Filho Feio não tem Pai: Notas para uma História da Filosofia do Racismo

Fernando de Sá Moreira

Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense

15/09/2022 • Coluna ANPOF

No Brasil, durante muito tempo temos feito história da filosofia. E não sem certo orgulho. E há quem defenda que esta seria, na verdade, nossa tarefa e vocação: fazer uma excelente história da filosofia para, quem sabe, um dia, fazer filosofia “de verdade”. É certo que esse é um argumento que tem recebido muitas e boas críticas. E, de fato, embora não se possa dizer que o ponto de vista crítico – o qual compartilho – é a perspectiva hegemônica, ele parece ter ganhado muita visibilidade pública nos últimos tempos. De modo geral e com razão, recebe cada vez mais atenção a defesa da tese de que o fazer história da filosofia não deve, de forma alguma, ser visto como pré-condição ou mesmo como um inimigo do fazer filosofia. Portanto, sem deixar de produzir uma boa história da filosofia, devemos abraçar a tarefa de também produzir ativamente um pensamento filosófico próprio; e, é claro, reconhecer a filosofia já produzida em nossas terras.

Em todo caso, independentemente da perspectiva adotada, parece haver entre nós poucas pessoas dispostas a abdicar da tarefa de produzir excelentes historiadores da filosofia. O sentimento dessa responsabilidade é tamanho que, via de regra, entendemos que são os filósofos, mais do que os historiadores, aqueles que devem contar a história da filosofia. Mas, no fim das contas, talvez tenhamos que um dia nos perguntar se, como filósofos, temos sido bons historiadores da filosofia?

Sem pretender dar uma resposta completa e definitiva a essa questão, penso que não é muito arriscado dizer que, lamentavelmente, temos encontrado em muitos casos grande dificuldade para pôr à prova nossas habilidades de historiador, especialmente quando se trata de enfrentar as críticas vivas que nossos pensadores de apreço recebem. Dentre essas críticas se destaca a acusação de que não poucos filósofos na tradição ocidental defenderam abertamente posições racistas, colonialistas e mesmo escravistas.

Então, por exemplo, como um historiador da filosofia deveria lidar com o racismo explícito de Montesquieu? No importante capítulo V do livro XV de O Espírito das Leis, o célebre iluminista afirma, entre outras coisas, que “não nos podemos convencer que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, principalmente uma alma boa, num corpo todo preto”; e também que “uma prova de que os negros não têm senso comum é que dão maior valor a um colar de vidro do que ao ouro”.

Infelizmente, a experiência tem me ensinado que lidamos mal com argumentações como essa, quando saem da boca de nossos “clássicos”. Lidamos mal por vários motivos. Em primeiro lugar, porque muitas vezes optamos por fingir que tais colocações simplesmente não existem. Outra solução muito experimentada é defender que elas não seriam verdadeiramente importantes, ou que não afetariam em nada a grandiosidade do autor e de sua obra. Em outras palavras, agimos como se fosse possível suprimir aquilo que nos incomoda das obras filosóficas que estimamos, como se isso não trouxesse maiores consequências.

Há mesmo casos em que é possível encontrar inversões de interpretação, nas quais os trechos são lidos como se dissessem o exato oposto do que dizem. Sobre isso, chama atenção o que Renato Janine Ribeiro escreveu na Apresentação da importante edição de O Espírito das Leis publicada pela editora Martins Fontes. É curioso e estranho que ele, quando escreveu a apresentação, estivesse tão convencido da impossibilidade de Montesquieu ser tolerante ou mesmo defensor da escravidão negra, que leu as considerações do filósofo iluminista sobre o tema como se fossem uma fina ironia e mesmo uma severa condenação.

Todavia, se por um lado, não há dúvidas que Montesquieu não era favorável à escravidão generalizada e, sobretudo, de que era contrário à escravidão na Europa. Por outro lado, restam tampouco dúvidas de que ele era perfeitamente tolerante e defensor da razoabilidade da escravidão, especialmente da escravidão negra e em “países onde o calor debilita o corpo e enfraquece tanto a coragem, que os homens só são levados a um dever penoso pelo medo dos castigos: assim, ali a escravidão choca menos à razão” (O Espírito das Leis, livro XV, cap. VII).

Montesquieu é explícito em tolerar e mesmo legitimar a escravidão nas regiões quentes da terra, tão explícito quanto no menosprezo pela condição humana das pessoas negras. E, ainda assim, pôde figurar como seu próprio inverso em uma apresentação escrita em 1991, que foi repetidamente reimpressa e reeditada nas décadas seguintes. O que mais me estranha, no entanto, não é que um tal erro tenha sido cometido por Renato Janine Ribeiro, a quem tenho grande respeito. O que realmente mais me causa estranheza é o erro coletivo que dali se segue: o fato de que, aparentemente, não ocorreu a ninguém ou quase ninguém na comunidade filosófica brasileira apontar essa flagrante contradição em uma edição tão importante de uma obra tão importante.

É quase como se não morássemos em um país majoritariamente tropical, com uma história secular de escravidão negra. O que tudo isso não diz sobre nós enquanto comunidade filosófica brasileira?!

Mas, voltando ao problema do que fazer com os raciocínios racistas, colonialistas e escravistas de nossos clássicos, há ainda uma outra tentativa de solução da qual eu gostaria de tratar. Acredito que ela seja das mais problemáticas. Pode-se dizer mesmo que ela chega frequentemente à perversidade. Trata-se da evocação do argumento do “filho do tempo”. Em outras palavras, trata-se de dissolver o problema criado pelas posições filosóficas mais incômodas dos pensadores com a ideia de que, afinal, “eles eram também filhos de seu tempo”.

Pode-se dizer que quase todas as vezes que esse argumento surge para explicar algo, ele cumpre paradoxalmente a função de não explicar nada. Pelo contrário, seu objetivo é justamente interromper qualquer movimento de investigação sobre a questão. É claro que não estou afirmando aqui que o tempo não teria influência sobre o pensamento filosófico de alguém, como se fosse possível filosofar enquanto uma cabeça flutuante mirando o infinito, alheio a tudo e todos. Contudo, é importante notar como o argumento do “filho do tempo”, via de regra, não aparece acompanhado de qualquer esforço de elucidação sobre como exatamente o tempo pariu, por exemplo, na pena de Montesquieu coisas tais como: “aqueles de que se trata [os escravos negros] são pretos dos pés à cabeça; e têm o nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles” (O Espírito das Leis, livro XV, cap. V).

No fim, ao tomar rapidamente tais colocações meramente como uma herança passiva do tempo, sem qualquer explicação ou trabalho mais aprofundado, parece apenas que estamos a confessar discretamente: “não sei como esse filósofo que admiro, de quem eu mesmo me penso em alguma medida como herdeiro, pôde chegar a dizer tais coisas; é grave, mas certamente ele não deve ser o verdadeiro responsável por isso, deve haver alguém ou alguma coisa que o fez fazer isso, sem que ele pudesse ter agido de outra forma”. E, assim, nós, historiadores da filosofia, nos mostramos plenamente dispostos a não compreender as tensões e antagonismos dos filósofos e de seus tempos. E, é certo que esse tipo de disposição tem também suas consequências em nosso próprio tempo.

Curiosamente, em termos de estrutura argumentativa e psíquica, essa solução se parece muito com um ponto da caracterização montesquiana da condição do branco diante do negro. No mesmo capítulo V do livro XV, o célebre filósofo diz que “é impossível que suponhamos que estas pessoas [as pessoas negras] sejam homens; porque, se supuséssemos que eles fossem homens, começaríamos a crer que nós mesmos não somos cristãos”. Nós, por nossa vez, dizemos: “é impossível que suponhamos que, a respeito dessas posições racistas, o filósofo não seja um filho, mas um pai de seu tempo; porque, se supuséssemos que ele é o pai legítimo do produto de sua própria pena, começaríamos a crer que algo disso pode também nos afetar, nós que nos sentimos como seus filhos e herdeiros”.

No fundo, o argumento da herança do tempo é normalmente uma declaração pública de bastardia. Filho feio não tem pai. Com tal declaração não fazemos muito mais do que abraçar um desejo de não entender nossos filósofos, sobretudo onde a tinta que lançaram sobre suas obras não nos dá material para lustrar uma vez mais as belas esculturas de bronze, que tentamos erigir em honra deles na memória pública. E, a consequência disso é que, em tais momentos, não apenas arriscamo-nos a abdicar coletivamente de fazer filosofia “de verdade”, mas também de nos mostrar hábeis e vocacionados a fazer uma boa e séria história da filosofia. Mas acontece que às vezes há sangue na herança que recebemos daqueles que vieram antes de nós.


Referência

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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