Filosofia e Democratização do Conhecimento

Aldo Dinucci

Professor de Filosofia da UFS

23/06/2022 • Coluna ANPOF

Longe se vai sonhando demais

(Caçador de Mim, composição de Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá) 

 

Há alguns dias, meu pneu furou, e fui a uma oficina para consertá-lo. Em lá chegando, havia três ou quatro homens, esfarrapados e besuntados de graxa, ouvindo música. Para minha surpresa, não estavam ouvindo qualquer música: emanava, de um antigo rádio a pilha, Caçador de mim, na voz divina de Milton Nascimento. Um dos homens tinha os pés inchados de gota. Todos eles ouviam com atenção a música, enlevados. Eu também ouvia enlevado, pois a música faz parte do famoso álbum Caçador de Mim, de Milton, que eu ouvia quando criança e do qual pude testemunhar o lançamento pelos meios de comunicação.

Pensei, então, comigo mesmo acerca de minha profissão de professor. Estudo coisas um pouco difíceis, como grego, latim e filosofia da Antiguidade, mas sempre tomei a iniciativa quanto a fazer edições de divulgação do que traduzo e estudo, disponibilizando-as gratuitamente ao grande público. Sempre vi isso como parte de minha profissão como professor de universidade federal e pública [1]. 

Aliás, graças a essa iniciativa, conheci algumas pessoas fantásticas, de diversas classes sociais, com as quais me comunico constantemente. Essas pessoas acabaram por se tornarem minha amigas com o tempo, o que foi um inesperado prêmio relativo às minhas iniciativas de divulgação.

Então, diversas vezes penso em colegas que me criticavam, qualificando-me de elitista, dizendo que o povo não se interessa por essas coisas que eu estudo e que devemos deixar a população em seu ambiente cultural sem interferências. 

Entretanto, a visão da oficina me mostra que estão errados. A filosofia e as manifestações artísticas, tanto populares quanto eruditas, brasileiras ou de outras países, de reconhecida qualidade, por oposição aos produtos da indústria cultural [2], interessam sim às pessoas em geral, desde que apresentadas de modo adequado, sem o palavreado rocambolesco de certos eruditos que se supõem acima da massa dos mortais.

Isso sim considero verdadeiramente elitismo: supor que o que um erudito conhece é bom demais ou está acima da capacidade de compreensão das pessoas em geral. Como bem o demonstra o Maestro João Carlos Martins, que há décadas se dedica à divulgação da música clássica junto à população, quando essas obras são apresentadas ao povo em geral, muitas pessoas reconhecem sua qualidade e sua beleza. Dessa divulgação, aliás, o Maestro fez uma missão de vida: “Democratizar a música clássica é a minha filosofia”, disse ele recentemente [3].

Sigo humildemente esta filosofia do grande Maestro João Carlos Martins. Não que me compare a ele ou à sua obra de divulgação, o que seria absurdo e ridículo, mas que tento, dentro de minhas possibilidades, como um mero professor que trabalha em instituição pública periférica, no nordeste do Brasil, divulgar para o grande público aquilo que me vem às mãos e em que descubro grande beleza, como o pensamento de Epicteto, por exemplo. Acredito que isso que eu faça seja como um pequeno tijolo assentado em uma das paredes do Grande Palácio de Nossa Cultura Humana. Como bem notou o Maestro, não se trata de elitismo,  mas de democratizar o conhecimento, colocando-o  ao alcance do grande público.

Fico feliz que vejo cada vez mais professores e professoras realizando tal tarefa de divulgação, e acredito que essa atividade seja parte integrante de nosso ofício de magistério. Oxalá tais iniciativas de democratização do conhecimento proliferem cada vez mais em nosso país.


[1] Para mais informações, ver meu blog: aldodinucci.blogspot.com 

[2] Que se pode definir como “ramo de negócios… que se apropriou dos meios tecnológicos surgidos na virada do século XIX para o XX com objetivos não apenas de lucrar com a produção e a venda de mercadorias culturais, mas também de direcionar… o comportamento das massas…” (Rodrigo Duarte, Indústria cultural e meios de comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 28-9).  

[3] https://www.hondaservicosfinanceiros.com.br/blog/de-carona-com/maestro-joao-carlos-martins-democratizar-musica-classica-e-minha-filosofia

DO MESMO AUTOR

Os três tópicos da filosofia de Epicteto

Aldo Dinucci

Professor de Filosofia da UFS

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