Dissidentes de gênero: primeiro chamado

Lis Macêdo de Barros

Mestra em Filosofia pela USP. Doutoranda em Filosofia pela UFABC

Agnes de Oliveira Costa

Mestra em Filosofia pela USP. Doutoranda em Filosofia pela UFRN.

05/12/2023 • Coluna ANPOF

Desembainha a espada
Calcula para vencer
Feitiço e intercessão
Mata o mundo pra não morrer
Batalha travada, declínio colonial
Fúria flamejante, traveco sobrenatural
(Ventura Profana, 2021)

Iniciamos este texto dizendo que ele é um chamamento, um ataque, uma busca por agenciamentos, por encontros, por algo... dependerá de quem ler, como ler. Um chamamento por um desejo de atrair mais de “nós”.

Um ataque, pois, ao depender da subjetividade nar(cís)ica dos filósofos e das filósofas, pode-se entender que este texto se trata de uma “agressividade não-necessária”. Acreditem, o estigma de travesti agressiva é o primeiro que aparece quando seu corpo deixa de ser apenas provedor de serviços sexuais mal pagos. E, por fim, uma busca de agenciamentos por nem mesmo sabermos o que estamos em procura: Pessoas trans produzindo filosofia? Filosofia transsexual/travesti? Filosofia para além do binário homem e mulher, pau e buceta? Pessoas trans/travestis produzindo filosofia que não se relacionam com discussão de gênero e/ou corpo? Talvez importe menos “o que”, e mais o como, quando, com quem etc.       

Vamos tentar ao máximo não generificar as pessoas nesse texto, visto que tememos que a utilização de linguagem neutra enevoe os objetivos principais, dado o preciosismo de alguns (a generificação aqui é proposital). E falar sobre generificação na linguagem nos parece muito oportuno nesse texto! Sobretudo quando temos em vista a pinça que articula/dobra filosofia e academia, no interior de uma política de enunciação - transversal ao uso que se faz das palavras, sintaxes, conceitos, atos de fala, temas etc. - que é sustentada por nossa obliteração, por uma antiprodução em relação às nossas potências de construir modos autônomos de enunciação filosófica e de pensar outramente.

Confessamos termos receio do que escrevemos, pois pensamos que mesmo escrevendo para pessoas que possuem minimamente acesso à informação, a experimentação de variabilidades de gênero ainda se mantém como objeto secundário, que pessoas cis pesquisadoras ainda ousam ditar sobre. Recentemente, houve o caso de várias entidades e pessoas acadêmicas defenderem o professor que propaga trans-epistemicídio, alegando “liberdade de cátedra”. Nossos saberes são úteis apenas quando não são armas para apontar bases transfóbicas nas quais a academia continua se erguendo. De resto o estereótipo de “agressivas” sempre retorna. Pobre acadêmico branco cisgênero … Acuenda teu lugar maricona!

O esteriótipo de agressivas é um objeto de conteúdo racionalizante cisgênero. A cisgeneridade, enquanto uma forma de organização do poder, busca garantir sua segurança e conforto ontológico diante de tudo aquilo que produz o mínimo de pertubação: poucas pessoas trans conseguiram a possibilidade de disputar alguns saberes, ou seja, conseguiram formação o suficiente (“aprenderam a língua do opressor”) para, ainda que pouco, serem ouvidas. Não gostaríamos de acentuar estatísticas, mas o Brasil, em 2023, continuou sendo o primeiro país que mais mata pessoas trans no mundo, sendo a maioria dessas mortes de pessoas pretas, transfemininas e que trabalhavam com prostituição. Nesse sentido, o grito alarmista cisgênero, no plano “epistêmico”, contra a “agressão” transgênera ecoa o medo estrutural – uma paranoia, até – constitutivo das formas de vida e de pensamento majoritários, que enformam um sistema social supremacista e anti-trans: medo de perderem seu mundo, sua segurança social, econômica, política e ontoepistemológica; medo de uma variação na distribuição da violência e, sobretudo, de destituição da lógica subjacente de obliteração anti-trans que sustenta a academia e o mundo do qual ela faz parte.

Mas como bons fungos, digerimos todo o material podre e imundo criando solo fértil, em conjunção com as que vêm enquanto vírus e bactérias desestabilizando e parasitando, para as próximas e as que ainda podem, tenham caminhos abertos. Proliferamos, porque ainda estamos aqui. Sabemos que os devires e as transmutações se fazem num nível imperceptível e molecular, mantendo relações privilegiadas com o segredo, opacos à transparência cisgênera branca e irredutível às suas microdeterminações dos pequenos medos.

Todas essas palavras e movimentos que utilizamos são de ancestralidade transfeminista, são herança de uma excelência sem muita escolha, e talvez fique mais explícito esse micro-texto: corpos dissidentes de gênero, pessoas que experimentam variabilidade de gênero, uni-vos! A cada boletim que a ANPOF lança, uma multiplicidade de temas e de pessoas pesquisadoras aparecem. Logo, visamos primeiro sabermos que existimos enquanto pessoas que pesquisam filosofia, e assim, em ressonância, alcançar maquinicamente outros espaços.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.