Eleições 2022 e o desafio ontológico da esquerda

Laurenio Sombra

Professor Adjunto de Filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

25/10/2022 • Coluna ANPOF

O quadro eleitoral brasileiro evoca, como de resto quase toda campanha política em democracias liberais, a díade direita-esquerda, com seus matizes: extrema-direita, , centro-direita, centro-esquerda, extrema-direita. Diante do avanço da extrema-direita no Brasil, por outro lado, avançou também o discurso de que já não se trata de uma disputa entre esquerda e direita, mas entre democracia e barbárie. No entanto, o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais sinalizou que parte significativa da população não se sensibilizou para esse discurso. Alguns cientistas políticos mostraram que a distribuição Lula-Bolsonaro foi relativamente equivalente (inclusive em regiões e classes sociais) à distribuição das antigas disputas PT-PSDB. Ou seja: a centro-direita migrou para a extrema-direita com maior ou menor convicção, com maior ou menos sentimento de vergonha. Demonstrou ser ainda forte o “antipetismo”, ou um sentimento mais genérico antiesquerda, mesmo que os adjetivos justificadores possam ter variado (corrupta, abortista, comunista, entre outros). A velha díade direita-esquerda parece ainda sustentar a sua força.

Mas o que ela significa, de fato? Como lidar com ela? Quando não se nega totalmente o significado desses conceitos, é comum a tentativa de definição a partir de atributos que a diferenciem. Se pegarmos algo como o perfil ideológico investigado pelo Datafolha, por exemplo, ele tenta mapear os indivíduos em valores políticos, culturais e econômicos, que vão sendo distribuídos numa faixa que vai de “esquerda”, “centro-esquerda”, “centro”, “centro-direita” e “direita”.  Em alguns casos, com escolhas curiosas: normalmente a defesa do papel do Estado é vinculada à esquerda, embora Marx propugnasse um horizonte sem Estado e o anarquismo (também de esquerda radical), a sua derrubada imediata; do outro lado, o fascismo (radicalmente de direita) praticamente propunha plena integração entre sociedade e Estado. Para além disso, propostas como essas sinalizam esquerda-direita como uma grande paleta de cores, na qual estamos inseridos de modo diferente a depender de nossos valores. Esta imagem, parafraseando Wittgenstein, nos mantém prisioneiros, e pode nos enganar sobre o que está em jogo.

Norberto Bobbio percebeu algo importante ao notar que [1] “a dupla gira em torno do conceito de esquerda e que as variações deste conceito correspondem sobretudo às diversas contraposições ao princípio da igualdade”. Aqui acrescentaríamos: mais do que uma defesa do “princípio da igualdade”, assim colocado em abstrato, o que caracterizou o ideário (e sobretudo a prática) de esquerda foi o combate à desigualdade. E, como notou Bobbio, a caracterização de direita se deu pela contraposição a este combate.

Dir-se-á com razão que “igualdade” e “desigualdade” são termos muito vagos, e afinal um conceito não pode estar fincado em termos vagos. Aqui, no entanto, teremos de evocar a prática [Praxis], no sentido de Marx [2]. É ela que filtra este conceito e faz com que não precisemos nos ater a tantas divergências “escolásticas” em torno das noções de igualdade/desigualdade. O que não nos exime de delimitá-la conceitualmente. 

O historiador brasileiro José D’Assunção Barros [3] percebeu corretamente que há uma importante distinção entre as noções de desigualdade e diferença. A “diferença”, mesmo construída culturalmente, é inicialmente uma distinção admitida socialmente, aparentemente sem contestações. A desigualdade, por outro lado, é uma noção que vem acompanhada semanticamente pelo seu contraposto, certo horizonte de igualdade. Nesse sentido, não se diz que há desigualdade entre pessoas altas e baixas, gordas e magras. A cor da pele ou as distinções sexuais, inicialmente, constituem meras diferenças, mas são apropriadas como desigualdades ao se tornarem instrumentos de opressão social. O mesmo vale para os estamentos sociais constituídos na história da humanidade. A desigualdade, assim, está associada a hierarquias estabelecidas com conotações opressivas.

Nossa história de desigualdade é antiga. A maior parte dos estudiosos (como Gordon Childe, Darcy Ribeiro e Gerda Lerner, por exemplo) situa as revoluções agrícolas como gatilho fundamental para o início das desigualdades estruturais. À medida que as civilizações se consolidavam, criávamos divisões de estamentos, indivíduos livres e escravizados, divisões patriarcais de gênero, entre outras. A modernidade ocidental-capitalista foi mais ambígua, nesse sentido. Ao mesmo tempo que ela inseria progressivamente ideais de igualdade que alimentaram o direito moderno, fomentava formas mais complexas de desigualdade, nem sempre claramente nomeáveis, mas muito concretas. 

Ao mesmo tempo que certo ideário de mobilidade social foi sendo fomentado no capitalismo, a concentração da propriedade e a maior proximidade das elites com o Estado foi criando diferenciações profundas, embora não mais consolidadas em estamentos. Por outro lado, a crescente conexão global do mundo econômico no capitalismo foi produzindo novas formas de desigualdade entre povos, frequentemente marcadas por conotações étnico-raciais. Finalmente, embora houve muitas transformações nas relações de gênero, elas continuaram a ser fundamentais, especialmente na permanente invisibilidade da dimensão da “reprodução social” [4].

Dada essa dimensão concreta, podemos reafirmar: movimentos que desde o final do século XVIII passamos a chamar “de esquerda” são aqueles que lutam contra formas de desigualdade, tais como as apontadas acima. Poderíamos, nessa acepção ampla, inclusive retroagirmos a movimentos anteriores à terminologia, mesmo que eles não tenham sido assim nomeados, como lutas camponesas, de trabalhadores, contra a escravidão e a colonização, contra domínios imperiais etc.

Lutas como essas ganham força especialmente em momentos de crise, quando as relações de domínio apresentam fissuras, quando há crises de autoridade, ou mesmo quando crises econômico-ambientais retiram de determinada organização social a estabilidade que a permite governar com alguma tranquilidade, mesmo que embasada em fortes relações de opressão. Nestes momentos, há maior abertura para a criação de novos horizontes, outros afetos são potencializados, o sentimento basilar de segurança já foi minado, permitindo que outras possibilidades sejam forjadas.

Do contrário, os desafios são maiores. Por mais que vivamos em uma vida miserável e opressiva, forjamos do ponto de vista hermenêutico um “mundo”, ou seja, uma rede de sentidos [5] que consolida a nossa prática, na qual nos sentimos mais ou menos familiares, onde habitamos. Essa rede de sentidos não é feita apenas de presente, ela incorpora uma temporalidade, passado e futuro incluídos, mas mesmo eles são condicionados por essa familiaridade. Costumamos não abrir mão de um passado e um futuro assimiláveis, exceto em determinadas condições. 

Se o “mundo” que habitamos já consolidou diversas formas de desigualdade, o ideário de esquerda sempre se pautou pela máxima da tese 11 de Marx: “transformar o mundo”, ou pela máxima mais contemporânea dos fóruns sociais mundiais: “outro mundo é possível”. Isso significa, forjar um horizonte de esperança e de transformação profunda, mas também fomenta em parte dos indivíduos o medo pela abertura a algo ainda inusitado, a uma estrada ainda não trilhada.

É nesse sentido que o pensamento de direita parte de uma posição ontológica diferente no que diz respeito às desigualdades, já que a princípio só precisa defender o mundo em que vive. Para usar uma imagem futebolística, num primeiro momento ele pode “jogar parado”. É muito comum a grupos normalmente caracterizados como de “centro-direita” ou mesmo como “centro” uma prática que não nega a questão da desigualdade, apenas a coloca em segundo plano. Segundo essa perspectiva, haveria outras pautas “universais” mais urgentes, como talvez a austeridade fiscal, a infraestrutura do país, a educação etc. Os “esquerdistas” seriam grupos desvairados que, não contentes com essas pautas, desequilibram a sociedade em prol de uma perspectiva “utópica”, “disruptiva”, “radical” ou “revolucionária”. Esses grupos mais ao centro tendem, inclusive, a negar a díade. “Não existe esquerda e direita”.

Em alguns momentos, entretanto, as pautas da esquerda avançam, os grupos se fortalecem e algumas conquistas acontecem, mesmo que outras tantas possam não ser logradas. Nesse caso, é possível dizer que algo no “mundo” já se transformou, determinados grupos sociais já adquirem outras possibilidades, acessam mais direitos, melhoram sua renda, entram na universidade. Algo na relação social se transforma e isso naturalmente incomoda. Segmentos da direita já deixam de “jogar parado” e partem para o ataque, investem diretamente contra esses avanços e contra os grupos que os defendem. Poderíamos dizer que é nesse contexto que surge a direita radical. Não preciso descrevê-la muito, agora já estamos suficientemente familiarizados com essa realidade, antes reservada a livros de história ou personagens exóticas.

Em um ou em outro caso (centro-direita ou extrema-direita), a esquerda vive sempre um desafio ontológico. É sempre mais desafiante propor “outro mundo”, ainda mais em democracias liberais, quando a conquista se faz por um casamento de propaganda e voto individual, exigindo a conquista de metade mais um dos corações. Mesmo em governos revolucionários, não é fácil. Os bolcheviques tiveram que ceder a certo “retorno ao capitalismo” com a NEP, os chineses depois de Deng Xiaoping promoveram uma enorme transformação, abrindo os mercados às empresas ocidentais e incentivando internamente a abertura de empresas voltadas ao lucro. Isso não “prova” que é o melhor caminho, mas evidencia que mesmo os revolucionários devem lidar com o mundo que encontram, e este é ainda capitalista.

Nas eleições em 2022, a esquerda conta com um líder que já foi presidente, que não é revolucionário e que propiciou algumas transformações sem mexer tanto no “mundo” em que vivíamos. Não à toa fez uma campanha estruturada na memória do governo anterior e em uma expectativa (não muito detalhada) de retorno a tempos melhores. Somado a isso, participou de uma defesa “conservadora” básica: a manutenção de certas instituições liberais (a Suprema Corte, a imprensa, o Estado de direito, enfim).

Ainda assim, a direita mobilizou diversos afetos de reação à possível “desordem” que a esquerda supostamente iria produzir: corrupção, descontrole fiscal, desincentivo ao crescimento privado, inchaço na máquina pública, ameaça à integridade das famílias, legalização do aborto e das drogas, favorecimento ao crime organizado. Embora boa parte assentada em imaginário fantasioso, isso foi suficiente para criar um amálgama de afetos em quase metade da população. 

A esquerda (não apenas os partidos, mas todos que a defendem) sempre viverá o desafio adicional de ponderar a oportunidade do próximo avanço. Em cada diálogo e em cada processo formativo, isso sempre significa uma negociação entre o que se avança e o que se conserva. Por mais paradoxal que possa ser, talvez ela sempre terá de prestar atenção a um velho pensador conservador: “quando a vida sofre suas transformações mais tumultuadas, como em tempos revolucionários, (...) conserva-se muito mais do que era antigo do que se poderia crer, integrando-se com o novo, numa nova forma de validez” [6]. Que escolhas assumir diante desse paradoxo será sempre a questão fundamental.


Notas

[1]  Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. 2ª Ed. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p.110.

[2]  “Ad Feurbach”. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

[3]  Igualdade e diferença: construções históricas e imaginárias em torno da desigualdade humana. Petrópolis: Vozes, 2016.

[4]  FRASER. Nancy. Cannibal Capitalism: How our system is devouring our democracy, care ant the planet – and what we can do about it. London/New York: Verso, 2002.

[5]  SOMBRA, Laurenio. “Rede de sentidos e antagonismo: reconstruindo os fios”. Revista Ideação – Dossiê Especial NEF, 2020.

[6]  GADAMER, Hans Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 423.

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