ISEB: Uma experiência filosófica brasileira

Tiago Medeiros

Professor de Filosofia do IFBA

05/06/2024 • Coluna ANPOF

O objeto deste texto[1] é a contribuição filosófica do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros – 1955-1964): um passeio pelos seus principais filósofos e uma interpretação do sentido profundo desse movimento para a cultura brasileira. Dois pensadores têm aí particular importância, por terem assumido a dianteira das formulações filosóficas do grupo: Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier. Apesar de não terem sido os únicos, foram provavelmente os mais tarimbados operadores da filosofia do movimento.

A contribuição isebiana aqui tratada inclui: (a) a ideia e o sentido de uma filosofia brasileira; (b) os problemas matriciais do subdesenvolvimento e da colonização (estimados conceitualmente como alienação); (c) o glossário conceitual de influência continental; (d) ideologia como programa de ação transformadora. Os tópicos não aparecerão por seções bem delineadas, antes serão elementos de destaque de uma narrativa à guisa de breve ensaio.

O acontecimento histórico que ensejou a guinada ideológica da geração de intelectuais do ISEB foi a Era Vargas. Foi sob o espírito do nacionalismo varguista que aqueles jovens que vieram a compor o Instituto tomaram o Brasil como problema teórico central. Aos filósofos do grupo coube abordá-lo por uma articulação conceitual mais geral, de fundo, partindo da questão sobre a realidade nacional.

O que significa realidade nacional? Vieira Pinto e Corbisier concordam com as premissas da filosofia continental segundo asquais: A realidade humana seria, primeiro, o que os pensadores alemães consagraram na fórmula “in der Welt sein”: ser-no-mundo. Os seres humanos são integrados ao mundo, imbricados em circunstâncias simbólicas e materiais em cujo tecido constatam a sua própria presença. Substituindo a terminologia “situação fundamental”, de Gabriel Marcel, por “situação original”, Corbisier dirá que tais circunstâncias compõem uma condição “sempre situada e datada” (Corbisier, 1960, p. 13). É essa circunscrição o que consagra ao nacional sua qualidade. Vê-se que esse contextualismo é correlato a um historicismo que Corbisier, como também Guerreiro Ramos (1995, p. 46), atribuem à recuperação de Hegel e Dilthey.

Afastada a metafísica idealista do sujeito e adotada uma filosofia da existência e da história no que concerne à realidade nacional, Vieira Pinto problematiza a própria fórmula alemã: o “sein” pronunciado por um filósofo metropolitano ignora a ambiguidade que é óbvia e chã para qualquer falante do português: ser e estar não são a mesma coisa. A fusão dos dois verbos na máxima existencialista europeia encobre a função passiva do estar – a posição espaço-temporal em que se é dado existir –, realçando a função ativa, mas abstrata, do ser. O efeito é tornar opaca a interpretação do mundo [Welt] desde uma totalidade singular. Mas o estar no mundo é condição para o ser no mundo: “Não é a situação geral, como fundamento, o que exerce papel constitutivo do ser humano concreto. É a situação na sua total realidade singular” (Vieira Pinto, 1960b, p. 137). E Vieira Pinto conclui: “O espaço onde estou não desempenha, portanto, a simples função de me proporcionar dados sensoriais e convívio social, mas é ingrediente do meu ser e isso porque o ser que sou eu o constituo na base das possibilidades reais que tal espaço me oferece.” (Idem, ibidem).

Possibilidades reais do espaço, a realidade nacional é constituinte de uma das formas de se ser um humano. É singular, porque irredutível à categoria geral da humanidade. É total, porque não pode ser estilhaçada em identidades segmentadas independentes sem sacrificar seu próprio status de realidade. Corbisier e Vieira Pinto queriam a filosofia brasileira tivesse por tarefa de empreender as noções gerais de entendimento dessa realidade singular e dos caminhos de sua transformação. Essa filosofia haveria de ser deliberadamente promotora e articuladora de uma ideologia nacionalista teoricamente bem-fundada, voltada ao esclarecimento do vínculo entre a sociedade e sua situação nacional.

Análise considera a face econômico-social, em que se verifica o subdesenvolvimento do Brasil, e a cultural, reveladora do colonialismo que desvirtua o espírito e os pendores do país. A agenda transformadora promove uma ideologia nacional para reorientar as práticas e instituições contra a dependência estrangeira e abreviar o caminho da emancipação iniciado na Semana de Arte Moderna, em 1922 (Corbisier, 1960, p. 45).

O problema é que os fatores condicionantes do estado de coisas no Brasil estariam turvados por uma recalcitrante alienação. Valendo-se de um vocabulário heideggeriano, nossa dupla de filósofos concorda em dizer que, porque são alienadas, as sociedades colonizadas são inautênticas (Corbisier, p. 75-81), i.e., carecem de originalidade ou de ser próprio, vez que são instrumentos ou utensílios (Corbisier, 1960, p. 30) de metrópoles. As potências estrangeiras controlam e limitam as capacidades e virtudes das sociedades periféricas por expedientes espoliadores. (Vieira Pinto, 1960a, p. 30).

Nesse ponto, Corbisier retorna ao vocabulário de Hegel para precisar o drama brasileiro: “um povo economicamente colonial ou dependente também será dependente e colonial do ponto de vista da cultura, tomando a palavra cultura no sentido de mundo objetivo em que se exterioriza o espírito subjetivo desse povo” (Corbisier, 1960, p.32). Comparando o produto desses espíritos objetivos, a sociedade metropolitana é autônoma e autossuficiente; a colonial, dependente. 

Vieira Pinto identifica um obstáculo nas representações da “consciência ingênua”, que ratifica o status colonial – e que, historicamente, goza de influência e poder nas elites nacionais. “O processo do desenvolvimento nacional é função da consciência que a nação tem de si mesma. Esta tese reveste de excepcional seriedade o exame das modalidades de representação da realidade nacional.” (Vieira Pinto, 1960a, p 30). O pensador distingue a consciência ingênua da crítica e propõe outra subdivisão, concebendo para elas adicionalmente as qualidades de esclarecida e de inculta, conforme suas ocorrências na sociedade brasileira (Idem, p. 21). Assim, a ideologia nacional deveria ser a atividade da consciência crítica esclarecida conferindo expressão e articulação adequadas à massa de brasileiros que manifestam consciência igualmente crítica, porém inculta – ambas totalmente contrárias à consciência ingênua, quer “esclarecida”, quer “iletrada”.

Críticos do ISEB atacam exatamente o aspecto ideológico das discussões e obras do grupo (ver Lamounier, 1978). Há quem alegue que o ISEB é uma “fábrica de ideologias”, no sentido de fantasias pré-científicas e infecundas para os objetivos emancipatórios dos próprios proponentes. Há quem se queixe de que careceria ao grupo uma crítica da sociedade em que os termos da luta de classes no Brasil fossem enfatizados. Há quem adjetive o pensamento isebiano de “bastante confuso do ponto de vista teórico, nada rigoroso segundo parâmetros científicos” (Franco, 1977, p. 14). Ideologia, para esses, é falsificação do real, ciência sendo coisa de materialismo histórico e de estruturalismo.

A ideologia de que falam os isebianos é programa de ação, guia para uma militância unificada e coesa para superar o “complexo utensilar” (Corbisier, 1960, p. 42) a que se presta ao Primeiro Mundo o país, e para dar o passo que até hoje não foi dado de sua transformação global, em que ele supere, entre outras renitências, a fome, a miséria, o analfabetismo, a concentração de renda e a ineficiência dos serviços de Estado. Na definição de Vieira Pinto, ideologia

Designa a representação consciente que a sociedade faz de si mesma em relação ao estado do seu processo evolutivo, com o qual a cada momento se defronta, visando à sua transformação. Não é apenas representação pictórica, simples apreensão reflexa, como a imagem na superfície polida, mas captação do real sob o impulso do projeto, simultâneo, de modificá-lo. (Pinto, 1960a, p. 45)

É mirando o desdobramento político da filosofia brasileira que Corbisier, seguindo em mesma senda, dá nome aos bois numa campanha ideológica de emancipação nacional: 

No caso brasileiro, a reação contra o semicolonialismo e o subdesenvolvimento só se poderá fazer com apoio das classes que o suportam como um entrave à própria expansão – expansão da indústria nacional e do mercado interno – quer dizer, a burguesia industrial, o comércio ligado a essa burguesia, os setores esclarecidos da classe média e o proletariado industrial. É com apoio nessas classes, nos seus interesses e nas suas reivindicações, que coincidem, aliás, com os interesses do desenvolvimento do País, que a “intelligentsia" brasileira poderá forjar a ideologia de libertação nacional. (Corbisier, 1960, p. 45)

Em tais termos, a ideologia isebiana não dispensa um exercício crítico, apenas não o concebe como fim em si mesmo. O ISEB não desconhece Marx, só não o prioriza. Num contexto em que, para fazer frente ao paradigma eurocêntrico, se procura respaldar qualquer filosofia que não aquela que se possa chamar de brasileira, como o constatamos no país, agora, em um carrossel praticamente exclusivo das filosofias africana, coreana, “decolonial”, indígena, aborígene e o que mais seja, é vibrantemente atual o compromisso isebiano de reintegrar as visões sobre a economia e a cultura nacionais, considerando o teatro geopolítico real do nosso tempo: as assimetrias da ordem material, os preços dos produtos no mercado global, os conflitos bélicos, as catástrofes climáticas, o domínio manipulador das big techs etc..

Que a contribuição filosófica e científica do ISEB nos inspire – crítica e atualizadamente, como sempre convém. 


Notas

[1] Texto escrito por ocasião de discussões do GT Poética Pragmática, sob provocações e estímulos de José Crisóstomo de Souza.


Referências

CORBISIER, Roland. (1960) Formação e Problema da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB.

FRAnco, Maria Sylvia de Carvalho. Apresentação. In. TOledo, 1977.  

Guerreiro Ramos, Alberto. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1995.

Lamounier, Bolívar. (1978). O ISEB: notas à margem de um debate. Discurso9, 153-158. https://doi.org/10.11606/issn.2318-8863.discurso.1978.37850

TOLEDO, Caio navarro. (1977). ISEB: Fábrica de ideologias. São Paulo: Ática.

VIEIRA PInTO, Álvaro. (1960a) Consciência e Realidade nacional. Vol I. Rio de Janeiro: MEC/ISEB

_______. (1960b) Consciência e Realidade nacional. Vol II. Rio de Janeiro: MEC/ISEB


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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