Filosofia desenraizada: um vício de origem - Respostas às objeções de Miranda Barros        

Claudinei Luis Chitolina

Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor de Filosofia da Unespar - PR.

02/08/2022 • Coluna ANPOF

Embora tivesse pretendido recolocar em questão o problema da (in)existência de filosofia no Brasil, não poderia supor que o pequeno ensaio pudesse provocar o pensamento e desafiar convicções de leitores, como, p. ex., de  Marcelo Vinicius Miranda Barros, a quem pretendo, a título de réplica, analisar e responder às suas supostas objeções. 

Ora, como é próprio de um diminuto ensaio, não pretendi expor nem sustentar nenhuma tese, dado os seus limites intrínsecos. Ao contrário, pretendi tão somente suscitar dúvidas e questionamentos acerca de um problema que é, por vezes, ignorado ou subestimando entre nós. Suponho que a filosofia começa pela dúvida, pelo assombro ou pela perplexidade diante da realidade – pela crítica e pela autocrítica. A certeza, se existir, talvez seja uma conquista tardia ou madura do pensamento. 

Ao que parece, em sua primeira objeção,  Miranda Barros repreende-me pelo fato de questionar a existência de uma filosofia no Brasil. Para tanto, cita nomes e obras de autores que, em seu entender, deveriam figurar entre os filósofos brasileiros. A meu ver, a tentativa de identificação, assim como o reconhecimento de um filósofo brasileiro pela comunidade filosófica não se configura como uma tarefa simples ou livre de controvérsia. O título de filósofo não é fruto de uma autodeclaração ou de uma outorga.

Historicamente, o reconhecimento do mérito e da originalidade de uma filosofia era tarefa de filósofos, de interlocutores e da tradição de leitores e intérpretes. Portanto, se existem filósofos no Brasil, resulta imprescindível, primeiramente, examinar e discutir o valor (a originalidade), o alcance e os limites de suas filosofias. Possivelmente, inúmeras objeções serão lançadas contra quem ousar exibir no Brasil o título de filósofo apesar de seu  merecimento e de seu reconhecimento. Far-se-á necessário ainda aquilatar o grau de originalidade do pensamento de um pretenso filósofo, dado que até entre os filósofos consagrados pela tradição encontramos aqueles que são considerados de grande, média e de pequena estatura intelectual.

Ao que parece, Miranda Barros não percebeu (ou foi incapaz de perceber) que a questão de fundo (fundamental) que percorre meu ensaio diz respeito às questões: o que é filosofia? Existe filosofia no Brasil? O que é ser filósofo? Como alguém se torna filósofo? O que significa fazer filosofia no (ou desde o) Brasil? Não se trata, portanto, de afirmar ou de negar simpliciter a existência de filosofia no Brasil. Deste modo, se minhas indagações e considerações parecem desembocar na tese de que não existem filósofos no Brasil (tout court), tal interpretação não é, contudo, derivada ou extraída dos limites daquele pequeno ensaio. O que se pode depreender é que sucumbimos ao academicismo; reproduzimos uma filosofia (um tipo de filosofia vazada nos moldes acadêmicos) e que se revela, muitas vezes, pouco relevante para o debate público e o destino de nossa sociedade, visto que substituímos o exercício ou o cultivo da razão pelo culto ao texto clássico (ou ao autor clássico) – que transformado em um fim em si mesmo se revela estéril. Porém, esta tese, ao que parece, é largamente compartilhada por pesquisadores e estudiosos da filosofia no Brasil. A título ilustrativo, cabe lembrar aqui os nomes e os trabalhos de Sílvio Romero, Tobias Barreto, Cruz Costa, Leonel Franca, Gerd Bornheim, Oswaldo Porchat, Paulo Arantes, Roberto Gomes, Ivan Domingues, dentre outros, que corroboram a tese acima. Recentemente, tal tese passou a ser questionada, sobretudo, por Paulo Margutti, Julio Cabrera, dentre outros, mas disso não se segue que foi refutada. 

Entretanto, se o conceito de filosofia do qual compartilhamos for o mais lato ou amplo possível (enquanto atividade intelectual), então resulta evidente que existe filosofia no Brasil. Porém, se concebemos a filosofia stricto sensu (dotada de originalidade, rigor conceitual e demonstrativo), então somos obrigados a questionar as condições e os critérios de nosso fazer filosófico. 

Contudo, a meu juízo, ser original significa compreender as nossas origens históricas e culturais (embora reconheça que a originalidade em filosofia implique também um retorno às origens da própria filosofia). E por voltar às nossas origens entendo o confronto crítico da filosofia com nossa realidade (sem ignorar seu passado e os desafios do tempo presente), visto que o filósofo é interpelado e provocado pela realidade. Ou seja, nenhuma filosofia é gestada in abstracto (no céu das ideias). Por isso, escrever sobre o Brasil (como mal interpreta Miranda Barros acerca do que disse) não é condição suficiente para que surja uma filosofia no Brasil. Se assim fosse, teríamos entre nós muitos exemplos de filósofos. Para filosofar no Brasil é preciso transformar a singularidade brasileira num problema filosófico. Ou seja, o enraizamento histórico do pensamento é condição necessária para o nascimento da filosofia no Brasil. 

Em sua segunda objeção, Miranda Barros afirma que assumo passivamente ideias de filósofos da tradição para sustentar a ideia de que ainda não filosofamos ou não produzimos uma filosofia entre nós. Ora, o conhecimento da história da filosofia não é, a meu ver, uma condição suficiente nem constitui necessariamente um impedimento para filosofar. Evocar o pensamento de filósofos para exemplificar uma ideia não significa tornar-se prosélito, dado que do ponto de vista lógico, o direito de discordar não é maior que o direito de concordar. Ser crítico não significa começar do zero absoluto (dado que nosso pensamento está sempre em relação com outro pensamento). Não significa ignorar ou negar a tradição filosófica e a contribuição dos filósofos, mas lançar mão de critérios para refutar mediante argumentos o que se revela inconsistente, inconsequente ou insustentável. A relação entre filosofia e história da filosofia é de assimilação crítica. Assim, se quisermos filosofar não significa que devemos descartar a tradição filosófica, mas que somente quando conduzirmos o pensamento já pensado até seus limites poderemos vislumbrar ou inventar novas formas ou novas possibilidades de pensamento. Por isso, podemos (ou devemos?) imitar não a palavra (o que disseram os grandes filósofos), mas seu gesto intelectual contido na palavra, isto é, sua atitude crítico-reflexiva e inventiva, porque a filosofia não é a arte da ventriloquia nem fruto de um pensamento oracular. Daí subentender que o pequeno ensaio já publicado não se deixa compreender como uma manifestação acrítica do pensamento ou uma autocontradição performativa. Ao contrário, o questionamento e a interlocução com a tradição perpassam o texto.  

Sócrates, Platão e Aristóteles (apenas para citar exemplos de filósofos consagrados pela tradição) não criaram suas filosofias ex nihilo (à maneira do Deus cristão que cria o mundo a partir do nada), mas no confronto crítico e no combate às formas dominantes de pensamento (filosóficas ou não) – formulando problemas que desafiavam o pensamento grego. A imagem do filósofo confinado numa torre de marfim, distante e alheio ao mundo – excogitando seus pensamentos é uma caricatura. O filósofo não pensa o mundo como se ele não existisse. Ao contrário, necessita trazer o pensamento do céu para a terra, o que significa dar ao pensamento um conteúdo concreto – uma aderência histórica. Sem precisar evocar o texto de Marx, vale dizer que os filósofos não nascem como cogumelos depois de uma chuva. A filosofia não brota da cabeça do filósofo como Minerva da cabeça de Júpiter. Ao contrário, a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Por isso, o filósofo é o pensador que transforma uma questão particular em uma questão universal. É na dialética entre o particular (a realidade vivida) e o universal (a realidade pensada) que se dá a gestação do pensamento filosófico, tal como explicito, p. ex., em meu livro Para ler e escrever textos filosóficos. Editora Ideias & Letras, 2017.

Por isso, é falsa a constatação de Miranda Barros de que Descartes, p. ex., não tenha tratado da França em sua filosofia ou Leibniz não tenha tratado da Alemanha. Descartes não trata dos problemas da França na condição de historiador, mas na condição de filósofo, ao examinar e discutir, p. ex., a natureza do sujeito pensante e os fundamentos do conhecimento (da ciência) que eram à época do filósofo questões candentes. A produção intelectual (a atividade filosófica) não está desconectada da produção material da existência. Ignorar este fato não significa apenas desconhecer Marx, mas supor que a filosofia é alheia à realidade concreta.  A obra ou o texto de Descartes (como demonstram inúmeros intérpretes) nos remete para seu contexto, de modo que não se pode conceber Descartes sem a França do séc. XVII – momento histórico em que a classe burguesa está em ascensão social. Daí dizer que os problemas filosóficos formulados por Descartes guardam relação de dependência com as condições históricas e sociais de seu tempo.  Toda filosofia surge na história, ou seja, um problema filosófico não é fruto de um exercício abstrato de pensamento – de um devaneio intelectual ou de uma elucubração descolada da realidade. Por isso, a ideia de uma philosophia sub specie aeternitatis (fora do tempo e do espaço) como parece conceber Miranda Ramos não encontra sustentação histórica nem teórica. Ao contrário, toda filosofia está situada no tempo e no espaço. Ou como quer Hegel, a filosofia é filha de seu tempo.

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