História da filosofia, cânone e Émilie du Châtelet: algumas considerações gerais e um caso particular

Mitieli Seixas da Silva

Professora do Departamento de Filosofia da UFSM

16/03/2022 • Coluna ANPOF

Poucas vezes a área de História da Filosofia percebeu mudanças tão drásticas e significativas como aquelas a que está sujeita nos últimos anos em nosso país. A mudança atual deve-se, especialmente, à atuação de filósofas e historiadoras da filosofia, que observaram e incorporaram criticamente um movimento que já vinha acontecendo ao menos desde os anos 1980 em outros lugares do mundo. Trata-se do movimento que, ao compreender a exclusão injustificada de filósofas e pensadoras do cânone (isto é, de nossos currículos, preocupações didáticas e produção acadêmica), busca não apenas resgatar o trabalho de filósofas ao longo da história da filosofia, mas também refletir sobre as condições dessa exclusão.

O recente e acalorado debate sobre o cânone (sua importância, suas condições de possibilidade e sua necessidade em nossos dias) impôs que métodos de pesquisa e práticas acadêmicas e didáticas fossem revistas por nossa comunidade (e se isso não aconteceu ainda nos seus GTs, Departamentos e PPGs, é preciso estar atento, porque o trem da história não costuma perdoar aqueles que negligenciam as demandas da atualidade). Não há nada mais importante na área de História da Filosofia hoje do que essa discussão. Aqui vemos claramente o desenrolar prático de uma mudança teórica: se já há alguns anos, com a crescente compreensão dos problemas de gênero, o debate acadêmico tornou forçoso, por exemplo, que eventos acadêmicos prezem pela presença de mulheres, agora o debate torna imprescindível que – seja em eventos, seja em planos de ensino – a obra de filósofas também esteja presente. É possível termos um evento sobre Kant, não é mais possível termos um evento sobre Kant sem que palestrantes mulheres ocupem lugares de destaque e, assim espero, logo não será mais possível termos um evento sobre Kant sem que a obra de Émilie du Châtelet esteja de alguma maneira presente (assim como é natural, nesse tipo de evento, encontrarmos intersecções entre a filosofia kantiana e a filosofia, digamos, de Hume e Leibniz). 

O debate sobre gênero no cânone não ocorre no vácuo, ao contrário, em nosso país ele carrega (e deve carregar) a intersecção entre classe social e raça. Assim, se mulheres filósofas hoje estão presentes no debate nacional, isso não significa que as mulheres pretas e que tradições filosóficas não europeias também estejam. Estamos diante de um longo caminho e um caminho que deve ser percorrido tomando diversas direções. Se você é uma ou um estudante de Filosofia, considere empreender uma pesquisa na área de História da Filosofia, pois ela nunca esteve tão fértil de possibilidades exploratórias. 

Essas considerações gerais dizem respeito ao todo da área de História da Filosofia, mas quero olhar agora para um caso particular: por que Émilie du Châtelet mereceria integrar o cânone filosófico, isto é, por que essa filósofa deveria ter sua obra divulgada, traduzida, comentada e inserida em planos de ensino, produção didática e de pesquisa? Para estimular o debate, me interessa apontar uma condição interna e uma condição externa para que consideremos a obra de Châtelet digna de figurar em nossos cursos e preocupações acadêmicas. 

A condição externa é que Châtelet foi uma filósofa de transição. O que eu quero dizer com isso é que, embora não seja possível dizer (no estágio atual de pesquisa sobre sua obra) que tenha inaugurado uma nova era filosófica (uma escola de pensamento, um sistema etc.) por si própria, ela contribuiu com sua obra para que filósofos posteriores, como Immanuel Kant, pudessem operar revoluções. Por esse motivo, sua obra pode esclarecer questões externas tanto no que se refere a transições entre tradições, quanto rupturas que ocorreram no continente europeu no século XVIII e que permanecem ainda obscurecidas para a literatura especializada. Estão presentes em sua obra as seguintes questões: a ruptura com o sistema cartesiano, a recepção do newtonianismo, o desenvolvimento e o estatuto do cálculo, a aceitação da filosofia experimental, o conceito de liberdade, um novo modelo para o método científico, a compreensão do estatuto dos princípios de não-contradição e de razão suficiente, a condição ontológica do espaço e do tempo etc. Assim, todas e todos aqueles que trabalham com esses temas, mesmo que em outros filósofos e tradições, deveriam dedicar algum tempo em sua pesquisa para investigar a obra de Émilie du Châtelet.

Cabe ressaltar que Émilie du Châtelet é um exemplo de filósofa que foi excluída do cânone de modo completamente exógeno ao que ela experienciou em sua época. Nesse caso específico, embora, é claro, ela tenha sofrido uma série de silenciamentos e dificuldades decorrentes de seu sexo (não podia participar das seções fechadas da Academia Real de Ciências da França, não pôde frequentar universidades), ela mantinha uma rede de colaboração científica e filosófica que permitiu a publicização, tradução e comentário de suas obras por toda a Europa. Laura Bassi utilizava seu livro Institutions de physique em suas lições na Universidade de Bologna, cuja Academia de Ciências elegeu Émilie du Châtelet como membro em 1746. Seus escritos foram traduzidos para o alemão e o italiano logo após terem sido publicados. Émilie du Châtelet manteve colaboração filosófica com Christian Wolff, Samuel König, Maupertuis, Clairaut, Voltaire e os matemáticos da família Bernoulli, entre outros. Se levarmos em conta a condição externa, portanto, é premente considerar a inclusão de Émilie du Châtelet entre as filósofas incontornáveis do século XVIII, dada sua cristalina influência. 

A condição interna é que, daquilo que já temos acesso – e sua obra ainda não foi completamente estabelecida, sequer minimamente estudada – é possível afirmar, sem sombra de qualquer dúvida razoável, a profundidade, a erudição, o talento e a sagacidade de seu pensamento. Para marcar esse ponto, irei apenas sinalizar a fecundidade de dois de seus escritos. 

Em sua Dissertação sobre a natureza e a propagação do fogo, texto escrito em duas semanas e às escondidas, Châtelet competiu com os ensaios de Voltaire e Leonard Euler e só não ganhou o prêmio da Academia Real de Ciências da França em 1737 porque os ensaios vencedores perpetuavam a tradição cartesiana da Academia. A investigação sobre a natureza do fogo é incomum por duas razões: em primeiro lugar, pela importância dada ao método experimental aliado à confirmação racional, em segundo, pelo tratamento original dessa questão, contrariando as expectativas cartesianas e newtonianas típicas da época. 

Para finalizar, quero compartilhar uma questão que me ocupa nos últimos tempos acerca do papel de Châtelet no estabelecimento do cálculo como método de prova no século XVIII para chamar a atenção para a fecundidade ainda não explorada de seu pensamento. Na tradução e comentário do Principia de Newton, obra finalizada dias antes de sua morte prematura e publicada apenas em 1759, Émilie du Châtelet oferece uma seção intitulada Solução analítica na qual trata os problemas do Principia de maneira analítica, isto é, utilizando a matemática mais avançada da época, o cálculo. Há uma discussão inclusive acerca de qual cálculo Châtelet utilizaria em seu comentário, uma vez que certamente não é o método de Newton, mas tampouco pode ser equalizado ao método de Leibniz, sugerindo, portanto, que talvez a filósofa tenha criado sua própria versão do cálculo. Inúmeras questões surgem aqui, sendo a mais premente a seguinte: por que Châtelet considerou necessário oferecer uma solução analítica aos problemas tratados por Newton? 

O Principia foi um texto escrito por Newton em uma linguagem extremamente difícil, que seguia prioritariamente o método sintético ou geométrico, isto é, o método que procurava estabelecer suas proposições a partir de demonstrações sobre axiomas já aceitos, seguindo o modelo de Euclides. Ocorre que essa escolha metodológica trouxe dúvidas com respeito à autoria do cálculo, pois alguns contemporâneos partidários de Leibniz questionaram: se Newton criou o cálculo, antes e independentemente de Leibniz, por que ele não usou o método analítico para provar as proposições do Principia? Com efeito, Newton utiliza o cálculo no Principia, contudo, ele privilegia a prova pelo método sintético, por confiar que o modo como os geômetras antigos provavam suas proposições era o único que garantia certeza. E Newton não estava sozinho: Berkeley publicou em 1734 um texto intitulado O analista, em que tecia críticas ao novo método analítico como método de prova. 

Na história do desenvolvimento da matemática e, particularmente, da mudança de paradigma que ocorreu nos séculos XVII e XVIII com a progressiva aceitação dos novos métodos algébricos como métodos de prova, Émilie du Châtelet não costuma figurar. Contudo, uma pesquisa mais cuidadosa sobre essa obra de Châtelet pode revelar que, ao introduzir explicitamente o cálculo como método legítimo de prova no Principia de Newton, Émilie du Châtelet, de fato, estava engajada diretamente na discussão sobre a legitimidade do método analítico. Quantos filósofos e filósofas do período foram influenciados pela obra de Châtelet? Quais desdobramentos filosóficos resultaram de sua ousada manobra teórica? Como o ambiente filosófico foi impactado por seu posicionamento e defesa do método analítico?

Respostas a essas perguntas só podem ser alcançadas dentro de um compromisso teórico com a história da filosofia, mais ainda, com um compromisso teórico que leve a sério a história da filosofia e que, por esse motivo, está ciente das exclusões e busca ativamente repará-las. Tornar o cânone mais diverso e plural não é apenas uma tarefa política que devemos nos engajar por razões morais, o que é verdade, mas é também uma tarefa metodológica se queremos manter viva e fértil a área de História da Filosofia.

DO MESMO AUTOR

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Carolina Araujo

Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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