Esquecer a filosofia

Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho

UFBA, CNPq

24/04/2023 • Coluna ANPOF

“A verdadeira descoberta é que aquela que me torna capaz de deixar de filosofar quando eu quiser.”

L. Wittgenstein, Big Typescript, § 92, p. 316e.

1§. Em algum momento de 2014 fui convidado por Angélia Teixeira para fazer uma palestra no Campo Psicanalítico de Salvador. Eu deveria apresentar o meu livro, lançado um ano antes, Sem Ideias Claras e Distintas e discutir com o público formado por psicanalistas.

Nos dias que antecederam a palestra, como de meu costume, tomei algumas notas e fiz esboços sobre a estrutura da apresentação – como reza meu método de trabalho fiosófico. Como o tema deveria ser um pouco árido (eu trabalhava com assuntos de filosofia analítica) e lidaria com referências e conceitos com os quais o público talvez não estivesse familiarizado, achei por bem preparar alguns slides de Power Point. Afinal, mesmo que psicanalistas usem, como filósofos, palavras como “acreditar”, “interpretar”, “verdade”, quase sempre eles as tomam em sentidos distintos. Com certeza, uma apresentação com esse recurso seria adequada.

Estava tudo sobre controle e eu não estava nem um pouco ansioso. A apresentação seria à noite e naquele dia eu não teria outros compromissos, por isso, deixei a tarefa de fazer os slides para o finalzinho da manhã, depois de ter saboreado a doçura da procrastinação.

Tomei à mão meu bloco de papel amarelo que as notas e esboços que escrevi nas semanas anteriores e peguei na estante um dos exemplares do Sem Ideias Claras e Distintas. O peso do livro me incomodou: ele era menor e mais leve do que eu me lembrava; as cores na capa, entre o pastel e diferentes tons de amarelo ao vermelho não tinha a força e beleza que estavam gravados na minha mente. Sentei-me em frente do computador. Pensei, a partir das notas, em procurar passagens no livro para colar nos slides e usar como ilustrações do raciocínio.

Eu não encontrava, folheando de um lado a outro, as passagens que tivessem esse efeito. Resolvi ler a “Introdução” e, a cada linha eu era tomado, primeiro, por certo estranhamento e, depois, por uma onda quente que se espalhava pelo meu rosto. Não me parecia que era o livro certo. As notas que cuidadosamente escrevi ao longo de vários dias, o esboço de palestra que desenhei... não batiam com o que eu lia. Incrédulo, fecho o livro, olho novamente a capa. Nela há uma bela fotografia que me fora presenteada por uma amiga, Flávia Roza. Era, sim, aquele livro.

2§. O caso é que eu havia esquecido o conteúdo do livro, do livro que eu escrevi. Eu não lembrava nitidamente sobre o que eu escrevi. Tinha apenas uma remota ideia – não tão clara, só um pouco distinta de tudo aquilo. Mas, mais do que isso, o assunto me pareceu aborrecido, enfadonho, circular, sem qualquer importância. Em pouco mais de duas horas, lendo aos pulos, cheguei até o final do livro.  

A memória estava restaurada. Sim, foi aquele livro que eu escrevi e publiquei... e joguei fora, para longe da minha mente, como aquele que sobe por uma escada e a lança fora. O tema filosófico do “autoconhecimento” não exercia mais qualquer fascínio para mim. Eu nem mesmo entendia por que gastei nove anos para ler aquela imensidão de livros e artigos que figuravam nas referências bibliográficas.

No início isso me causou ansiedade. Depois, um enorme contentamento. Um agradabilíssimo alívio físico. Eu havia, de fato, abandonado a filosofia. Se não havia abandonado toda a filosofia, eu havia deixado de lado uma parte de tudo que afligiu minha alma por tantos anos (mas o que é “toda a filosofia”?). Esse esquecimento, essa perda, pareceu-me então, que era o resultado do meu trabalho. 

3§. Eu tinha isso em mente já há algum tempo. Lendo os textos de Sexto Empírico e do neopirronismo, procurei me aperfeiçoar na arte da filosofia como uma técnica de atenção às minhas afecções da alma – não de “cura”, de “atenção”. Mas não é possível iniciar uma pesquisa tendo como objetivo afirmar que não podemos chegar a ponto algum. Isso não é ceticismo. Isso soa a uma performance patética. Não podemos decidir ser céticos (procuro minhas chaves, mas sei que nunca as encontrarei; em pouco tempo suspenderei as buscas e ficarei satisfeito com isso). Podemos, é claro, aprender as virtudes que marcaram o caráter dos filósofos do passado que se tornaram, com o tempo, céticos (a atenção aos desacordos intelectuais, não ser precipitado, exercer o princípio de caridade, assumir uma postura falibilista, estar atento ao que se nos aparece....). Podemos escolher como conduzir nosso inquérito (assumir uma atitude racional extrema e não ficar satisfeito com dogmatismos), mas não podemos escolher ser céticos. Mesmo porque, o cético em geral escreve relatos sobre o que lhe ocorreu na época quando ele ainda era um filósofo, muito antes de ele ter abandonado a filosofia. O cético não se vê como filósofo ao se olhar no espelho, mas apenas quando mexe em fotografias amareladas.

O efeito que me ocorreu não foi de orgulho e vaidade, mas de alívio e tranquilidade... sobre minhas aflições em torno do problema filosófico do autoconhecimento.

4§. Naquele dia, em um longíncuo 2014, a palestra, ao final, foi muito agradável. Deixei de lado as notas, não fiz os slides e falei alegremente para um público atento, inteligente e amigável. Sem que eu tenha preparado tiradas e piadas inteligentes, rimos vários momentos. E quando encerramos aquele encontro parecia que passamos um momento agradável de nossas vidas. 

 

DO MESMO AUTOR

Radar Filosófico - Um ponto de vista não-individualista sobre a reflexão

Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho

UFBA, CNPq

05/07/2023 • Coluna ANPOF