Especial Anpof 8M: Um espectro ronda o dia internacional da mulher

Jordânia Araújo

Professora de Filosofia (IFBA) e doutoranda em Filosofia (UFBA); Integrante do GT Filosofia e Gênero

08/03/2024 • Coluna ANPOF

GT Filosofia e Gênero

É curioso observar como as celebrações do Dia Internacional da Mulher se desdobram em diversos espaços, incluindo nos setores reacionários e ultraconservadores. Nessas esferas, a comemoração se esbarra em uma representação da figura feminina que perpetua uma compreensão que acaba por reafirmar o papel exclusivo do cuidado, da maternidade como destino inevitável, e da visão quase essencialista da fragilidade, submissão e dependência, aspectos alinhados aos padrões sexistas e patriarcais. Isso é reforçado pela ideia de parabenizar as mulheres, presenteá-las com flores, chocolates ou memes "fofos" nas redes sociais, sem uma reflexão real sobre o verdadeiro significado e propósito desta data. Parece que é considerado importante celebrá-la, desde que as mulheres continuem, supostamente, ocupando os mesmos papeis historicamente difundidos e relacionados à subalternidade intelectual, política e econômica. Nesse contexto, é possível evidenciar a atualidade da crítica das palavras de Angela Davis quando diz, em Mulheres, raça e classe, que as mulheres “eram destinadas a se tornar apêndices de seus companheiros, serviçais de seus homens" (DAVIS, 2016, p. 48).

Essa representação, amplamente difundida, entra em contraste direto com a origem histórica da data, que surge da luta e da resistência das trabalhadoras operárias contra as opressões enfrentadas pelas mulheres no início do século XX. Estabelecendo um paralelo com as palavras iniciais do Manifesto Comunista de Marx e Engels, que proclama de forma dramática que "o espectro do comunismo rondava a Europa", podemos dizer que o espectro do marxismo não apenas paira sobre a data da celebração mundial das mulheres, mas também permeia os movimentos feministas. Assim como o comunismo representava uma ameaça aos sistemas estabelecidos na Europa – que a dupla revolucionária muito bem anuncia em seu texto célebre – o pensamento marxista desafia as normas tradicionais e contribui para o avanço dos movimentos feministas, questionando as estruturas de poder que perpetuam a desigualdade de gênero. Essa foi a principal pauta colocada em ação na história que originou o dia internacional da mulher. Portanto, para além das palavras de felicitação, a data representa, sobretudo, um longo caminho de lutas e de enfrentamentos.

O que chamamos de pensamento marxista só pôde florescer como uma das principais correntes filosóficas porque recebeu apoio e contribuições de diferentes pessoas, inclusive de mulheres, a exemplo da própria filha do filósofo revolucionário: Eleanor Marx. Ela aparece como uma figura indispensável, especialmente neste Dia Internacional da Mulher, ao nos lembrar os esforços e a luta das mulheres marxistas na consolidação de condições mais justas para as mulheres. Apesar de ter sido muitas vezes relegada à sombra de nomes imponentes de homens que marcaram a história e que faziam parte de seu círculo afetivo e familiar, Tussy é citada por seus discursos políticos envolventes, sua habilidade em mobilizar o movimento operário, suas traduções significativas e seu papel fundamental nas pesquisas de seu pai no Museu Britânico. Sem dúvida, ela merece o reconhecimento devido como Eleanor Marx, sem complementações.

Eleanor prontamente desafiou o destino predeterminado para as mulheres da pequena burguesia de sua época. Ela declara em seu artigo intitulado A questão da mulher, escrito em parceria com Aveling, que “A verdade, não totalmente reconhecida mesmo por aquelas e aqueles ansiosos por fazer o bem à mulher, é que esta, como as classes trabalhadoras, está em uma condição de opressão; que sua posição, como a dessas classes, é de degradação impiedosa. As mulheres são as criaturas de uma tirania organizada dos homens, assim como os trabalhadores são as criaturas de uma tirania organizada dos ociosos". Essa postura não apenas a guiou na adoção de uma práxis socialista, que já era compartilhada por sua família, mas também a impulsionou em direção a outros espaços, como nas artes e no teatro. Assim, a sua posição firme no campo socialista e sua participação ativa na busca pelos direitos das mulheres desempenharam um papel crucial na formação do cenário do movimento feminista e socialista.

Já em nossos dias, temos a contribuição importante da filósofa marxista Angela Davis, ativista que conseguiu de maneira consistente fazer o debate acerca da relação entre gênero, raça e classe. E não somente isso, nos provou através da sua luta efetiva no campo da práxis que a teoria precisa se mover para as mudanças reais. Sua contribuição surge como um novo esforço de mobilização teórica para investigar as implicações do entrelaçamento do gênero e do racismo, relacionados ao sistema capitalista.

Angela Davis é um excelente exemplo de que remontar as conquistas e vitórias das mulheres na história é trazer uma constatação difícil, embora necessária, que esse enredo é permeado por “mulheres que labutaram sob o chicote de seus senhores, trabalharam para sua família, protegendo-a, lutaram contra a escravidão e foram espancadas, estupradas, mas nunca subjugadas. Foram essas mulheres que transmitiram para suas descendentes do sexo feminino, nominalmente livres, um legado de trabalho duro, perseverança e autossuficiência, um legado de tenacidade, resistência e insistência na igualdade sexual – em resumo, um legado que explicita os parâmetros para uma nova condição da mulher.” (DAVIS, 2016, p. 42).

Em termos históricos, as mulheres negras foram socializadas nas condições mais precárias e desumanizantes. Sendo que esses abusos e agressões não foram eliminados com o advento da abolição. De acordo com Angela Davis, as pessoas escravizadas do sexo feminino desafiavam, o tempo inteiro, a lógica perversa da escravização. Após virar a página desse lastimável capítulo da história, ainda assim a mulher negra ocupa e desempenha, como regra, o trabalho doméstico. Quer dizer, as mudanças reais e concretas parecem ainda se formar lentamente. Pensar em uma nova condição libertária para as mulheres é recorrer aos exemplos de tenacidade, resistência e revolta na luta pela igualdade sexual e racial realizadas por elas.

Mais do que enfatizar a importância de figuras marxistas, cada uma pertencente ao seu tempo – que contribuíram para o movimento e a luta pelos direitos das mulheres – é crucial reconhecer que o aspecto mais significativo reside na participação de milhares de mulheres anônimas. A história se desenha a partir de uma intrincada rede de relações humanas, e essas mulheres desconhecidas não apenas sobreviveram em ambientes insalubres e relações opressivas, mas desafiaram dinâmicas perversas em meio a um sistema excludente e violento. Arriscando tudo e ao mesmo tempo, aparentemente, nada, elas moldaram seus destinos e influenciaram o curso das coisas, proporcionando a base para a diversidade de perspectivas, proposições e fundamentos que hoje caracterizam os feminismos.

No entanto, ainda permanece o desafio em unir a proposta de dois importantes projetos emancipatórios formulados e pensados a partir de problemas não tão recentes. É essencial refletirmos o significado da data do Dia Internacional da Mulher à luz das interseções entre o marxismo e o feminismo, reconhecendo o papel crucial das mulheres, tanto figuras proeminentes quanto anônimas, na busca por libertação e igualdade de gênero. Exige repensarmos cada movimento, incluindo suas conquistas e derrotas, para elaborarmos respostas à altura de nossos problemas. A relação entre o marxismo e o feminismo nos parece um começo importante.

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