Critérios antiacadêmicos em concursos públicos para o magistério superior: para além do caso da UERN

Antônio David

Doutor em Filosofia pela USP

18/06/2024 • Coluna ANPOF

A diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) divulgou recentemente em seu site e redes sociais uma nota de repúdio à banca examinadora de um concurso público para docente em Filosofia na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), inteiramente composta por docentes que não têm formação em Filosofia. Segundo a diretoria da entidade, trata-se de uma situação inadmissível.

Não quero me ater aqui à controvérsia sobre a banca. Sem prejuízo para a justeza da queixa, apenas ressalto que a publicação da nota abre a ocasião para que haja uma discussão mais ampla e séria sobre critérios em concursos públicos e processos seletivos para o magistério superior público, no que se inclui a composição e atuação de bancas, e não apenas em Filosofia.

No caso do edital da UERN, meu objetivo aqui é chamar a atenção para outro ponto que não a banca. Trata-se da exigência de titulação para a investidura do cargo: graduação em Filosofia, mestrado em Filosofia e doutorado em Filosofia.

Deveríamos refletir seriamente se de fato é necessário ter graduação em Filosofia para o exercício do magistério superior em Filosofia – o mesmo para outras áreas do saber. Há infindáveis exemplos de acadêmicos brilhantes, em diversas áreas do conhecimento, que não possuem graduação na área em que possuem vínculo como professores e pesquisadores.

Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, cinco docentes ativos do Departamento de Filosofia não são graduados em Filosofia: dois são graduados em Física (sendo que um deles atua em Ética e Filosofia Política), um em Biologia, um em Música e um em Ciência Política. Não me ocorre que em razão disso qualquer um deles seja menos apto ao magistério superior em Filosofia. Os exemplos são abundantes, em diversas áreas, inclusive nas ciências exatas e biológicas. Já ofereci argumentos contrários a essa exigência em um artigo publicado no Jornal da Ciência, da SBPC.

Como argumento no mesmo artigo, mesmo a exigência de doutorado na área pode ser questionável, certamente não em qualquer caso, mas em muitos casos, inclusive fora das Humanidades. Aqui também, exemplos de doutores vinculados institucionalmente a área diversa daquela em que obtiveram o doutorado são abundantes, e não apenas no Brasil. A historiadora e professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloísa Starling, não possui doutorado em História, mas em Ciência Política – para dar apenas um exemplo de uma pessoa cujo mérito é inegável.

No caso da Filosofia, é pertinente indagar: acaso doutores em Arqueologia não podem eventualmente ser aptos ao magistério superior em Filosofia Antiga? Ou doutores em Psicologia ou qualquer área das Ciências Sociais eventualmente ser aptos ao magistério superior em Teoria das Ciências Humanas? Ou doutores em Artes Plásticas eventualmente ser aptos ao magistério superior em Estética? Ou doutores em Matemática eventualmente ser aptos ao magistério superior em Lógica? Ou doutores em História ou Literatura eventualmente ser aptos ao magistério superior em qualquer área da História da Filosofia? Inversamente, será que doutores em Filosofia não podem eventualmente ser aptos ao magistério superior em áreas que não Filosofia? Em suma, será que o requisito para o exercício do magistério superior em uma dada área não deveria dizer respeito menos à designação “doutor em X” e mais ao perfil e à qualidade das linhas de pesquisa desenvolvidas e das pesquisas efetivamente realizadas de potenciais candidatos?

Inequivocadamente abusiva, por seu turno, é a exigência de mestrado para o exercício do magistério superior, nesse caso qualquer que seja a área, pelo simples fato de o sistema acadêmico brasileiro (e de muitos outros países) prever o doutorado direto, de modo que não poucos doutores não possuem o título de mestre – o que, todos hão de concordar, em nada os desqualifica.

Ao exigir o mestrado não como titulação mínima, mas como título que obrigatoriamente se deve ter – o que se tem verificado em muitos editais –, exclui-se sumariamente doutores que realizaram o doutorado direto. Todavia, e como todos no meio acadêmico sabem, a realização do doutorado direto não é nenhum demérito, ou seja, doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade, com um buraco em sua formação; antes, o doutorado direto é um mérito do aluno-pesquisador, pois sua realização envolve o cumprimento de requisitos diferenciados, mais exigentes, e quem o realiza só o realiza não porque é gênio ou porque teve o favor de alguém, mas porque trabalhou para tanto. Daí que  a dita exclusão sumária equivale a punir o mérito acadêmico.

Para que não haja mal-entendidos: não há dúvida de que a realização do mestrado e, em seguida, do doutorado é meritória. Todavia, também não há dúvida de que o mérito envolvido na realização do doutorado direto não é menor; é no mínimo igual. O que mais me choca e surpreende é menos a ampla adoção de um critério tão esdrúxulo do que o fato haver um conivente silêncio em relação a seu emprego em editais. 

Também já tratei deste assunto em outros dois lugares, razão pela qual poupo aqui os argumentos em favor do necessário reconhecimento do doutorado direto em certames: no portal A terra é redonda – em que faço menção a uma decisão judicial contrária à exigência, bem como a uma decisão judicial contrária à pontuação menor a doutores que realizaram o doutorado direto, da qual eu fui o autor – e no Fórum de Debates da ANPOF.

Voltando à UERN, atente-se que a maior parte das vagas do Edital nº 1, de 5 de janeiro de 2024, impõe a exigência de mestrado “ou” doutorado – ou seja, trata-se de vagas para as quais o título de mestre é suficiente, embora não necessário, sendo igualmente suficiente apenas o doutorado –, com algumas exceções, sendo uma dessas exceções exatamente a vaga de Filosofia, para a qual se exige mestrado “e” doutorado.

Afora a absurda exigência de graduação exclusivamente em Filosofia, e a exigência altamente questionável de doutorado na área, por exigir o mestrado em Filosofia o edital pura e simplesmente exclui doutores que realizaram o doutorado direto – inclusive doutores em Filosofia! Ou seja, para a UERN, todos os doutores em Filosofia são aptos a ocupar a vaga, exceto aqueles que realizaram o doutorado direto, além daqueles que realizaram o mestrado em outra área, como se uma coisa ou outra os desqualificasse.

O mais bizarro é observar que, no caso da vaga de Ciências Sociais, a universidade retificou o edital, passando a exigir, de mestrado "ou" doutorado, mestrado "e" doutorado.

O emprego desses critérios é comumente justificado sob o pretexto de que as universidades gozam de “autonomia” para definir os critérios, como se o princípio da Autonomia Universitária presente na Constituição Federal e em constituições estaduais equivalesse a uma carta branca para a adoção de critérios caprichosos, arbitrários, injustificáveis, em uma palavra, para se cometer abusos. É imperativo reconhecer que essa peculiar visão da Autonomia Universitária realiza nada mais nada menos que uma inversão: converte um instrumento que surgiu e existe para se combater o abuso em instrumento do abuso.

Daí que a questão dos critérios de concursos públicos e processos seletivos para o magistério superior remete, em última instância, para as relações de poder e práticas de sujeição existentes no meio acadêmico. O fato de o assunto ser um tabu reforça sua normalização.

Para além da dimensão jurídica da questão, isto é, se os critérios aqui apontados são ou podem ser considerados ilegais – alguns já foram, como exponho em um dos artigos –, o que mais importa aqui, para nós, é sua dimensão acadêmica: qual é o significado acadêmico de semelhantes exigências? É urgente que a comunidade acadêmica, e não apenas em Filosofia, mas de todas as áreas, reflita e debata seriamente sobre a adoção desses critérios, e sobre seu significado acadêmico. De minha parte, não posso caracterizá-los de outra maneira senão como antiacadêmicos.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.