Ensino de Filosofia, Neoliberalismo e Parentalismo: reflexões de uma professora
Jéssica Erd Ribas
Doutora em Educação (UFSM). Professora de Filosofia da Educação Básica. Integrante do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar.
19/05/2025 • Coluna ANPOF
Em colaboração com Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil)
e GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof
Na última década, a tônica de que “a escola não é uma empresa” tem ganhado força nos discursos de professores(as) e pesquisadores(as) em educação. Não por acaso, ela surge diante das incisivas investidas do neoliberalismo no território educacional, seja nas políticas públicas educacionais, seja no currículo escolar, ou nas metodologias de ensino e aprendizagem. Cada vez mais rebuscados e capciosos são os ataques neoliberais à escola. Redução ou extinção de carga horária de disciplinas consagradas no currículo escolar dos jovens, criação de itinerários formativos deficitários de conteúdos relevantes e pertinentes a uma formação humanística sólida, plataformização e uberização do ensino, entre outros, podem ser mencionados como exemplos desse cenário. Também não por acaso, o filósofo francês, Christian Laval, escolheu “A escola não é uma empresa” como título para sua obra, que denuncia que a educação não deve ser reduzida à lógica empresarial. O autor incide contra a influência do neoliberalismo no espaço escolar, que tem criado estratégias para transformar as premissas educativas em premissas empresariais, tais como, inovação, eficiência, eficácia, produtividade e mercadoria.
No Brasil, tais investidas podem ser observadas, no que concerne ao Ensino Médio, por exemplo, no enunciado da criação de disciplinas que devem Projetar a Vida para o Mundo do Trabalho, haja vista as disciplinas Projeto de Vida e Mundo do Trabalho que integram o currículo do assim chamado “Novo Ensino Médio”. Como professora de filosofia não hesito em perguntar: é essa mesma a função da escola? Podemos assistir inertes à projeção da vida do jovem de acordo com as regras do mercado?
A lógica da precarização do ensino, da desvalorização docente e do desmonte da escola pública na perspectiva da formação humana integral, não é novidade. No entanto, o cenário brasileiro da última década tem demonstrado a insistência do pensamento neoliberal em descaracterizar a escola como um espaço de pensamento crítico e construção de saberes. Trabalhar para dignificar a vida, estudar para aprender a trabalhar, aprender a aprender a trabalhar, sair da escola preparado para o mercado de trabalho, são discursos que ganharam o coração de uma geração de estudantes e famílias. É só isso mesmo? E o ensino de filosofia diante desse engodo? Questionar o lema da precarização do trabalho e alienação coletiva parece, cada vez mais, questionar o sentido e o significado que as novas gerações estão construindo sobre o estar na escola. E é preciso enfrentar tal situação com urgência e seriedade.
Outro grande problema que se interpõe às escolas brasileiras como sintoma da propagação dos discursos neoliberais, e mais recentemente, da escalada da extrema direita e do fascismo, refere-se ao parentalismo. Quando a educação perde a pedagogia e assume o parentalismo como mote, temos um substrato muito eficiente da lógica empresarial. Isto é, quando a escola, professores e demais profissionais da educação ficam refém dos ditames familiares. A censura de temas, problemas e questões discutidas nos componentes curriculares escolares é foco direto da união neoliberalismo e parentalismo. Embora todas as áreas do conhecimento sofram com esse tipo de situação inquisidora, as ciências humanas ocupam destaque especial nas reclamações das famílias mobilizadas pelo constrangimento pedagógico que uma simples aula que tematize direitos humanos e desigualdade social pode causar. Sentem-se atacados e são incentivados a contra-atacar. As redes sociais estão lotadas de canais que instruem as famílias a insurgirem-se contra a escola e o ensino de humanidades, sob o argumento de doutrinação, e mais uma porção de besteiras que não me atrevo a repetir. Herdeiros do antigo projeto escola sem partido hoje revestem-se de um poder moral que percebem ter nas mãos: a demagogia parentalista.
Escavando seus discursos e ações, encontramos o novo Leviatã de qualquer professor(a) de filosofia da educação básica brasileira na contemporaneidade, que em uma das mãos carrega o neoliberalismo e na outra o parentalismo como forças que sustentam o seu soberano. Diferente de momentos anteriores em que podíamos discutir com mais afinco a ampliação da carga horária escolar para a disciplina, ou metodologias e estratégias de ensino, hoje estamos esmagados pela necessidade constante de justificar o uso de um assunto ou temática em sala de aula. Amostra disso, são os recentes projetos de lei protocolados em diferentes esferas do poder público visando proibir discussões sobre gênero nas aulas. Como resultado, diversas figuras políticas recomendam análise e retirada da palavra gênero dos livros didáticos, o que, evidentemente, causaria um problema absurdo para disciplinas como português e biologia, por exemplo. Não avançam nesses projetos, dado o seu absurdo. No entanto, os militantes parentais, em legião, exercem pressão e constrangimento às escolas e professores.
A separação necessária, demonstrada por Hannah Arendt, entre o espaço da educação, o espaço da família e o espaço do mundo econômico, tem encontrado muitos entraves. Às vezes, sinto que essa suspensão temporária necessária não encontra meios nem de ser falada. Atualmente a banda tem tocado assim: ou a escola funciona e se comporta como uma empresa, ou se alia a empresas para encontrar o modo mais adequado de eficiência. E a sua clientela deve receber a música que melhor desejar. Professores? Ah, os professores… entre uma aula e outra, dançando a valsa do fim do mundo.
O sintoma enlouquecido de uma sociedade que confunde educação com emissão de diplomas, e liberdade de expressão com fascismo, irá nos levar à breca. Precisamos tratar como nossa tarefa primeira a definição de que a escola não é uma empresa. Ensinar filosofia ficou muito mais difícil quando não se pode falar de filosofia!
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.