Goethe, a aposta fáustica e o diabo da modernidade

Yasmin T. Jucksch

Dnda. USP

09/12/2021 • Coluna ANPOF

“Maldita paciência”, diz Fausto no verso 1606 da obra homônima de Goethe. Nesse amaldiçoado momento, o cientista experimenta o estado de espírito ideal para medrar o pacto-aposta demoníaco, com sua ânsia e insaciabilidade características e sob o potente torpor niilista induzido pelos espíritos comandados por Mefistófeles. Na leitura do poema nos encontramos, nesse justo momento – por mais que a novidade goethiana da aposta redimensione a tradição fáustica antiga que emerge do século XVI –, diante da mesma frenética obsessão por conhecimento e domínio incrustada no velho acordo com o diabo.

Não surpreende que nessa imagem especular do frenesi inadiável de Fausto possamos ver a nós mesmos. Assim como nos reconhecemos em Odisseu – imerso sem escapatória em um mundo dominado por desejos e pavores em que é preciso a cada momento lembrar, apesar dos encantamentos de Circe e das sereias, do nóstos ou retorno à jornada –, a aposta fáustica espelha a nossa aversão moderna pelo aqui e agora, comprimida no desejo pelo mais “cruciante gozo” (v. 1766). No contexto da atmosfera das agitações da Revolução Francesa e do industrialismo do início do século XIX, Goethe inflamou sua personagem de alto quilate literário com o afã insubordinável pela posse contínua de novas informações, imagens e entretenimento. E nós – conduzidos pelas iscas das mercadorias e dos estímulos efêmeros, no contínuo encalço de novos saberes e torpores – podemos ver nossa própria imagem refletida nesse espelho literário mágico do gênio goethiano: assim como nas evocações literárias do Fausto, também no rebojo atual das imagens velozes que alimentam o consumismo embriagado de conhecimento e entretenimento buscamos uma felicidade que nunca está presente, mas que escapa incessantemente para os tempos futuros na perseguição das mais diversas gratificações.

Esse (tão nosso) culto sacralizado à velocidade e ao devir, consumado no ciclo infinito de saciedade e deficiência do que é efêmero, oblitera cabalmente a possibilidade do repouso no instante presente, silencioso e ordenado, isto é, cósmico; um instante desejável e vasto que não é uma divisão infinitesimal do tempo (como bem sublinhou Hadot), mas uma atenção que escapa à restrição do ídios e que se volta livre àquilo que só é contemplável mediante o esvaziamento do desejo fóbico do preenchimento contínuo – o mesmo desejo que, para usar a linguagem do entrecho fáustico, mantém o humano à mercê do diabo. E o que poderia ser tão repulsivo no voltar-se ao silêncio e ao presente absoluto, no mistério e na vastidão, senão provavelmente o medo do desconhecido evocado pela disrupção sacrílega do eu, a ideia de extinção da identidade que nos leva à angústia, a dissolução dolorosa da crença na reificação dos fluxos da natureza e da mente?

Essa incapacidade de deter-se no instante presente silencioso, esse impasse, essa desordem onipresente – que está em Fausto, que está em nós – só é sanada no poema quando o personagem se posta diante de Helena, o kairós supremo que a vontade de domínio não alcança: aí então a exortação de Mefisto para que Fausto “no avanço, encontre êxtase” (v. 1.759) é substituída pela percepção alvissareira de que “só no presente está a nossa felicidade” (v. 9383-9384). O que passa a ser venturoso não é mais a ânsia constante por novas gratificações e a mirada do que está no próximo momento, mas a vastidão catártica do presente e da mudez dos impulsos desiderativos, inacessíveis ao progresso secular e ao deslumbre da agitação das malhas mercadológicas. Como nas profundezas da contemplação do Eterno-feminino de Goethe, esse repouso face ao Belo estabelece uma distância reverente do véu de Isis que é, paradoxalmente, uma profunda intimidade com a Natureza, um habitar no tópos daquilo que é inacessível ao perfazer-se contínuo de desejos e impulsos.

Na contramão, a devassa obstinada do colonizador arranca e viola o véu, no afã de uma proximidade que é, sempre, mais distância. Antropocêntrico, etnocêntrico e egocêntrico, compulsivo por conhecimento e entretenimento, ele subjuga as demais espécies e a sua própria, desarticula a natureza como categoria plural e a reduz a um conglomerado de artigos precificados e destinados à posse. Povos inteiros indiferentes ao culto do capital são submetidos ao jugo da sua monetização e da sua esquizofrênica dicotomia entre utilidade e inutilidade, evolução e atraso, relegados convenientemente ao patamar do que é rudimentar e justificadamente colonizável. E isso muito embora o Ocidente, mestre das máquinas, fique muito para atrás – como já disse Lévi-Strauss – em relação ao conhecimento sofisticado do corpo humano dos antigos chineses ou dos Maori, ou ao refinamento na interação com a natureza e às precisas habilidades espirituais de povos tradicionais do continente americano, africano e asiático – como por exemplo as meditações metafísicas sofisticadas de que os hindus já dispunham muito antes de os gregos darem à luz a sua fulgurante filosofia.

Vejamos o que ocorre aqui mesmo no maltratado Brasil: defendemos os direitos humanos que herdamos gloriosamente do pensamento europeu do século XVIII, mas não desistimos de explorar e matar por vias indiretas, alimentando a expansão do pasto, a exploração de madeira e o consumo de metais que elimina a floresta, sem a qual não sobrevivem esses humanos e nem seus humanos direitos. Assistimos filósofos brasileiros atuais que, ao se referirem aos povos  indígenas e à sua luta pela sobrevivência e por sua ancestralidade, afirmam que devem ser protegidos porque precisamos todos, desesperadamente, de florestas – o que já diziam aqueles que nos anos 70 foram ridicularizados como conspiracionistas –, mas numa toada utilitarista que ainda se mantém, note-se, nos mesmos moldes utilitaristas da Colônia de Fausto: não se fala em aprender com os indígenas, embora seja disso de que mais desesperadamente precisemos.

Afastamos de nós essas heranças do outro-estranho que não estão na linhagem cultural europeia como inimigas perigosas dos pilares racionalistas, científicos e judaico-cristãos que nos sustentam e que continuamos a conceber como o ápice da evolução humana. Foi assim que o etnocentrismo irrefletido e caolho do ocidente dos séculos XVIII e XIX engessou as concepções, o corpo e a moral como instâncias a-históricas – embora com Foucault, no rastro de Nietzsche, possamos ver claramente que o que deve ser buscado nessas instâncias não é uma chispa metafísica essencial desejada pela meta-história, mas a inscrição humana e mesquinha do que elas se tornaram em algum momento concreto do tempo. Nesse caso, conceitos, ideias, valores e práticas sociais não brotam do terreno da idealidade racional, mas emergem de complexas relações de poder.

No redemoinho dessas relações – no contexto esquemático da maquinaria do capital – encontramos crenças e angústias que estão na base do desejo mórbido de cobrir todo o globo com a voracidade dos mercados. Esse afã, como na imagem do mecanismo colonizador de Fausto, deve engendrar inéditos desejos por meio de narrativas seriadas e mercadorias que saciam para logo esvaziar, sob pena de todo o arranjo do mercado cair na imobilidade e se dissolver na estagnação.

Se nosso terreno ideológico é todo fundado nessa matriz, não temos apenas como consequência o abafamento da nossa humanidade pela compulsão enraizada em nós por mercadorias e produtos culturais da moda, mas também, proporcionalmente, a revelação da superficialidade do nosso autoconhecimento, manifesta na obsessão fáustica pelo acúmulo de conhecimento: desejamos saber mais e mais, como herdeiros do iluminismo e partidários de Thoth – o deus Hermes da interpretatio graeca que tentou em vão convencer o rei Tamuz, como vemos narrado no Fedro de Platão, de que a sabedoria e o tino se encontram nos livros. Somos os modernos, do latim tardio modernus, de módus, calcado em hodiernus, de hodié, hoje: o moderno segue os fluxos da crista da moda de hoje, mas, paradoxalmente, como diz Emerson em seus Ensaios, “adia ou recorda; não vive no presente, mas, com olhos voltados para trás, lamenta o passado ou, indiferente às riquezas que o rodeiam, bota-se na ponta dos pés para prever o futuro”. Levamos às últimas consequências os desejos que nos impedem a fixação no instante, projetando no futuro o que se toma de apoio no passado a partir de uma falta presente, como afirma Sócrates sobre o desejo no seu belo diálogo com Protarco. É bem possível que o Sócrates-Platão que advoga contra os falsos prazeres no Filebo concordasse com Emerson, quando o poeta, ao completar a afirmação citada acima, afirma que o homem “não poderá ser feliz ou forte até que também viva com a natureza no presente, acima do tempo”.

Mas se, como diz Milton, “The mind is its own place, and in itself/Can make a heaven of hell, a hell of heaven”, talvez o conhecimento das limitações das matrizes mentais dos nossos desejos modernos possa iluminar a possibilidade do repouso no átimo atemporal, mediante a percepção da sombra do que se encontra fora dessas fronteiras restritivas:  para citar o chorus misticus goethiano na tradução transcriativa e luciférica de Haroldo de Campos, talvez só no instante da apreensão de que “o perecível é apenas símile” é que “o imperfectível perfaz-se enfim”:

O perecível

É apenas símile.

O imperfectível

Perfaz-se enfim.

O não-dizível

Culmina aqui.

O Eterno-Feminino

Acena, céu-acima.

 

*Referências:*

BINSWANGER, Hans Christoph. Dinheiro e Magia. Uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe (tradução de Maria Luiza Borges e Marcus Mazzari). Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.

EMERSON, Ralph Waldo. Ensaios. 2ª edição. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1994.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e introdução de Roberto Machado. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto I: Uma tragédia (Primeira parte). Apresentação, comentários e notas de Marcus Mazzari. Trad. Jenny Klabin Segall. Edição bilíngue. São Paulo: Editora 34, 2004.

_______. Fausto II: Segunda parte da tragédia. Apresentação, comentários e notas de Marcus Mazzari. Trad. Jenny Klabin Segall. Edição bilíngue. São Paulo: Editora 34, 2007.

HACKFORTH, Reginald. Plato`s Phaedrus. Cambridge: Cambridge University Press, 1952.

HADOT, Pierre. N’oublie pas de vivre. Goethe et la tradition des exercices spirituels. Paris, Albin Michel, Bibliothèque des idées, 2008.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013.

JAEGER, M. A aposta de Fausto e o processo da Modernidade: figurações da sociedade e da metrópole contemporâneas na tragédia de Goethe. Trad. de Marcus Vinicius Mazzari. Estudos Avançados, 21(59), p. 309-322, 2007.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

MILTON, John. (1996). Paradise Lost. London: Penguin Books, 1996.