Especial Anpof 8M: Do epistemológico ao político: uma reflexão acerca das mulheres negras na filosofia

Halina Leal

Professora de Filosofia da Universidade Regional de Blumenau

25/03/2024 • Coluna ANPOF

GT Mulheres na História da Filosofia

O que é o conhecimento? Como, enquanto humanos, interagimos e acessamos os objetos passíveis de serem conhecidos? Quais são esses objetos? Quais os limites do conhecer? O que significa conhecer? Num sentido genérico, uma das acepções do termo conhecer refere-se à capacidade humana de perceber e pensar os objetos da realidade concreta ou abstrata.  A capacidade de conhecer está presente apenas nos seres humanos, pois estes são aptos a desenvolverem um conhecimento complexo manifesto em linguagens específicas. É por meio do desenvolvimento da linguagem que se busca expressar o estabelecimento de relações entre os seres humanos e o mundo e os seres humanos com suas experiências neste mundo e para além dele. As tentativas de estabelecer tais relações fizeram com que variadas formas de interação dos seres humanos com o que os rodeia resultassem em distintas reflexões acerca do conhecer.

Ao longo da história, a filosofia desempenhou e desempenha um papel crucial acerca de tais reflexões e a epistemologia, domínio de estudo filosófico ocupado com as investigações acerca do conhecimento, se centra na questão de como se estabelece a relação entre sujeitos cognoscentes e objetos cognoscíveis.  A partir dessa questão basilar, a epistemologia tenta responder a questionamentos referentes às possibilidades do conhecer, o que ocorre com o sujeito que tenta apreender determinado objeto e o que pode ser considerado um objeto cognoscível.

As respostas a esses questionamentos delineiam muito dos debates epistemológicos no contexto filosófico. Quando analisamos a questão das possibilidades do conhecimento, nos voltamos basicamente para o ponto de saber se o sujeito cognoscente consegue ou não acessar seu objeto de conhecimento. No que diz respeito à análise do fundamento subjetivo do conhecimento, ou seja, de quais são as características ou capacidades do sujeito cognoscente para que este acesse o objeto de conhecimento, focamos principalmente nas capacidades relacionadas à abstração e ao seu aparato perceptivo. E sobre os objetos de conhecimento, os questionamentos de fundo residem em saber qual “realidade” é cognoscível.

Para além do aparato teórico-conceitual que se desdobra nos debates epistemológico-filosóficos há bastante tempo, o que gostaria de ressaltar aqui é que as respostas aos questionamentos acerca do conhecer, inclusive algumas críticas às abordagens mais tradicionais no que se refere ao assunto, ainda giram em torno de uma possibilidade universal do conhecer, no sentido de ainda focarem na existência ou não de uma capacidade comum que conduza todos os seres humanos ao conhecimento, inclusive os definindo enquanto humanos.

Ao mesmo tempo em que aparentemente essa visão epistemológica não fecha a possibilidade de consideração de variação, de cultura para cultura, dos meios e pressupostos do conhecimento, se apresentando, até mesmo, como democrática – “Enquanto humanos, o conhecimento é acessível a todos, independentemente de variações culturais.” – essa acessibilidade se pauta em um padrão específico, qual seja, o padrão eurocêntrico. Ao se afirmar que as perspectivas epistemológicas da filosofia são eurocêntricas, identifica-se que isso ocorre porque a própria filosofia ainda é majoritariamente a reprodução de um pensamento eurocentrado, com uma origem situada espaço-temporalmente, mas que se impôs (e se impõe) como “o” modelo de estruturação de ideias e de reflexões.

O modelo eurocentrado de conhecimento produz discursos e métodos que definem quais devem ser as capacidades dos sujeitos cognoscentes e quais são os objetos cognoscíveis, em geral, com debates orbitando em torno da existência de um conjunto supostamente universal, imparcial e neutro de pensamentos e conhecimentos. A tentativa de validação de signos e significados que não se reduzem ao padrão eurocentrado foi e ainda é, muitas vezes, rechaçada. O que provoca não somente a exclusão do status de sujeitos cognoscentes a membros de determinados grupos da sociedade, mas o status de objetos cognoscíveis aqueles que não estão no escopo de “realidade” passível de ser conhecida e produzir conhecimento a partir desse padrão ou modelo.

Essa exclusão acarreta várias consequências bem objetivas, e nada neutras, no contexto de produção de conhecimento em geral e no contexto de produção de conhecimento filosófico. Uma dessas consequências é, por exemplo, a marginalização do conhecimento produzido por mulheres e pessoas racializadas, por diferirem do padrão ou produzirem saberes não considerados dentro do padrão estabelecido que, em um contexto patriarcal e racista, orbita em pensamentos produzidos por homens e por pessoas brancas.

Nesse contexto, quais seriam as condições das mulheres negras cujos processos excludentes são resultantes de opressões de gênero e étnico-raciais conjuntamente? Na sociedade em geral e na produção de conhecimento filosófico em particular, há espaço para o conhecimento produzido pelas mulheres negras?

A situação das mulheres negras na sociedade e, segue-se daí, em ambientes de produção de conhecimento, são resultantes do peso combinado de opressões de gênero, de raça (e de classe[1]) e que molda as várias experiências às quais tais mulheres são submetidas em ambientes patriarcais e racistas, reprodutores de machismo, sexismo e racismo. O que significa dizer que a contemplação e as reivindicações de questões voltadas somente à opressão de gênero não as contemplam, as voltadas unicamente a questões de raça também não, assim como debates que enfatizam a hierarquia de opressões. Nesse caso, se as opressões de gênero e de raça forem consideradas separadamente, seja nos debates teóricos, movimentos de resistência ou em vivências do dia a dia, as mulheres negras experienciam o não-lugar.

E, como identificamos este não-lugar no contexto de produção de conhecimento filosófico? Talvez consigamos identificar, prestando a atenção nos não-lugares ocupados pelas mulheres negras na filosofia. Se já há a ausência, ou não reconhecimento, de mulheres brancas e de homens negros como agentes de produção de conhecimento filosófico, no que se refere às mulheres negras, essa ausência se aprofunda e intensifica. O lugar das mulheres negras não está dado, nem epistemicamente nem enquanto território político a ser ocupado em ambientes de tomadas de decisão e de produção de conhecimento filosófico. Por um lado, as mulheres negras, mesmo se apropriando e assimilando o dito padrão, ou o denominado cânone filosófico, não alcançam um amplo reconhecimento de seus trabalhos. Isso quando não são totalmente invisibilizadas. É como se estivessem falando de algo que não lhes diz respeito, que não conseguem “alcançar” muito bem e, muitas vezes, parece que devem ser sempre “tuteladas” por professoras/es, orientadoras/es, coordenadoras/es etc. É o constante colocar à prova, diminuir ou simplesmente invisibilizar. Há a reiterada invalidação do conhecimento das mulheres negras no ambiente filosófico. E, mais do que isso, há a naturalização dessa invalidação. O que torna muito difícil para tais mulheres lidarem com o que acontece, pois a discriminação, na maioria das vezes, mesmo não sendo expressa de forma direta, é constante e intensamente praticada. 

Se há dificuldade a partir da apropriação do cânone, imagina no que se refere à proposição de objetos cognoscíveis que não se enquadrem na “realidade” passível de ser conhecida no modelo eurocentrado? Muitas pessoas, em especial as mulheres negras, que ousam propor temáticas e metodologias diversas de reflexão filosófica são, por vezes, mantidas sob vigilância ou simplesmente são isoladas e seus trabalhos ignorados. O que faz com que elas tenham que desenvolver suas pesquisas em outras áreas, pois o que propõem e fazem não é considerado filosofia.

Quando temáticas diversas, de pensadores negros e negras, por exemplo, são absorvidas no campo filosófico, a produção fica a cargo, na sua maioria, de homens brancos, seguidos de mulheres brancas que assumem esta episteme como seus objetos de pesquisa. O que constitui um movimento importante para a ampliação do pensamento filosófico, um movimento necessário, mas não suficiente, tendo em vista o fato de que, mais uma vez a invisibilização acaba operando sobre as mulheres negras na produção de conhecimentos filosóficos.

A questão principal é que, embora tentem reiteradamente invisibilizar as mulheres negras na filosofia, as colocando em não-lugares, elas não somente resistem, mas existem e produzem conhecimento filosófico de distintas formas. A reivindicação do reconhecimento de mulheres negras enquanto produtoras de conhecimentos filosóficos se constitui na recusa de apagamento e silenciamento de tais mulheres enquanto reflexivas e autônomas. Expressar a invisibilização é um movimento contra a hegemonia imposta pelo imaginário machista, sexista e racista constituinte da sociedade e que, infelizmente, ainda é reproduzido fortemente no ambiente filosófico.

Ao explorar novas fronteiras, integrar diferentes perspectivas e abraçar os desafios contemporâneos, podemos construir perspectivas epistemológicas e filosóficas mais dinâmicas, inclusivas e alinhadas com a complexidade e diversidade do mundo em que vivemos. A filosofia é crítica, formulação de questionamentos e desestabilização de posturas enraizadas. O fazer filosófico nos exige reflexões e revisões constantes a respeito da filosofia, de suas narrativas e principalmente de seus protagonismos. Isso pode se dar por distintos caminhos e um deles é não somente repensar as perspectivas epistemológicas da filosofia, mas ter ciência de que repensar tais perspectivas nos conduz a repensar as perspectivas históricas, sociais e, sobretudo, políticas da filosofia.


[1] Nesta reflexão, por questão de extensão do texto, não será inserida e nem desenvolvida esta categoria.

DO MESMO AUTOR

Filosofia e Gênero

Halina Leal

Professora de Filosofia da Universidade Regional de Blumenau

21/06/2021 • Coluna ANPOF