Especial Anpof 8M - A Filosofia de Damaris Cudworth Masham: A Perspectiva de uma mulher na História da Filosofia

Andréa Maria Cordeiro

Mestranda em Filosofia pela UFSM

27/03/2024 • Coluna ANPOF

GT Mulheres na História da Filosofia

Na história da filosofia, as vozes de mulheres muitas vezes foram silenciadas ou negligenciadas. A filosofia, tradicionalmente dominada por homens, muitas vezes relegou essas vozes a um segundo plano, ignorando suas contribuições e perspectivas únicas. No entanto, ao longo dos séculos, algumas filósofas notáveis desafiaram essas barreiras e deixaram um legado duradouro no campo do pensamento filosófico. Após um longo período afastada da academia filosófica e me dedicando exclusivamente à maternidade, retornei  ao estudo formal de filosofia e decidi pesquisar uma dessas mulheres que fizeram grande diferença não só em sua época, mas que podem nos trazer grandes contribuições até os dias atuais, Damaris Cudworth Masham, também conhecida como Lady Masham, desafiou as convenções de sua época, fez importantes contribuições para a filosofia e seu trabalho e suas ideias merecem ser trazidos à luz e celebrados. É uma filosofa pouco conhecida no Brasil e, consequentemente, sua filosofia não figura nos manuais e bibliografias de cursos de graduação e pós-graduação.[1] Ao pesquisar sobre uma filósofa mulher, como Lady Masham, estamos não apenas preenchendo uma lacuna na história da filosofia, mas também desafiando a narrativa dominante que muitas vezes exclui as contribuições das mulheres. É importante reconhecer e valorizar o trabalho das filósofas, não apenas por uma questão de equidade de gênero, mas também por uma questão de enriquecimento do próprio campo da filosofia.

Damaris Cudworth Masham (1659-1708) nasceu e viveu na Inglaterra no século XVII, era filha de um conhecido e respeitado filósofo, professor da Universidade de Cambridge, Ralph Cudworth, que integrava o grupo conhecido como “Platonistas de Cambridge”. Como era comum para as mulheres na época, Lady Masham não recebeu uma educação formal, mas demonstrou grande interesse pelas questões filosóficas desde muito cedo e o fato de ser filha de um notável filósofo, possibilitou que ela circulasse pelos eventos intelectuais e desempenhasse um papel ativo e fundamental no debate filosófico, desafiando as convenções de seu tempo. Além disso, teve uma profunda amizade com John Locke, um dos filósofos mais influentes da época. Foi em sua casa que ele passou os últimos anos de sua vida e para quem ele deixou de herança sua imensa biblioteca. Locke foi seu grande admirador e incentivador. Suas correspondências eram frequentes, compartilhavam muitas ideias filosóficas, incluindo a defesa do livre-arbítrio e a crítica ao determinismo.  Lady Masham foi uma defensora da filosofia empirista e suas ideias tiveram um impacto significativo no desenvolvimento do pensamento filosófico do século XVII.

Foi uma mulher fenomenal, chamando a atenção pela grande qualidade de sua produção filosófica. Ainda que anonimamente, publicou duas obras: “Discurso sobre o amor de Deus” (Discourse Concerning the Love of God) de 1696 e “Pensamentos Ocasionais sobre uma vida virtuosa e cristã” (Occasional Thoughts in Reference to a Vertuous or Christian life) de 1705. Além dessas duas obras que, apesar de terem títulos religiosos, abordam questões filosóficas como filosofia moral, metafisica e, em especial na segunda obra, a importância da educação para as mulheres, Lady Masham teve uma série de interlocutores. Além de Locke, correspondeu-se com muitas personalidades conhecidas filosoficamente, entre elas podemos citar Limborch, Antony Cooper, Jean Le Clerc e Leibniz.

Uma das suas importantes contribuições para a filosofia foi a sua troca epistolar com Leibniz, que teve inicio quando ela buscava um aliado para defender a filosofia de seu pai que havia sofrido duras criticas. As cartas não apenas revelam a profundidade do pensamento de Masham, mas também demonstram sua capacidade de se envolver em debates filosóficos complexos e desafiadores. Durante toda esse troca epistolar, mesmo se justificando por ser mulher, desculpando-se pelo gênero, Masham debateu e discutiu com Leibniz de igual para igual, em nenhum momento sentiu-se intimidada, fazendo com que diversas vezes ele precisasse explicar, justificar e até mesmo reformular muitos de seus pensamentos. Sempre firme em suas afirmações, Masham mostrava-se segura e preparada para debater sobre os mais diversos assuntos filosóficos.  Em suas correspondências com Leibniz abordou uma variedade de temas filosóficos, incluindo a natureza da realidade, a existência de Deus e a relação entre mente e matéria, entre outras coisas. Uma das questões centrais dessas discussões foi a questão da liberdade da vontade e da responsabilidade moral. Masham argumentava que a liberdade humana era compatível com a ideia de um Deus onisciente e onipotente, desafiando assim as concepções tradicionais que sugeriam um determinismo absoluto. Além disso, Masham também contribuiu para a filosofia moral, defendendo uma ética baseada na razão e na benevolência. Ela acreditava que a virtude moral era essencial para a felicidade humana e que a bondade e a compaixão deveriam guiar nossas ações no mundo. Sua abordagem ética influenciou não apenas seus contemporâneos, mas também filósofos posteriores que buscavam conciliar a razão e a emoção. Essa troca de correspondências não apenas enriqueceu o pensamento filosófico da época, mas também destacou a importância do diálogo e do debate. Essa troca foi importante não somente para Lady Masham, mas foi de extrema importância para a compreensão das ideias e do sistema de Leibniz.

Além disso, Masham também foi uma crítica da teoria do conhecimento inato, defendendo a ideia de que todo conhecimento deriva da experiência sensorial. Sua abordagem empirista influenciou diretamente o pensamento de John Locke e contribuiu para o desenvolvimento da epistemologia moderna.

Lady Masham também se destacou por sua defesa dos direitos das mulheres e sua crítica às desigualdades de gênero presentes em sua sociedade. Advogava em favor da educação para as mulheres e tomou parte de uma polemica que ficou conhecida como “querela das mulheres” que opunha misóginos e feministas desde o inicio do século XV, mas ganhou maior forca no decorrer do século XVII.[2] Ela argumentava que a educação para as mulheres é fundamental não só por elas serem almas racionais e imortais que, assim como as almas masculinas, requerem salvação, mas também e principalmente porque são as mulheres/mães as responsáveis pela educação de todas as crianças e caso não recebam uma educação adequada, não serão capazes de educar de maneira correta os futuros cidadãos. Reconhece o poder da educação para um bom desenvolvimento dos reinos e das comunidades e critica profundamente a negligência e a omissão da sociedade em relação a educação para as mulheres. Segundo ela, as mulheres precisam em primeiro lugar serem convencidas da necessidade dessa educação e diz que reconhecer a opressão sob a qual vivem, é o primeiro passo para lutar contra ela.

Ao estudar a filosofia de Damaris Cudworth Masham, somos confrontados com questões importantes sobre gênero, poder e conhecimento. Sua obra nos convida a repensar as narrativas tradicionais da filosofia e a considerar como as vozes de mulheres podem enriquecer e diversificar o campo filosófico.

Em um momento em que a representatividade e a diversidade são temas centrais de discussão em todas as áreas do conhecimento, a redescoberta e valorização do trabalho de filósofas como Lady Masham torna-se não apenas uma questão de justiça histórica, mas também uma oportunidade para ampliar nossos horizontes intelectuais e enriquecer nosso entendimento do mundo.

Em suma, ao escolher explorar a filosofia de uma pensadora mulher como Lady Masham, estamos não apenas resgatando uma parte importante da história da filosofia, mas também abrindo novos caminhos para o pensamento filosófico contemporâneo. Suas ideias e contribuições merecem ser estudadas e apreciadas, não apenas por sua relevância histórica, mas também por sua importância para o debate filosófico atual.


Notas

[1] Em uma pesquisa rápida na base de “Periódicos da capes”, utilizando como assunto o nome “Damaris Cudworth Masham” aparecem sete registros, sendo apenas um em português. Disponível em: https://www-periodicos-capes-gov-br.ezl.periodicos.capes.gov.br/index.php/buscador-primo.html Acessado em: 24/03/2024

[2] Há inclusive um movimento conhecido como “arqueofeminismo” para identificar filosofas e filósofos que, antes da denominação de feministas, advogaram a favor da educação e direitos para as mulheres. No Brasil, recentemente, foi publicada a coletânea “Arqueofeminismo”, contudo, os escritos de Lady Masham não aparecem entre os nomes destacados, o que marca novamente o fato de que seus escritos não são muito conhecidos.