhos e objetos em desuso que ali estão. A claridade dos fatos é tanta que talvez nos tenha cegado: as diversas menções nos jornais e revistas, os relatos de comunidades, pais e mães desesperados que tiveram seus filhos presos e mortos, ás vezes torturados e jamais receberam qualquer informação, desculpas ou compensação por parte do Estado. Na nossa inércia social e política, assistimos diariamente casos de crianças e civis mortos num banho de sangue contínuo. É até mesmo possível que militares atuando numa intervenção pela paz disparem mais de 80 tiros de fuzil em um carro de família a caminho de um chá de bebê, sem que ninguém faça nada além de tecer uns breves comentários em redes sociais ou compartilhamentos de clickbaits emocionais que visam apenas gerar visibilidade e lucro. Repetem-se mantras que ecoam das vozes de políticos eleitos: ‘bandido bom é bandido morto’; ‘direitos humanos para humanos direitos’; ‘direitos dos manos’. Pensar essas questões é coisa de ‘esquerdeopatas’ não de uma sociedade preocupada com o vínculo coesivo entre seus indivíduos, com o bem-estar de seus cidadãos. 

A acusação de que os políticos protegem os pobres, que o fazem visando formar ‘currais eleitorais’, é muito presente hoje, mas presente também nos relatos da autora cuja acuidade no pensamento revela que desde sempre o interesse dos políticos nas favelas é apenas eleitoreiro, não há proteção nenhuma aos que ali se encontram, nem por parte do Estado, nem por parte dos políticos: “Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para melhorar nossas condições de vida, pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade” (JESUS, 1960 p. 34) 

Mas a exclusão e marginalização por parte do Estado brasileiro, e a conivência de nossa sociedade com o tratamento dirigido aos excluídos não é o único problema estrutural que encontramos no pensamento de Carolina de Jesus. Há um outro problema, talvez até mais grave – se é que se pode fazer distinção entre essas atrocidades e crimes contra a humanidade. É um elemento que se faz ver de modo tímido no início da obra, mas que fica mais e mais evidente com o passar dos anos e das páginas: “Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação (…) o tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidade de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: Se ele sabe disso, porque não faz um relatório e envia para os politicos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora, falar pra mim que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem minhas dificuldades”. (JESUS, 1960 p. 26) As palavras de Josué de Castro em A Geografia da fome: a fome no Brasil (1946), “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come"; são repetidas pela autora: O mundo das aves deve ser melhor que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer... O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder a gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves na gaiola. E os favelados são os gatos. Tem fome.” (JESUS, 1960 p. 30) 

Ao contrário de soluções, surgem apenas perigosas estratégias de alavancamento para as eleições (o cavalo de troia que aparece de 4 em 4 anos segundo Carolina de Jesus). A percepção é que, “De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursaes nos lares dos operarios” (JESUS, 1960, p. 36). Esses graves problemas, porquanto tímidos avanços possam ter sido feitos em certos momentos, não creio jamais terem sido verdadeiramente enfrentados. As palavras cortantes da autora nos assombram ainda hoje: “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os politicos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia” (JESUS, 1960 p. 35)


JESUS, C. M. O Quarto de Despejo. São Paulo: Editora Popular, 1960. 172 pag.