György Lukács e Martin Heidegger: entre a reificação e a facticidade

Wesley Sousa

Doutorando em Filosofia na UFMG

Isadora Franco

Doutoranda em Filosofia na UFABC

05/06/2025 • Coluna ANPOF

No momento atual de crise e colapso que estamos vivendo, talvez seja proveitoso voltarmos a certos autores da história da filosofia que formaram seus pensamentos em profunda crise e transformação na Europa. Esse é o caso de dois intelectuais diferentes, mas que partilharam um solo comum: György Lukács e Martin Heidegger. Por mais estranho que pareça, apesar das posturas antagônicas que tomaram no século XX, tratá-los em comum significa aproximar duas pessoas que, a despeito das diferenças que eles possuem – diversas vezes comentadas em bibliografias especializadas –, ressaltamos os possíveis pontos de encontro: principalmente no que concerne à reação da crise de ideias daquela época na Alemanha e na Europa oriental, através de uma crítica às estruturas do próprio pensamento filosófico.

O primeiro escrito abertamente fenomenológico de Heidegger é a preleção de 1919: A ideia de filosofia e o problema da visão de mundo, no chamado Kriegsnotsemester, curso do semestre emergencial por motivos de guerra. A preleção foi dirigida a alunos que lutaram como soldados pela Alemanha na Primeira Grande Guerra Mundial e ocorreu um ano após o final do conflito. Neste contexto histórico, havia uma necessidade de se recuperar o papel das ciências e do conhecimento na sociedade. Não se trata somente de uma discussão metodológica e científica ou uma defesa da fenomenologia como ciência, mas é uma reação sintomática a um conjunto de valores e ideias que não conseguiam explicar uma sociedade em colapso humanitário, moral e material. O momento do pós-guerra era uma época de reconstrução e de renovação social. Em suma, era fundamental promover um diagnóstico que explicasse tamanho descompasso entre as ideias promovidas pelas ciências e pelos filósofos e a profunda face da realidade que acometeu milhares de pessoas no continente Europeu.

Na biografia Um mestre da Alemanha: Heidegger e o seu tempo, Rüdiger Safranski se esforça em relacionar a complexidade do pensamento deste autor com o seu Zeitgeist. Uma das questões apontadas é o desarranjo trágico entre o conjunto de ideias neokantianas frente aos fatos que acometiam o país como um todo. Algo que denuncia este conflito é um excerto da carta de um filósofo neokantiano escrita diretamente do front de batalha:

Eu encontro-me tão bem como estava antes, apesar da batalha na qual participei a 30 de Outubro ter tornado quase surdos os meus ouvidos com o trovoar dos canhões de suas 24 baterias. No entanto… ainda continuo a ser da opinião que a terceira Antinomia de Kant é mais importante do que toda esta guerra mundial e que a guerra se relaciona com a Filosofia como a sensibilidade para com a razão. Eu simplesmente não acredito que os acontecimentos deste mundo corporal podem tanger, um mínimo que seja, na nossa componente transcendental, e continuaria a não acreditar, mesmo eventualmente, um estilhaço de uma granada francesa se me espetasse no meu corpo empírico. Viva a Filosofia Transcendental (Falkenfeld, apud. Safranski, 1994, p. 82).

Para uma parte desses pensadores, a filosofia poderia ser poderosa e desencarnada na superação da catástrofe representada pela Primeira Guerra Mundial. Aliás, o campo das ideias está além do corporal e viva a filosofia transcendental. Esse mal estar com intelectuais que pareciam estar em uma dimensão distanciada da concretude do cotidiano provocou Heidegger a buscar o vínculo da filosofia com a própria vida e, consequentemente, com a própria historicidade. História essa que não poderia, nos olhos do autor, ser um “espírito” que se desdobra teleologicamente, mas a singularidade viva dos acontecimentos que acomete o ser-aí na medida que ele compreende e interpreta o mundo.

Por sua vez, em 1923, György Lukács publicara História e consciência de classe. Desiludido com Max Weber – aderiu à ideologia da Guerra anos antes, bem como o desprezo por sua A Teoria do Romance [1916] –, foi com o acontecimento da Revolução de Outubro (1917), na Rússia, que o farol da superação de crise se abriria. Entre 1919-1922, participando na Revolução Húngara (1919), e sido vice-comissário para Educação e Cultura, faz a releitura de Marx (O Capital), e redige os textos de HCC.

Entre outros assuntos, trata-se de um diagnóstico crítico da modernidade burguesa; encontra a unidade sujeito-objeto no plano material da história: o sujeito real e efetivo na história a partir dos desdobramentos das “figuras” da consciência. A saída da crise é a unidade revolucionária, que encontra solo na Revolução Russa. Enquanto Heidegger se interroga sobre o “ser-no-mundo”, a historicidade e a vida fática, Lukács está preocupado com questões referentes ao fenômeno da reificação (Verdinglichung).

Lukács destaca a antinomia conceitual do sujeito e objeto, a partir da filosofia especulativa, na práxis e na história. A questão a ser colocada pela filosofia moderna seria não mais aceitar o mundo como algo independente do sujeito do conhecimento, mas produto desse sujeito (Kant, Fichte, Schelling etc). O ser não seria pensado como estático e definitivo (método das ciências naturais), mas numa processualidade dinâmica, entre adequações sucessivas, ainda que contraditórias. O racionalismo burguês (Descartes, Spinoza, Leibniz etc.) ganha contornos significativos com a filosofia clássica alemã. O “procedimento crítico” alemão, entretanto, não ultrapassou a indiferença da forma em relação ao conteúdo referente ao substrato material inerente ao conteúdo das formas do entendimento (categorias filosóficas). Lukács aponta que a dilaceração das estruturas da consciência cindidas pela forma-mercadoria marca a característica do pensamento moderno. A consequência mais direta é a ausência de uma perspectiva emancipadora do trabalho. Alienação que se constitui como uma das formas de dominação mais profunda, levando a filosofia a reboque de suas características.

Este diagnóstico pode trazer paralelos pontuais com Heidegger: o racionalismo (formal e abstrato) presente em diversas fases da história configurava-se mais como uma ordenação de sistemas transcendentais parciais, integrados sob um princípio calculador. Em Ser e Tempo [1927], desde sua Introdução e retomada no §45, o autor alemão demonstra a centralidade do “sentido do ser” e sua historicidade. Heidegger pensa o Dasein como ente privilegiado, que existe de modo ontologicamente fundamental: contingente, temporal e finito. A temporalidade então é o sentido próprio do ser-aí que deve ser mostrado pela análise fenomenológica; tempo é horizonte de compreensão do ser para o Dasein (ser-aí).

No sintoma da crise, culminante na Segunda Guerra, temos a reordenação do capitalismo na face verdadeira: o fascismo, a disputa neocolonial (imperialista) e a subalternização dos povos periféricos. Assim, algo que pode “uni-los” é o diagnóstico da própria crise do pensamento. Uma crise tendo como fundamento não só uma assimilação perpetrada pelas figuras do entendimento, mas as estruturas reificadas na existência. Para Lukács, “a conexão da forma e do conteúdo como uma conexão concreta, e não simplesmente um cálculo formal, leva ao insolúvel dilema da liberdade e da necessidade, do voluntarismo e do fatalismo” (Lukács, 2003, p. 282).

A partir da universalidade da forma estrutural da mercadoria (Marx) se constitui em um fenômeno intrínseco à realidade social. Em “As antinomias do pensamento burguês”, ele destaca que o problema da “filosofia clássica” foi de que ela “fez meia volta e se perdeu no labirinto sem saída da mitologia conceitual” (Lukács, 2003, p. 303). Por um lado, a radicalidade da fenomenologia de Heidegger consiste em ter visto este pressuposto e, assim, abrir a possibilidade de uma relação acesso-objeto diferente. Isso é possível quando o questionamento filosófico alcança a esfera pré-teórica do objeto, isto é, pela fenomenologia. Heidegger aponta, em preleções do período entre-guerras, sobre o que provocou o estado alienado e de precariedade do homem tecnológico e vinculado ao consumo de massa, dada a autoridade contínua do modo metafísico-científico da vida. Contudo, a problemática não seria resolvida na práxis social revolucionária. Heidegger centrou atenção na dimensão que “experimenta” a alienação, como dimensão ontológica, e não foi capaz de remeter para além dos entes, isto é, o ser social; a “saída” não se resolveria na história material. Lukács, aderido à perspectiva hegeliano-marxista, por outro lado, seria o proletariado (sujeito-objeto de conhecimento) que vislumbrava a “saída” de uma crise da modernidade.

Em suma, perturbava em ambos certa Stimmung (estado de ânimo), tanto na A teoria do romance e quanto nas Preleções sobre Os Conceitos básicos da filosofia de Aristóteles [1924]. Com uma crise profunda e geral, a relação entre a facticidade (Faktizität) e a reificação, mesmo em condições antagônicas, apontam para problemas fulcrais aqui. Ambos são críticos da atomização dos indivíduos na sociedade moderna e do pensamento formal. Portanto, seria crível interrogar em torno da crise da sociabilidade capitalista: poderiam eles servir a uma crítica filosófica comum?


Referências

HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. (GA.2) [1927] Frankfurt am Mein: Vittorio Klostermann, 1976. [Trad. Fausto Castilho. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2012.]

____________. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem. in Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/57). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1999. [Trad. Jesús Adrián Escudero. La Idea de la Filosofía y el problema de la concepción del Mundo. Barcelona: Herder, 2005.]

LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SAFRANSKI, R. Um mestre da Alemanha: Heidegger e o seu tempo. Trad. Jorge Telles Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.


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