Hölderlin para recordar Rubens Rodrigues Torres Filho

Luciano Codato

Professor de História da Filosofia Moderna da Unifesp

19/01/2024 • Coluna ANPOF

De que forma expressar gratidão a quem talvez pudesse gostar mais de obra que de vida? Nos idos de 1988, Rubens Rodrigues Torres Filho ofereceu um curso sobre Kant e Novalis à graduação em Filosofia, na Universidade de São Paulo (USP), cuja questão geral visava a pertinência de uma “filosofia romântica”, a propósito de pensadores para quem as três Críticas eram um fato irreversível. Usavam-se em sala de aula, naquele segundo semestre, a recém publicada tradução de fragmentos de Novalis e a já reverenciada tradução dos §§ 43-49 da Crítica da faculdade do juízo, com ênfase nos textos sobre o gênio e a bela arte, todas da lavra do professor. Na disciplina optativa de Estética III, uma filosofia crítica de seus pressupostos só poderia ser filosofia da filosofia para Kant, ciência da ciência para Fichte ou, na letra original de Novalis, “logologia”. Alguém naquela sala pouco numerosa, sem ousar interromper a cadência da fala do professor, talvez pensasse consigo: saber do saber teórico e prático. Da bibliografia constava também o Diálogo sobre a poesia, de Schlegel (com a indicação de um livro de Claudio Ciancio), que acabaria permanecendo à margem de um curso cujo sentido já estava indicado. Propunha-se ler os românticos como “filosoficamente pós-kantianos” e “cronologicamente pré-hegelianos” (com a fina malícia desses advérbios).

Transplante da filosofia da época para uma folha de manuscrito de um poeta romântico, esse era o tema da segunda aula. A lousa foi preenchida pelas duas páginas de “Juízo e ser”, de Hölderlin, “datado provavelmente de 1795 e só publicado a partir de 1961 pelo pesquisador Friedrich Beißner”. Hölderlin era apresentado como “poeta puro”, “poeta que escrevia textos ensaísticos sobre poesia”, mas também autor desse “texto técnico, rigorosamente filosófico”, em que procurava “passar as coisas a limpo”. Além das três Críticas de Kant, as coisas em questão para Hölderlin eram a Fundação (Grundlage, 1794-95) e o Compêndio (Grundriß, 1795), de Fichte, e o escrito de Schelling Sobre o eu como princípio da filosofia (Vom Ich, 1795). Aluno de Fichte e colega de Novalis em Jena, além de ex-colega de Schelling (e Hegel) em Tübingen, Hölderlin talvez tivesse acesso a esses textos antes de virem à estampa.

Ignoram-se os motivos de permanecer inédita (salvo engano) a tradução de “Juízo e ser” utilizada em sala de aula por Rubens. Que essa ignorância releve a indiscrição de publicá-la ipsis litteris, com os votos de que o colega (e, apesar disso, amigo) Marcio Sattin encontre seu velho caderno para cotejá-la com sua versão e conferir as notas que se atribuem ao professor, a serem ser lidas com reservas. Servem menos como fonte de citação e mais como aceno à recordação, levando a imaginação a tornar presente o que se impõe a nós em sua ausência. Sobretudo, que a reprodução dessa tradução expresse a gratidão de um aluno daquela longa tarde ensolarada de nove de agosto, a quem há poucos dias coube encerrar, mais de trinta e cinco anos depois, um curso eletivo de “Introdução ao idealismo alemão”, para estudantes de graduação na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).


Juízo e ser

Friedrich Hölderlin
Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho

Juízo (Urteil) é[1], no sentido mais alto e mais rigoroso, a originária separação do objeto e do sujeito intimamente unificados na intuição intelectual[2], aquela separação somente através da qual objeto e sujeito se tornam possíveis, a proto-divisão (Ur-Teilung).[3] No conceito da divisão estão contidos já o conceito da referência mútua de objeto e sujeito um ao outro e a necessária pressuposição de um todo, do qual objeto e sujeito são as partes (Teile).[4] “Eu sou eu” é o exemplo mais adequado desse conceito da proto-divisão (Urteilung), como judicação (Urteilung) teórica, pois na judicação prática ele se opõe ao não-eu, não a si mesmo.[5]

Efetividade e possibilidade se distinguem como consciência mediata e imediata.[6] Se penso um objeto como possível, apenas repito a precedente consciência[7], em virtude da qual ele é efetivo[8]. Não há para nós nenhuma possibilidade pensável que não tenha sido efetividade (Wirklichkeit). Por isso, o conceito de possibilidade nem sequer é válido para os objetos da razão[9], porque estes nunca aparecem na consciência como aquilo que devem ser (sein sollen), mas somente o conceito de necessidade. O conceito de possibilidade é válido para os objetos do entendimento, o de efetividade, para os objetos da percepção e intuição.[10]

Ser exprime a ligação [variante na leitura em sala: “vinculação”] de sujeito e objeto.[11]

Ali onde sujeito e objeto estão pura e simplesmente [variante na leitura em sala: “integralmente”], não apenas em parte, unificados, consequentemente, unificados de tal modo que nenhuma divisão (Teilung) pode ser empreendida sem ferir a essência daquilo que se pretende separar, aí e em nenhuma outra parte se pode falar de um ser puro e simples [variante na leitura em sala: “absoluto”], como é o caso com a intuição intelectual.[12]

Mas esse ser não deve ser confundido com a identidade.[13] Se digo: “eu sou eu”, o sujeito (eu) e o objeto (eu) não estão unificados de tal modo que nenhuma separação pode ser empreendida sem ferir a essência daquilo que se pretende separar;[14] ao contrário: o eu só é possível através dessa separação do eu do eu[15]. Como posso dizer: “eu!” sem autoconsciência?[16] E como é possível a autoconsciência,[17] através de que eu me oponho a mim mesmo, me separo de mim mesmo, mas, não obstante essa separação, me reconheço no oposto como o mesmo.[18] Mas em que medida como o mesmo? Eu posso, eu devo, perguntá-lo; mas num outro aspecto ele é oposto a si. Portanto, a identidade não é uma unificação de objeto e sujeito que ocorresse pura e simplesmente [variante na leitura em sala: “absolutamente”]; portanto, a identidade não é igual ao ser absoluto.[19]


Notas

[1] Instrução de Torres Filho aos alunos: “Forma de uma definição”. Na explicação após a leitura inicial do texto: “’Juízo’ é um termo que se torna a partir de Kant ainda mais central do que já era na tradição: como são possíveis juízos sintéticos a priori? Para Kant, pensar é julgar. Na época há um grande impacto da Crítica do Juízo, da faculdade de julgar (Urteilskraft), com o juízo estético, com a diferença entre juízo determinante e juízo reflexionante”.

[2] Comentário de Torres Filho: “Intuição intelectual, em Fichte, não tem o mesmo sentido que em Kant. Expressão correspondente a certo tipo de auto-intuição na doutrina-da-ciência. A expressão ‘intuição intelectual’ é fluente no primeiro Schelling, que também a recupera. Grafia de Schelling: ‘intellektuale’. Grafia de Fichte ‘intellektuelle’. Hölderlin a utiliza, ao que parece, no sentido de Schelling”.

[3] Comentário de Torres Filho: “S é P está exprimindo, no sentido mais rigoroso, uma separação que Hölderlin vai chamar ‘ursprünglich’, ‘originária’. Para haver juízo, tem de haver separação, divisão, que é originária porque produz sujeito e objeto como tais. Sujeito e objeto não são instâncias últimas. Haja vista a própria língua, há uma proto-divisão que Hölderlin introduz na grafia: Urteil ist die Ur-Teilung, juízo é a proto-divisão. Consciência de Hölderlin sobre o trabalho do significante no interior da linguagem. Esse trocadilho entre Urteil e Ur-Teilung é usado por Hegel na Ciência da lógica”. Torres Filho prossegue: “Intuição intelectual é o estado antecedente a essa separação originária. No estado de intuição intelectual, sujeito e objeto estão intimamente unificados, são inseparáveis”.

[4] Torres Filho enumera o que se encontra no conceito da divisão: 1) “o conceito da referência mútua de objeto e sujeito um ao outro”; 2) “a necessária pressuposição de um todo, do qual objeto e sujeito são as partes”. Na explicação após a leitura inicial: “Ao estarem intimamente unificados nessa suposta intuição intelectual, sujeito e objeto não eram possíveis. Sem uma separação originária, sujeito e objeto são impensáveis”.

[5] Comentário de Torres Filho: “‘Eu sou eu’: especificação da fórmula A é A, princípio de identidade na lógica formal. Eu = eu: há uma separação fundante aí. Ao julgar, divido. Na judicação teórica, o eu se opõe a si mesmo; na judicação prática, o eu se opõe ao não eu. A referência é Fichte”.

[6] Para não pairar dúvida, segundo Torres Filho: “Efetividade: consciência mediata. Possibilidade: consciência imediata”. Na explicação posterior: “O texto vai trabalhar com a distinção modal de Kant dos conceitos puros do entendimento: possibilidade, efetividade, necessidade”.

[7] Torres Filho auxilia na leitura inicial: “consciência imediata”.

[8] Explicação de Torres Filho: “É preciso ser antes possível para ser efetivo. Necessário, se for possível e efetivo”.

[9] Comentário de Torres Filho: “Objetos além da experiência possível: Deus, liberdade etc. A referência é Kant. Os objetos da razão só podem ser objetos do dever ser, não do ser”.

[10] Comentário de Torres Filho: “Segundo parágrafo: caminho oblíquo para recuperar o conceito de necessidade. Em Kant, a efetividade está ligada à receptividade; a possibilidade está ligada à espontaneidade. Aquela se refere à sensibilidade; esta, ao entendimento. A necessidade se refere à razão”.

[11] Observação de Torres Filho: “Início da segunda parte do texto: contrapartida da primeira frase da primeira parte”. Na explicação posterior: “Os conceitos são aproveitados e reelaborados pelo texto. O esquema de Hölderlin montado na primeira parte vai funcionar na segunda e levar à conclusão a que ele quer chegar, contra a tese do ser puro e simples como identidade. O ser exprime a ligação de sujeito e objeto como ser absoluto”.

[12] Comentário de Torres Filho: “Há no ato de julgar uma afirmação de identidade que traz uma divisão. Ao fazer uma Teilung, firo a essência. Só no caso da intuição intelectual posso falar em ser puro e simples, em sujeito e objeto unificados, em ser absoluto. No caso da intuição intelectual, tenho a afirmação da positividade do ser puro e simples. Tenho a permanente possibilidade de que o eu esteja sempre se renovando e se relançando, esteja constantemente se pondo”.

[13] Comentário de Torres Filho: “Ser puro e simples: impossibilidade da divisão. Ab-solutum. O ser puro e simples, absoluto, não deve ser confundido com uma identidade”.

[14] Comentário de Torres Filho: “A identidade é o contrário do ser”. Entenda-se: do ser absoluto. [Nota de LC.]

[15] Já que não convém permanecer aluno para sempre, que seja permitida uma sugestão: “o eu só é possível por essa separação entre o eu e o eu” (das Ich ist nur durch diese Trennung des Ichs vom Ich möglich). [Nota de LC.]

[16] Comentário de Torres Filho: “Dizer ‘eu’ é expressão de minha autoconsciência. O eu como autoconsciência só é possível através da separação entre o eu e o eu. ‘Eu sou eu’: a autoconsciência é o oposto da ligação sujeito e objeto”.

[17] Aqui o aluno pode ter se confundido com a letra do professor. É mais provável que o texto estivesse pontuado assim: “E como é possível a autoconsciência? Através de que me oponho a mim mesmo, me separo de mim mesmo, mas, não obstante essa separação, me reconheço no oposto como o mesmo”. [Nota de LC.]

[18] Comentário de Torres Filho: “O ato de autoconsciência exige exatamente o contrário do que exige o ser absoluto”.

[19] Explicação de Torres Filho: “Tese que Hölderlin vai tentar provar elaborando a linguagem: ‘a identidade não é igual ao ser absoluto’. Tentativa de tomar posição, situar-se, no plano teórico em relação a questões filosóficas muito atuais, prementes nesse período, com o equipamento conceitual das três Críticas de Kant, da doutrina-da-ciência de Fichte e dos primeiros escritos de Schelling”


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