Delírios da alcova bolsonarista: breviário de uma fantasia sexual

Rodrigo Araújo

professor de Filosofia do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e Doutor em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

21/11/2022 • Coluna ANPOF

Há uma ideia em curso em alguns setores da sociedade brasileira de que é preciso reunir forças engendradas no interior da civilização para usurpar o direito à existência da própria civilização. Essa não é exatamente uma novidade no horizonte histórico e Freud detectou essa tendência como constituinte da nossa convivência na medida em que a civilização origina e fortalece aquilo que é anti-civilizatório. A produção discursiva em torno do sexo já foi historicamente mobilizada noutras ocasiões para atender a esse fim autodestrutivo e tem retornado com ímpeto renovado em nosso país, ao lado de outras práticas e discursos, por meio das múltiplas e degradantes faces da figura do bolsonarismo. 

Em O mal estar da civilização (1929), Freud repõe a questão filosófica sobre o sentido da vida e conclui que para a maioria das pessoas a busca pela felicidade constitui o fim último da existência humana – a felicidade aqui entendida como a conquista de breves momentos de intenso prazer. Ocorre que os sofrimentos nos acossam de tal maneira que passamos a maior parte da vida na árdua tentativa de neutralizá-los, de modo que alcançar a felicidade se torna papel secundário em nosso cotidiano. Os sofrimentos se originam de pelo menos três direções: pela natureza externa e sua dinâmica muitas vezes hostil, como em casos de catástrofes naturais; pela consciência da finitude e suas conseqüências como o enfrentamento das doenças, velhice e morte; e pelos relacionamentos interpessoais marcados por uma sobreposição mútua de vontades que só se aplacam por meio de alguma força reguladora das inevitáveis contendas. Para Freud, seria esta última fonte de sofrimento aquela que mais consome o ser humano social. Artifícios como a religião, a moral, a política e o direito são alguns dos dispositivos desenvolvidos para aplacar essa fonte por onde também jorra uma angústia que se mostra impossível de ser sanada. 

Quanto maior o grau de complexidade de uma sociedade, maiores são as chances das pessoas desencadearem fatores autodestrutivos por se verem obrigadas a refrear os seus impulsos primitivos em nome de uma defesa dos males que lhes chegam de diversas direções e que cobrariam um preço ainda maior se enfrentados individualmente. Para o filósofo Adorno, trata-se da geração de um mal estar da civilização em que é possível falar de uma claustrofobia das pessoas em um mundo administrado, tomadas por um sentimento de se encontrarem enclausuradas numa situação cada vez mais socializadas, como uma rede densamente interconectada em que quanto mais densa essa rede se torna, mais se procura escapar ao mesmo tempo em que a densidade impede a saída. Segundo o autor, isto aumenta a raiva contra a civilização e esta se torna alvo de uma rebelião violenta e irracional especialmente em uma sociedade em que os conflitos de classe são a tônica da coexistência. 

A civilização assim adensada, tomada como alvo, não precisa de uma justificação racional para ser atacada. Uma super-excitação coletiva de determinados grupos que se sentem ameaçados em seus privilégios, por exemplo, pode ser o suficiente para agitar as massas que, em condições assim, tendem a resistir ao argumento ou explicação racional em defesa da sociedade. Movidas por um sentimento de auto-liberação, a oportunidade de exercício de violência se perfaz, sobretudo, quando setores que historicamente se apresentam como estruturantes da sociedade se revelam débeis. No caso do Brasil recente, a política e o direito deram vastas mostras de fraturas que oportunizaram a emersão de forças bolsonaristas que passaram a se escorar nas fragilidades institucionais. Foi assim que, sob o pretexto de ter a corrupção como objeto a ser combatido, se atacou o exercício de civilidade em um país historicamente inconstante em suas estruturas, pois erguido sob o selo de uma desigualdade radical.

Com a civilidade tomada como alvo, o bolsonarismo abriu caminho para a afirmação pública da violência, do direito de ter poder absoluto sobre outros e tratá-los como inferiores, tudo isso sob o manto justiceiro de que o que se faz se justifica em nome de um suposto combate a corrupção. A acusação de corrupção entra em cena como um achado, como oportunidade de subjugação do outro. Dentro dessa estratégia cabe acomodar todos os tipos divergentes do imaginário pretensamente impoluto do bolsonarista: pobres, negros, nordestinos, mulheres, intelectuais, cientistas, jornalistas, artistas... A máxima do bolsonarista consiste na pilhéria “Eu os acuso, afinal sou um homem de bem. Posso aniquilar a você e aos seus descendentes sem que qualquer direito de defesa lhes seja concedido”, tudo isso sem que punição alguma possa ser impingida ao detrator na esfera moral ou jurídica, instâncias que às vezes são incapazes de alcançar mesmo condenados pela Suprema Corte, a exemplo do ex-deputado bolsonarista Daniel Silveira. É a violência desinibida de forma, destituída de poder, em seu estado bruto e aniquilador encarnada na figura do bolsonarista. 

Em um cenário assim, o campo da sexualidade do brasileiro se mostrou propício para atender a um público cada vez mais hipnotizado e voraz pelo ímpeto de uma fantasia que tem assumido, dentre outros, o tom de um discurso sexual capaz de produzir efeitos satisfatórios a uma fantasia sádica. Não se trata aqui de afirmar que os leitores de Sade ou os praticantes do sadomasoquismo são bolsonaristas, mas que estes incorporam elementos sádicos que aparecem na forma de gozo pela elaboração sexual a mais destrutiva no outro. Trata-se, em última instância, de uma fantasia persecutória: persigo no outro aquilo que não consigo liberar em mim mesmo devido a sofisticados mecanismos de autorrepressão. 

É preciso recuarmos na escalada do discurso bolsonarista e apresentar um breviário das suas fantasias sexuais. Foi primeiro no campo das artes que essa cruzada ganhou radicalidade e provavelmente o ano de 2017 seja seu marco inicial. A exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, Porto Alegre-RS, explorava, entre outros temas, a questão da diversidade sexual e foi acusada por bolsonaristas, capitaneados pelo Movimento Brasil Livre (MBL), de incentivar a pedofilia, a zoofilia e a imoralidade. No mesmo ano, Peito Aberto, exposição em Espírito Santo que tratava da prevenção ao câncer de mama, foi censurada por conter nudez. No ano seguinte, em Caxias do Sul-RS, o prefeito proibiu que escolas visitassem a obra Santificados por ela conter representações de nus masculinos. Em 2019, o governo do Rio de Janeiro vetou a performance Literatura Exposta por haver nudez. A obra condenava a tortura e usava áudios do torturador Brilhante Ustra, elogiado publicamente por Bolsonaro. Na Bienal do Rio de Janeiro, o prefeito da cidade determinou que fosse retirado do evento, de maneira extrajudicial, qualquer livro que abordasse a temática LGBT. Em 2020, o TJ da mesma cidade proibiu a exibição do Especial de Natal Porta dos Fundos: A primeira tentação de Cristo, por apresentar um Cristo homossexual. Como nunca há limite para o pior, também em 2020 a Secretaria de Educação de Rondônia determinou que fossem recolhidos mais de 40 livros considerados inadequados, alguns escritos por Machado de Assis, Franz Kafka e Alan Poe [1].

Paralelo aos ataques no campo das artes desenvolvia-se um discurso que se sofisticaria até as eleições de 2022. Nas vésperas do pleito presidencial de 2018 circulou na internet a falsa notícia de que o Partido dos Trabalhadores distribuía mamadeiras em formato de pênis nas creches brasileiras, a chamada “mamadeira de piroca”. No mesmo período foi a vez do chamado “kit gay”: Bolsonaro disseminou a falsa notícia de que o livro que abordava educação sexual Aparelho sexual e Cia (2001), de Phillippe Chappuls e Helène Bruller, compunha o projeto Escola sem homofobia pelo MEC. Algo sabidamente produto da imaginação sexual delirante do então deputado, a sua estratégia mirava acusar seus opositores de incentivarem a pedofilia. Sob a justificativa de combater a pornografia, Bolsonaro postou um vídeo contendo uma cena de golden shower em sua rede social freqüentada por milhões de pessoas, inclusive crianças. No dia 7 de setembro de 2022, após beijar sua esposa diante de uma inflamada multidão, Bolsonaro entoou o grito de “imbrochável”, num gesto que a psicologia classificaria como sintoma de insegurança com a própria virilidade. Noutro momento tratou a existência de sua filha como resultado de uma “fraquejada sexual” por ela ser mulher. Consta ainda o processo contra Bolsonaro que data de 2014, quando afirmou que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia, segundo o seu padrão de gosto. Por lógica, ele a estupraria se ela o atraísse. 

A escalada fantasiosa bolsonarista encontrou refinamento na narrativa fornecida pela senadora eleita Damares Alves em 2022. Sem provas, na presença de crianças durante um culto religioso em Goiás, Damares narrou meticulosamente um suposto caso de abuso infantil na Ilha de Marajó-PA, em que garotos de 3 anos teriam seus dentes arrancados para viabilizar a prática de sexo oral e eram alimentados com comidas pastosas para facilitar a prática de sexo anal. Dias depois, um podcast exibia Bolsonaro a narrar o dia em que encontrou imigrantes venezuelanas no DF. Após “pintar um clima”, segundo suas palavras, percebeu que as meninas que tinham entre 14 e 15 anos se arrumavam para a prostituição. As garotas que ele alegava serem prostitutas participavam de um evento do dia da beleza. Para completar o permanente delírio sexual, no último debate que antecedeu a eleição de 2022, Bolsonaro quis saber se Lula usava Viagra. 

Por fim, não há como negligenciar a comoção do bolsonarismo diante dos militares. Susan Sontag, em seu ensaio Fascinante fascismo (1974), chama a atenção sobre a fantasia em torno dos uniformes. Segundo a autora, eles sugerem comunidade, ordem, identidade, competência, autoridade e exercício legítimo da violência. A farda militar remonta a movimentos contraídos, reprimidos, exatamente para onde os discursos sexuais do bolsonarismo são mobilizados. Não importa que generais tenham se recusado a comprar vacinas ou medicamentos durante uma pandemia que dizimou milhares; que tenham comprado com dinheiro público próteses penianas ou remédios para disfunção erétil para a tropa. Nada parece abalar o fascínio pelos militares que são celebrados por serem, segundo o imaginário bolsonarista, os portadores de uma autoridade inconteste. 

Como tarados públicos autorizados socialmente, os bolsonaristas não cessam de exibir a pornografia na ordem do dia como instrumento de manobra política com fins destrutivos. Jean Genet, homem de teatro do século XX, lembrou que o fascismo é teatro. Se o bolsonarista típico, ao teatralizar publicamente o seu erotismo particular, incorpora o fascismo e pretende usurpar o direito à existência da própria civilização é algo que merece uma reflexão e uma resposta à altura. A antropologia exposta em O mal estar na civilização aponta as agruras da humanidade, mas também sua terapêutica. Criar formas vitais e afirmativas para os nossos impulsos que fundam a civilização parecem seguir sendo a melhor estratégia para uma estadia na terra. 

[1]  Os dados desse breviário foram recolhidos do criterioso trabalho sobre a escalada de censura no Brasil recente exposto no site < http://censuranaarte.nonada.com.br/ >.