Dedo no currículo e gritaria: um ensaio timidamente indecente sobre pânico civilizacional e educação

Fernando de Sá Moreira

Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense

07/12/2022 • Coluna ANPOF

Texto publicado no dia 7/12/2022 no site do Le Monde Diplomatique Brasil em parceria com a coluna Anpof.


Certa vez, Platão estava caminhando por Atenas num belo dia de primavera. Foi quando surgiu, como que do nada, um homem que gritava a plenos pulmões: “Os bárbaros estão chegando! Protejam-se!” Platão então teria corrido até a Academia para alertar seus mais fiéis discípulos. Seus olhos cheios de determinação e certeza. Seu coração queimava, inflamado pela mais profunda indignação. Os acadêmicos tinham que se preparar para defender o legado da Civilização com todas as armas disponíveis e toda violência que fosse necessária. Afinal, nenhuma violência que cometessem seria maior do que a destruição abominável que os bárbaros causariam, caso eles adentrassem à Academia. Certamente lançariam às chamas a fundamental e frágil herança que os acadêmicos e acadêmicas tinham tão laboriosamente preparado para as gerações vindouras. Platão não podia confessar naquele momento, mas o frio em suas vísceras e suas mãos trêmulas denunciavam que ele sentia naquele momento muito medo e pânico.

Mas, no fim do dia, os bárbaros não apareceram. E os nobres acadêmicos nunca souberam se tudo não passara de um alarme falso; ou se os inimigos fugiram em debandada como animais selvagens, assim que viram o brilhantismo e disposição de combate da Civilização contra a Barbárie.

Tudo bem, tudo bem... admito que essa anedota não é mais que invencionice minha. É claro que ela não engana ninguém. Essa história nunca aconteceu e você certamente notou isso logo de cara. Contudo, se ela não aconteceu enquanto fato, acontece repetidas vezes enquanto metáfora.

Refiro-me aqui a uma reação típica de várias e vários acadêmicos das universidades contemporâneas diante de reivindicações críticas sobre os currículos de seus cursos. E essa reação é ainda mais comum quando as reivindicações provém do corpo de estudantes, quando parecem colocar em questão os clássicos de suas áreas, e/ou quando enfrentam o problema do racismo acadêmico.

A reação é imediata e profundamente emocional, ainda que cercada de emulações de racionalidade e sensatez plenas. Nada contra as emoções, pelo contrário. Acontece que a reação não se reconhece como emocional ou, quando muito, só assume ser motivada por um sentimento de indignação contra uma injustiça. Mas nos cabe desconfiar de suas origens mais profundas e talvez arriscar a hipótese de que, ao contrário do que ela tenta fazer parecer, seus afetos mais diretivos são o medo e o pânico.

Eu diria que o pânico que se presencia nesses casos é muito frequentemente análogo ao que, ao longo das últimas eleições no Brasil, se chamou de pânico moral. No pleito, por diversas vezes boatos e fake news grosseiras atingiram em cheio a sensibilidade moralista de numerosas pessoas. Grupos de WhatsApp disseminaram notícias de que haveria um projeto para destruição das famílias nas escolas, que banheiros unissex estariam prontos para pedófilos atacarem meninas indefesas, que mamadeiras de piroca chegariam às creches, que a sexualidade de crianças e adolescentes seria desvirtuada por completo.

A cada vez, milhares de pessoas correram para se defender do imaginavam ser um duro ataque contra a saúde e bem-estar das pessoas de bem, defender inclusive a honra, os bons costumes e as tradições. Não é de forma alguma de se desconsiderar que muitas delas se colocaram imediatamente em posição de ataque em nome da preservação de tudo aquilo que elas acreditam ser “civilizado”, em contraposição ao que identificavam como a bestialidade representada pela suposta imoralidade dos “esquerdistas”.

Embora já seja incômodo demais lidar com o pânico moral nas eleições, queria eu que tais reações de pânico estivessem restritas apenas ao campo da moralidade e do jogo político. Há também muito de certo tipo de pânico na moderna academia. Todas as posições de defesa (e de ataque) são rapidamente ocupadas em nome da Civilização contra hordas de bárbaros imaginários. “Eles estão vindo, querem acabar com tudo, não querem ler mais nada, querem colocar fogo nos livros e destruir todos os templos do saber, mas nós, homens e mulheres de letras, defenderemos o gênero humano e as gerações futuras dessas bestas-feras que não respeitam o currículo alheio!” E, apesar dos gestos performativos de coragem, indignação e racionalidade, há um profundo medo no meio disso tudo. Da mesma família do pânico moral, está em cena o pânico civilizacional.

Minha hipótese deve parecer um tanto abstrusa, mas alguns exemplos podem elucidar e dar alguma força ao argumento:

1) Em 2017, representantes estudantis da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres produziram um documento com suas pautas prioritárias para o ano letivo de 2016-2017. Nele, os estudantes insistem na importância de mudanças curriculares na instituição. Além disso, apontam para o fato de que, em uma instituição com foco em África e Ásia, filósofos africanos e asiáticos quase não eram estudados, enquanto deveriam ter lugar de destaque nos cursos. Pedem ainda que os filósofos brancos sejam estudados desde um ponto de vista crítico. Essa reivindicação foi logo traduzida como “Estudantes não querem estudar Platão, Descartes e Kant ‘porque são brancos’”. Tudo foi logo tomado como um grande disparate contra a filosofia. E não faltou quem classificasse as e os estudantes como burros e ignorantes, como se fossem bárbaros já sordidamente infiltrados na academia, prontos para colocar fogo em tudo e apunhalar covardemente o mais indefeso dos filósofos ocidentais.

2) Em 2020, diversos intelectuais reagiram de forma muito parecida contra um acontecimento na Escócia. A Universidade de Edimburgo decidiu retirar o nome do célebre filósofo David Hume de um de seus edifícios. A decisão foi tomada em acolhimento a uma petição formulada por estudantes. A mudança de nome da David Hume Tower deveria ser um sinal de que a Universidade estava comprometida a lutar contra o racismo. A decisão foi tomada depois de ser debatida em órgãos democráticos competentes. Um detalhe importante é que a petição explicitamente reconhecia a importância histórica do filósofo e defendia o estudo de sua obra. Ainda assim, tão logo a notícia se espalhou, muitos correram para defendê-lo, como se seus livros estivessem sendo rasgados em público e, pior, como se a Universidade de Edimburgo tivesse sido sequestrada violentamente por selvagens irracionais, por seres imorais e perigosos, profanadores do legado da Civilização.

3) Mas é claro que o pânico civilizacional não é exclusividade da área de Filosofia. Ele também é muito comum, por exemplo, nas Letras. Em 2016, estudantes de literatura anglófona da prestigiada Universidade de Yale criaram uma petição solicitando que o departamento de inglês alterasse seu currículo. A principal reivindicação era de que a disciplina “Grandes Poetas Ingleses” deixasse de ser obrigatória e pré-requisito para outras disciplinas no curso. A queixa central era que essa disciplina estava estruturada de modo a trabalhar exclusivamente com obras de homens brancos. Não sobraria muito espaço para que os estudantes conhecessem obras queer, de mulheres e de pessoas não brancas em geral, a despeito de sua importância para a literatura anglófona. No fundo, a disciplina estaria criando uma falsa história da literatura, parcial e excludente. Então, a petição solicitava que a disciplina fosse abolida e o currículo fosse reestruturado para ser mais inclusivo e mais fiel à pluralidade das letras inglesas. De modo lamentável, mas não surpreendente, muitas manchetes sobre o caso foram bastante tendenciosas. No fundo, tudo se passa como se ali estivessem pessoas brutas e boçais, como se alguém tivesse proposto a decapitação pública dos escritores brancos. A abolição de uma disciplina soou ao pânico civilizacional como a abolição do próprio homem branco.

4) Em 2021, numa coluna na Folha de S. Paulo, Marcelo Coelho escreveu sobre o já conhecido racismo da obra de Monteiro Lobato, dando foco à análise de sua obra adulta. Seu diagnóstico foi simples: devo muito a Monteiro Lobato, mas não dá para fingir que ele não era racista. E encerrou seu texto sem qualquer exigência de censura ou abandono da obra do escritor. Pelo contrário, Coelho singelamente defendeu que os livros de Monteiro Lobato não devem ser censurados e que eles poderiam também ser adaptados. Não demorou para que isso fizesse soar o alarme do pânico civilizacional. O texto de Coelho, logo foi caracterizado como um ataque profundamente injusto e, sobretudo, como um ato de barbárie comparado a anotar toda a obra do escritor brasileiro no Index Librorum Prohibitorum e a uma tentativa de rasgar Monteiro Lobato, queimá-lo e cancelá-lo.

Nada mais comum e nada mais falso do que o pânico civilizacional. Mas também aquilo que é falso tem seus efeitos. Poucas coisas se encontram assim tão bem distribuídas à direita e à esquerda, no Brasil e no estrangeiro. Assim como o pânico moral, o pânico civilizacional também é assombrado por fantasmas e tabus. Entre acadêmicos e acadêmicas, o pânico civilizacional se mostra na forma de uma curiosa fixação em relação ao currículo. É como se ele não fosse algo móvel, flexível e cheio de possibilidades. É como se fosse algum tipo de pecado ou indecência colocar um dedo sequer no currículo. É como se nosso papel como intelectuais fosse impedir qualquer um de mexer no currículo. Afinal, quem tem currículo tem medo.

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