Filosofia enraizada, será?

Carlo Zarallo Valdés

Professor de Filosofia; Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

07/07/2022 • Coluna ANPOF

Pensamento, sabedoria, não pode ser tocado, não pode ser visto; mas pesa. Pesa e repousa sobre o solo estendido da terra. Do mesmo jeito que a vida nasce, e a morte volta para ela. Pesa tanto que cria raízes, se conecta e se torna múltiplo. Se move, transforma; a sabedoria pesa e nos exorta. Talvez seja melhor não vê-la, lá diante dos olhos. Como palavras, essas palavras em peles de papel, são apenas produtos de uma cultura que nos forçou a não ver o mundo como ele é, não senti-lo em sua verdade integral, porque o pensamento popular e indígena – está enraizado no chão, ele "pesa" seminalmente (e não em meros objetos), é a maneira como somos no mundo, como estamos nele (isto é: o mundo não ocorre sem nós e nós sem o mundo, o que é este mundo é nós sendo sementes nele e por ele, "Realmente um feiticeiro indígena sabe sobre essas coisas muito mais do que nós. Nós só sabemos como ser alfabetizados", (KUSCH, 2007, p. 111) [1] os indígenas e os camponeses sabem muito mais sobre o mundo inteiro, ou seja, "sobre a totalidade em que [tudo] está sendo o que é" (KUSCH, 2007a p.116-134). Kusch ressalta que seu conceito de filosofia tem a ver com pensar apenas no que se relaciona com a tristeza; "Não é nada mais do que uma tristeza que acontece conosco. Filosofar, então, significa investigar pontos de maior densidade na série de problemas que nos afetam" (KUSCH, 2007, p. 137), mas isso só é alcançado na fusão de sujeito e mundo porque a cultura, em segundo plano, nada mais é do que uma estratégia para viver. Como encontrar o peso de existir na América Latina? Certamente se aproximando da totalidade do que está sendo, "e para fazer isso é necessário incluir talvez o terceiro que Aristóteles tinha excluído, aceitar contradições" (KUSCH, 2007, p. 147) e superar o preconceito de Platão que implanta radicalmente a diferença entre doxa e noísis, porque a vida é doxa , opinião, e se esse sentido original de existência não for recuperado, continuaremos a viver em aparências de racionalidade estrangeira inteligente que nos faz perder o fundo (nosso fundamento); é por isso que é preciso pensar outra ordem de existência do que a meramente racional, ou seja, "a mesma que Heidegger usa quando usa a palavra meditação e a qualifica como hetzhaft, ou seja, do coração" (KUSCH, 2007, p. 155), além dos limites impostos por um conhecimento objetivo, onde o simbolismo com o qual a fundação que dá sentido a existir como tal, onde a alfabetização, a intelectualização e a cientização da realidade são supérfluas, e onde é necessário mostrar o sagrado...  "Além disso, podemos dizer que a realidade é um evento do sagrado" (KUSCH, 2007, p. 196), e assim a questão do pré-ontico torna-se válida onde o mítico, o épico e o divino são assumidas "como um Ereignis, ou evento de apropriação [...] e enquanto isso ocorrer, a possibilidade de um filosofar latino-americano só aparecerá" (KUSCH, 2007, p. 202-203). Porque no fundo de tudo o coração acontece, não só em nossa mente, mas nas coisas, e, portanto, a verdade é tão ou mais emocional do que objetiva e por isso, diz Kusch, na América Latina é antes da diferença ontológica (entre ser e ente), a diferença entre acontecer e não acontecer. 

Seguramente esta forma de sabedoria não será aprovada na academia ou talvez em parte. Mas é lógico deixar claro que este continente deve ser mais conhecido, como é, nas profundezas de suas culturas: naquele inconsciente social, nessas comunidades, não da elite urbana, mas da província ou dos bairros populares das cidades. Mastigar a coca diariamente como alimento fundamental ou a busca da cura do corpo e do espírito com yagé, ou saber que a pedra tem algo a nos dizer, que as penas do arará são sagradas; não são coisas de séculos passados: enquanto a academia está engajada em argumentos racionais e investigações objetivas, os povos e comunidades, distantes, não tão distantes, e dentro da cidade, vivem o ritmo da ira divina de tal forma que está fedendo para a elite urbana com diplomas universitários. Quando xs filósofxs se aproximam para conversar com a pessoa simples e humilde, com o camponês ou com os povos indígenas, a filosofia se abre para outros horizontes de compreensão da realidade, deixando sua teimosia racional e objetivista.

A filosofia (como caminho de sabedoria) terá que começar cada vez mais a se distanciar do textualismo/cognitivismo para se abrir ao diálogo com o território, entendido em seu sentido amplo como a conjunção entre terra, cultura e espiritualidade. 

Descolonizar a filosofia é também deslocá-la de suas zonas de conforto epistêmicas e metodológicas.


Notas

[1] As traduções de todas as citações são nossas. 


Referências 

KUSCH, R. Geocultura del hombre americano. In: Obras completas. Tomo III. Rosario, Argentina: Ross. 2007.