Homenagem a Giorgio Agamben

Daniel Arruda Nascimento

Professor da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo

05/09/2024 • Coluna ANPOF

Aproveitando o ensejo do filósofo ítalo-armênio Giorgio Agamben fazer publicar um extenso rol de homenagens a escritores, artistas e amigos na coluna Una voce da página eletrônica da editora Quodlibet – no conjunto de uma fileira de muitos outros textos curtos nos quais tem ele a liberdade de comentar fatos do nosso cotidiano cultural e político, com grande ou pequena polêmica, além de recordar conceitos importantes e produzir alguma novidade filosófica – aproveitando também, com ainda maior apelo, que ele tem anunciado a morte do Ocidente, o que compreende não apenas o nosso mundo e todos nós, que perdemos a crença nos princípios que lhe davam identidade, incluindo-se nessa morte então ele mesmo e eu que escrevo estas linhas, gostaria, como leitor assíduo e estudante egresso de um dos seus cursos, de lhe prestar uma homenagem.

Culminando esse anúncio de ocaso que vem já de muitos anos, o aforismo Requiem per l’Occidente, publicado recentemente no dia 11 de julho de 2024, com um texto ao mesmo tempo jocoso e prospectivo, procura atualizar a oração escatológica dos funerais que pertencia ao missal romano. Em um desses parágrafos explicativos, ele escreve que “não podemos ressuscitar os mortos, mas podemos pelo menos preparar com todo o cuidado o maravilhoso instrumento do nosso pensamento e do nosso julgamento e, fazendo-o ressoar sem medo, liberar a natureza e a morte das mãos do poder que com eles nos governa. Sentir surpreender a nós a natureza e a morte, prever aqui e agora outra vida possível e outra morte, é a única ressurreição que nos interessa”.

Poucos dias antes, no aforismo Sulle cose che ci-non-sono, ele havia escrito que “àqueles que tentam hoje por todos os meios vincular-nos a uma suposta realidade factual que não permite alternativas, devemos opor antes de mais nada o pensamento”. Novamente, em uma conjuntura ontológica na qual a diferença entre teoria e prática não faz muito sentido, o pensamento é o refúgio que se oferece à nossa condição humana e o que pode desembaraçar os caminhos às alternativas que podem reinventar o nosso mundo, tema recorrente nos seus escritos e ditos.

Em Veneza, escutei pessoalmente do professor Giorgio Agamben, na sala de aula para estudantes de diversos cursos, que a filosofia é uma intensidade do pensamento. Cheguei a indagá-lo depois sobre o assunto, em um dia no qual o visitei em sua casa e o entrevistei, com perguntas que havia preparado com antecedência e ele gentilmente se dispôs a responder – entrevista essa que nunca publiquei, talvez pelo escrúpulo de não tê-la gravado e ter recuperado as respostas apenas pela memória. Na ocasião, anotei o que se segue. “Uma intensidade, de fato, e não substância, que pode percorrer qualquer campo, ciência, direito etc. Haveria uma divisão no interior do âmbito humano: todos os homens são capazes para a filosofia? Encontramos na filosofia duas tradições: a primeira diz que o pensamento, como processo estável, pertence sempre ao homem; a segunda entende que todo homem pode pensar, mas não pensa sempre. Desta última fazem parte Averróis e Heidegger, por exemplo. Pensar é uma possibilidade. Talvez pensamos uma vez ou outra. Talvez pensar seja ainda somente uma possibilidade. Tenderia a afirmar que não se pode dizer aqui tem pensamento, ou aqui não, ou aqui tem filosofia, aqui não, mas aqui há uma possibilidade de pensamento”.

O meu encontro com o pensamento que ele materializou em suas obras publicadas havia sido casual. Conto um pouco da história porque há coisas que só podemos dizer contando uma história. Também para compreendermos que um filósofo vivo é um homem de carne e osso. Em 2005, estava eu no primeiro ano do Mestrado em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, desenvolvendo uma dissertação em Heidegger e Kierkegaard. Ficava diariamente de sete às sete na biblioteca, tentando compensar a circunstância de não ter uma graduação em filosofia – assim como ele, venho de uma preliminar formação jurídica. Entre uma leitura e outra, frequentava desmedidamente a vida acadêmica dos pilotis e auditórios, razão pela qual, em um desses eventos que avistava com o mais genuíno interesse, fui impactado sem remédio por uma comunicação que fazia dele a sua principal referência e tocava nos conceitos que lhe são caros, como o estado de exceção e a sua permanência.

Viajando à Itália no final desse mesmo ano, e depois de enviar-lhe um e-mail e obter uma pronta resposta com um número de telefone, fui convidado para almoçar juntos depois de uma aula sua, acompanhado de um pequeno grupo de estudantes. Fomos a um restaurante próximo, ele pediu batatas, alcachofra e alguma proteína que não me recordo agora. Sem saber o que pedir e sem entender bem o que era alcachofra, pedi o mesmo. Conversamos um pouco e eu lhe falei das intenções para um projeto de doutorado.

Durante os primeiros meses de 2009, já avançado no doutorado da Universidade Estadual de Campinas, estava eu na Università Iuav di Venezia para um curso inteiro com o professor. Durante o período, por ocasião da passagem do professor Cláudio Oliveira, que se tornaria depois um dos principais tradutores brasileiros de suas obras, ele me convidou para jantar e marcou o encontro em sua casa. Lembro de ter ficado pasmo com a possibilidade de vê-lo cozinhar algo para a gente, mas chegando lá fui informado que iríamos a um restaurante a algumas pontes dali. Chegamos a tirar os três uma fotografia nesse dia, mas ela se perdeu infelizmente no computador de um amigo albanês com quem dividia o apartamento no subúrbio continental.

Em um segundo encontro, este nos interessa mais, ele me acolheu em sua sala de estar, com estantes cobertas de livros, imagens e fotografias. Um espaço pequeno, naturalmente, como não devia deixar de ser para quem mora em uma ilha e experimenta a utilidade e os inconvenientes de viver entre os fantasmas. Havia ali uma escrivaninha coberta de folhas. Recebi de presente um exemplar de Il sacramento del linguaggio e ele me informou que havia acabado de publicar Nudità. Desse encontro salvou-se uma fotografia. Lendo posteriormente Autoritratto nello studio, pude ter uma clara visão do seu ambiente de trabalho, esse livro biográfico que termina com um parágrafo sobre a grama – notemos, aquilo que é exterior, aquilo que é ao mesmo tempo resistente e efêmero. Assim, ele conclui, “se devesse dizer em que coisa finalmente coloco as minhas esperanças e a minha fé, poderia somente confessar a meia voz: não no céu – na grama [...] para grama e na grama e como a grama vivi e viverei”.  

Quando voltei da viagem, perguntaram-me algumas vezes se o professor era arrogante, talvez por causa do seu modo de escrever. Convenhamos que há em seus livros passagens com referências aleatórias e conclusões com um verniz autoritário. Mas não, nunca me pareceu assim. Ele se esforçava para compreender seus estudantes interlocutores. Lembro de ter encontrado um homem muito magro, testa larga, olhos claros e fundos. Na primeira aula que participei, ele perguntou para a classe o que significa sermos contemporâneos. Eu respondi sem pestanejar, ser presente. Depois, lendo Che cos’è il contemporaneo?, percebi que o meu palpite era justamente o que ele precisava para alavancar uma reflexão sobre o intempestivo.

O curso seguiu sobre a noção de voz humana em Aristóteles e sobre a obra de Carmelo Bene. Eu observava a sua obsessão pela temperatura na sala de aula, se quente ou frio demais, sendo sempre objeto de interrupção o exato ângulo de abertura da janela para o inverno. Se a aula era uma exuberante experiência reflexiva? Não para mim, que estava acostumado com as aulas de Campinas, as discussões nos corredores a céu aberto e no restaurante universitário. Cedo percebi que ele estava menos à vontade em sala de aula do que na sua escrivaninha.

Ao menos desde o advento do seu projeto mais prestigioso, com publicações robustas a partir de 1995, ele sacudiu o cenário filosófico e a relevância da sua influência não pode ser desmerecida. O filósofo hoje com oitenta e dois anos, soube cavar o seu espaço com dedicação, inteligência e habilidade retórica, tornando-se ele mesmo uma referência inesquecível.

Ocorre que na filosofia acadêmica somos levados a escolher autores e temas. Devo a ele a oportunidade de estudar o que desejava estudar. Melhor dizendo, suas publicações coincidiam com interesses que já estavam comigo e foram desenvolvidos ao longo da vida de estudos e pelas interpelações em congressos e aulas. Temos aqui um duplo uso: o filósofo nos usa para ser conhecido e respeitado, nós o usamos para abordar as questões que nos motivam, pesquisar, publicar.

Estando nós em uma área do saber que se afirma especialmente na tradição e no interlúdio, é preciso valorizar aqueles que vieram antes de nós, assim como estimamos a ancestralidade. Melhor ainda se o diálogo intertemporal for uma crítica honesta e fértil. Erraram pela dimensão do pensamento eles, erramos nós também, mas fizeram pensar, o que já é muito no mundo dos engajamentos ligeiros, impensados e repetitivos.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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Daniel Arruda Nascimento

Professor da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo

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