Especial Anpof 8M: Elisabeth da Boêmia: a filósofa que fez Descartes dialogar neste mundo

Katarina Peixoto

Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade da Virgínia (UVA) e no Departamento de Filosofia (USP)

07/03/2024 • Coluna ANPOF

GT Mulheres na História da Filosofia

Há muitas portas de entrada para o estudo da filosofia do início do período moderno e poucas delas poderão ser adentradas senão pela filosofia de René Descartes[1]. O caráter contingente dos vieses contextuais que fixa nossos aparatos conceituais, entretanto, não exaure a descrição do que pode justificar um cânone e o projeto metafísico de fundar uma nova filosofia da natureza a partir do legado anunciado e projetado de Galileu, levado a cabo pelo filósofo francês, o qual dignifica a existência mesma de um cânone. Hoje, parte significativa da filosofia prática, da fenomenologia e da filosofia da mente endereçam pressupostos de método ao cartesianismo, criticando-o. Por alguns desses mistérios que somente a contingência pode vir a explicar, a filosofia cartesiana se tornou uma caricatura, segundo a qual o corpo seria heterogêneo à mente e esta seria inteiramente definida como uma estrutura puramente intelectual, apartada da experiência. Descartes teria inventado um um “homúnculo” – paradigmaticamente representado em um dos monstros do primeiro Men in Black, MIB, como um minúsculo extraterrestre habitando um corpo gigante. É como se a filosofia fosse uma conversa sobre mal-entendidos, desde o parricídio de Aristóteles, que inventou um Terceiro Homem jamais considerado por Platão. Com Descartes, entretanto, o mal-entendido fez história, muito mais do que uma scholarship rigorosa e consolidada, como o é a Aristotélica. É esse tipo de confusão entre história e o que podemos fazer de nosso passado que torna essa filósofa tão relevante.

Em maio de 1643, Elisabeth da Boêmia (1618-1680) escreve a Descartes[2], dando início a uma longeva e contínua troca epistolar. Ela endereça a Descartes uma questão cujo sentido não está assentado na literatura. Para a filosofia, em geral e desde o seu nascimento na Grécia (quero dizer, confessadamente, da filosofia ignorante de outros lugares, o diálogo e as formulações de questões estão entre os instrumentos fundantes que definem a nossa atividade. Em uma tradição que nasce do estudo e da interpretação de diálogos, um dos documentos modernos mais fundamentais para a filosofia do período foi mutilado e tratado como um solilóquio[3].

As cartas de Descartes a Elisabeth foram publicadas após a morte do filósofo, na edição de Clerselier (1657-1667). As cartas de Elisabeth foram descobertas por Frederik Muller, na biblioteca de Rosendael Castel somente em 1876 e vieram a lume em 1879, publicadas por Foucher de Careil. O legado de Elisabeth foi negligenciado pela historiografia filosófica de fins do Século XIX e de quase todo o Século XX, até que os esforços de recuperação e reconstrução do legado de Elisabeth foram iniciados, sobretudo, com os trabalhos de Sabrina Ebbersmeyer, Lilli Alanen[4] e de Lisa Shapiro, a qual não apenas ofereceu uma tradução comentada das cartas, mas inaugurou uma scholarship voltada a considerar esse material como um diálogo, tirando Elisabeth do silenciamento. Um dos efeitos de considerar um diálogo como tal é levar a sério que há ao menos duas pessoas em uma conversa. Há muitos casos de injustiça epistêmica[5] implicada pelo apagamento de mulheres na fixação de cânones e este, de Elisabeth da Boêmia, é um dos, senão o mais clássico, na História da Filosofia do Início do Período Moderno.

É uma situação digna do Nachlass da misoginia historiográfica da filosofia, em todo caso, que Elisabeth seja tão familiar a quem estuda Descartes como o é desconhecida em sua filosofia. As cartas de Descartes à Princesa da Boêmia produziram uma monumental scholarship sobre dualismo substancial, problema mente-corpo, noções primitivas, interação, atributos e modos, entre outros temas, ao longo de mais de um Século. Que Descartes tenha dedicado tanto tempo e esforço intelectual, que tenha dedicado o seu trabalho de maturidade metafísica (os Princípios, de 1644) a Elisabeth, esses fatos não geraram curiosidade, ou um ceticismo intuitivo à prática filosófica, porventura voltado à conexão entre um nome e um pensamento filosófico (vá se saber), do período.

O traço exemplar da injustiça epistêmica é tanto mais irredutível porque Elisabeth teria oferecido objeções ao dualismo, um dos temas mais discutidos na filosofia cartesiana. Ainda assim, continuou sendo tomada, ao longo de gerações, como um nome e não como uma filósofa – que o próprio Descartes levou muito a sério, ao longo de seis anos. É, portanto, intuitivo considerar que a tarefa de reconstrução conceitual do pensamento de Elisabeth seja mais custosa, porque há pouca scholarship sobre o diálogo. Uma anotação não ociosa, ainda: embora a troca de cartas tenha sido o veículo prioritário de divulgação científica e produção intelectual na República das Letras, não era comum a mudança de posições a partir da troca epistolar. Elisabeth, em contraste, influenciou não apenas a redação de Paixões da Alma (1649) - fato suficiente para justificar o estudo de seu legado; a consideração da Correspondência como um diálogo pode dar a ver que se trata de uma das únicas correspondências que acarretaram mudanças e desenvolvimentos conceituais em ambos os interlocutores.

Há efeitos deletérios desse silenciamento: a consolidação do viés, por meio da leitura das cartas de Elisabeth a partir do que Descartes respondeu e não do que ela pode ter querido saber e ou tenha dito, desenvolvido e formulado; que Elisabeth tenha questionado Descartes sobre a ação e a origem das ações voluntárias e natureza da mente, para Descartes, foi secundarizado ou esquecido; em vez disso, a ênfase em que a Princesa teria desferido uma crítica ao dualismo substancial é pervasiva. Quando se lê as cartas diretamente, no entanto, o que se vê é que quem introduz o dualismo e o corpo na troca epistolar, como tema filosófico prioritário, é Descartes. Outro efeito é que as cartas são consideradas de maneira fragmentada, como se não houvesse um fio de continuidade do pensamento. Esse procedimento também parece supor que o fio de continuidade é a scholarship cartesiana, exclusivamente.

A reconstrução do pensamento de Elisabeth requer a perspectiva dialógica como a via de acesso ao desenvolvimento filosófico dela. Por um lado, porque seu pensamento é apresentado nessas cartas. Por outro, porque a sua contribuição para o pensamento cartesiano é inseparável da sistematização mesma do projeto de Descartes, que culmina com a publicação de Paixões da Alma (1649), um trabalho impensável sem a interlocução do filósofo com Elisabeth (vale dizer, para além da discussão sobre Paixões da Alma). A tarefa de trabalhar com o pensamento de Elisabeth consiste em esforço de compreensão, com o cuidado de considerar o material da presença insidiosa do viés historiográfico. Esta é uma escolha de método ela mesma de natureza cartesiana, segundo a qual devemos acessar o material do que pensamos de maneira direta, sem dignificar preconceitos; este critério parece mais do que suficiente para justificar o reconhecimento de uma dinâmica dialógica onde há um diálogo[6].

Nesse caminho, um breve mapa temático das cartas merece atenção. A primeira etapa temática é a da troca epistolar se inicia em Maio de 1643, com uma carta de Elisabeth ao filósofo. Desta carta até a de Descartes de 17 de novembro de 1643, as discussões se concentram nos temas da conexão mente e corpo, no estatuto da gravidade e nas discussões sobre atributos, envolvidos nas noções de extensão, não-extensionalidade, qualidades reais, movimento, união substancial, ação e governo da alma. A segunda etapa se inicia na carta de 17 de novembro de 1643, quando Descartes introduz uma discussão sobre o problema dos três círculos afim de endereçar a busca por Elisabeth, ao tratar do problema, por uma “quantidade desconhecida” da mente. A carta na qual Elisabeth teria apresentado a sua reconstrução do problema dos três círculos, está perdida. As cartas disponíveis, endereçadas de novembro de 1643 a Julho de 1644, majoritariamente por Descartes, são cartas sobre o problema dos três círculos e externalidades da vida de ambos os interlocutores. A terceira se inicia com a carta de Elisabeth de 1 de agosto de 1644 e vai até o fim da Correspondência, em 1649.

A questão da união substancial e a natureza mesma do conceito de substância, no cartesianismo, está longe de ser assentada. A literatura sobre Elisabeth está em expansão. A troca epistolar não foi apenas longeva, mas contínua. E os problemas endereçados passam por uma persistente elaboração, sobretudo, por Elisabeth. Por fim, há um elemento crucial na perspectiva de Elisabeth: o diálogo neste mundo, nas circunstâncias e no contexto em que se está[7].  Se, qua diálogo filosófico, essa troca epistolar dignifica a nossa prática, talvez tenhamos de levar a sério que estudar Elisabeth não é apenas uma tarefa a mais contra o silenciamento. Isso pode não ser suficiente para resolver todos os mal-entendidos, afinal, a filosofia tem no parricídio de Aristóteles um dos mais fecundos começos, como história e na história. Espero que isso seja suficiente, entretanto, para cultivarmos uma historiografia com a seriedade cética e com a generosidade que Descartes o fez.

Agradecimentos:

Esta notícia de estudo é parte de um projeto de pós-doc, “Ação e Liberdade: estudos na história da filosofia de Elisabeth da Boêmia e Émilie Du Châtelet”, no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), agraciado com uma bolsa FAPESP (2022/06900-2), sob a supervisão de Luiz Henrique Lopes dos Santos. Neste momento, este projeto é desenvolvido no Departamento de Filosofia da Universidade da Virgínia (UVA), sob a supervisão de Jorge Secada, com bolsa BEPE-FAPEPS (2023/11189-9). 


[1] Uso a edição CSM: The Philosophical Writings of Descartes, ed. And trans. John Cottingham, et al., 3 vols (Cambridge: Cambridge University Press, 1984-5, minhas traduções.

[2] Utilizo como referência a Tradução Comentada da Correspondência feita por Lisa Shapiro: “The Correspondence between Princess Elisabeth of Bohemia and René Descartes”, In: The other voice in Early Modern Europe. The University of Chicago Press, 2007. Traduções para o português são minhas.

[3] Ver Ebbersmeyer (2020). An Inventory of the Extant Correspondence of Elisabeth of Bohemia, Princess Palatine (1618–1680), In: Journal of the History of Philosophy, vol. 58, no. 2 (2020) 325–398

[4] Alanen, L. (2004) Descartes and Elisabeth: a Philosophical Dialogue? In: Feminist Reflections on the History of Philosophy, Kluwer Academic Publishers. L.Alanen & C. Witt (eds), pp. 193-218, Shapiro fez a Tradução Comentada da Correspondência, para o inglês, acima referida, e vem publicando sobre Elisabeth, Shapiro, L. (2004). Some Thoughts on the place of Women in Early Modern Philosophy. In: Feminists on the History of Philosophy, Alanen, L. & Witt, C. (Eds), pp. 219-250; (1999) Princess Elizabeth and Descartes: The Union of Soul and Body and the Practice of Philosophy. In: British Journal for the History of Philosophy 7: 503-520, o verbete da Stanford Encyclopedia of Philosophy: Shapiro, L. (2021). Elisabeth of Bohemia, Entry. https://plato.stanford.edu/entries/elisabethbohemia/ e (2021) Princess Elisabeth and the Challenges of Philosophizing, In: S. Ebbersmeyer and S. Hutton (eds.), Elisabeth of Bohemia (1618–1680): A Philosopher in her Historical Context, Women in the History of Philosophy and Sciences 9, https://doi.org/10.1007/978-3-030-71527-4_, pp. 127-141, Traduções são minhas.

[5] Fricker. M. (2007). Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford Scholarship Online: DOI: 10. 1093/acprof;oso/9780198237907.001.001

[6] Ver o artigo de Ebbersmeyer citado acima.

[7]  Ver Lisa Shapiro: , L. (2021). Princess Elisabeth and the Challenges of Philosophizing, In: S. Ebbersmeyer and S. Hutton (eds.), Elisabeth of Bohemia (1618–1680): A Philosopher in her Historical Context, Women in the History of Philosophy and Sciences 9, https://doi.org/10.1007/978-3-030-71527-4_, pp. 127-141

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