Manifestação (ou manifesto?): por uma filosofia a muitas mãos

Benito Eduardo Araujo Maeso

Professor do IFPR; Professor Colaborador do PGFILOS-UFPR

Lucas Lipka Pedron

Prof. Me (SEE/MG)

26/06/2023 • Coluna ANPOF

O certo é que não existe receita ou fórmula geral para trabalhar junto. [...] Nós dois, Félix e eu, daríamos um bom lutador japonês. – Gilles Deleuze, Dois Regimes de Loucos, p. 249

 

Afinal de contas, a atividade da produção filosófica ocorre “adonde”? No mundo ou no Mundo das Ideias? É um trabalho fruto da relação d@ autor@ com as Musas ou é fruto da relação dos seres humanos no terreno do real? Recentemente, como parte da pletora de temas aos quais damos atenção e foco em pesquisas, elaboramos a quatro mãos um artigo do qual nos orgulhamos muito, um tour de force entre a Teoria Crítica frankfurtiana e a sabedoria do Samba, publicado em uma revista de grande repercussão e excelente qualidade editorial, a qual agradecemos a imensa oportunidade.

Desejosos de ampliar a discussão e levar os temas debatidos no texto ao maior número de eventos e espaços possíveis, inscrevemos a apresentação de um trabalho sobre o artigo em um congresso nacional na área de estética. A negativa da organização do evento (um direito deles) em que pudéssemos apresentar juntos (ou, por questões geográficas, que um pudesse apresentar em nome dos dois autores) nos levou a refletir sobre um certo vício na compreensão das pessoas em relação ao trabalho filosófico: a pressuposição de que, ao pensarmos em teses, artigos, livros, etc. em nossa área, estaríamos necessariamente falando de trabalhos individuais (ou individualistas), inspirados por horas de reflexão solitária e de contemplação dos mistérios eleusinos, socrático-platônicos, medievos, kantianos, heideggerianos ou quaisquer outros. Uma certa necessidade de pensar o trabalho autoral como a obra de um gênio, um solilóquio, uma apresentação solo; como se na arte e na ciência a própria criação não pudesse ser pensada como um ato coletivo – um dos preceitos arraigados que para alguns relega o cinema a uma arte inferior, dada a coletividade necessária para sua produção.

Esta visão de que filósofas e filósofos são seres que habitam uma realidade própria, na qual, muitas vezes, se acreditam e se veem como a única pessoa viva, não é privilégio de um senso comum quase cômico sobre nosso metier: está presente entre nós mesmas e mesmos. É visível, desde as métricas de avaliação (que muitas vezes olham artigos com mais de um autor ou autora como “piores”, inibindo a troca de ideias entre colegas) impostas sobre programas e departamentos até as restrições de muitos periódicos (não todos!!) a respeito de co-autoria de artigos, passando pela exigência de produtividade fordista e pela disputa de mercado acadêmico entre pensadoras e pensadores, que a máxima cartesiana do “EU penso, logo EU existo” – ou quem existe é o Eu que publica, apresenta e aparece – é levada a sério demais por algumas e alguns integrantes da comunidade filosófica. 

Em parte, não é possível separar isso das próprias necessidade da carreira acadêmica, seja d@s ingressantes nela, seja d@s já estabelecid@s; uma necessidade apresentada a partir de regras que não determinamos, mas cujo funcionamento vemos continuamente sufocar as áreas de ciências humanas e, em especial, a de filosofia. Reconhecemos que há uma grande parte do nosso trabalho que é, digamos assim, individual (o que não significa ser solipsista) e que exige um olhar profundo em direção a si mesma ou si mesmo. Também fazemos questão de apontar a imensa facilidade que os e as apóstolas de determinados autores e autoras têm em santificar seus e suas eleitas como se tais pessoas tivessem recebido a inspiração angelical e apenas tais seres chegaram, por obra das Musas ou do Cogito, à Verdade. 

Sabemos que as “igrejinhas” não são novidade. Apenas nos parece apressado, para dizer o mínimo, imaginar que tais semideuses e semideusas nunca tenham “trocado uma ideia” com um ou uma “parça” em um almoço, na mesa do bar ou no restaurante, ouvindo ou tocando um samba ou ido a uma sala de concerto, após uma sessão de cinema, uma peça de teatro ou até assistindo uma série em streaming...ou seja, VIVENDO junto com outras pessoas e que esta vida não tenha, de alguma forma, atravessado e brilhado em suas pesquisas, aparecido em seus artigos, livros, comunicações, teses e conferências; a própria publicização de uma pesquisa já não pressupõe esse esforço monumental de comunicação, tanto que antecede sua cristalização em texto, como a segue na forma dos debates que suscita?. Se alguém pode afirmar, sem sombra de dúvida, o contrário disso, ou seja, de que o/a Outro/a ou o Mundo não está pulsando de alguma forma em seus pensamentos, surgiria uma nova primeira certeza: a de que não existimos realmente, pois não vivemos com os e as demais. Logo, pensar para que? E para quem? Parafraseando uma frase de Bento Prado Júnior lembrada por Franklin Leopoldo e Silva em uma palestra anos atrás na UFPR, jamais devemos desprezar “os alunos” – e, por extensão, as outras pessoas – pois eles e elas são os primeiros interlocutores (não ouvintes) de nossas pesquisas. E isso se estende à colaboração em comum com os e as pares.

Mas nossa argumentação não tem como foco as contribuições das diversas pessoas (e seres) que atravessam nossa existência, numa contribuição direta ou indireta para a formulação, amadurecimento ou crítica do trabalho. Ela diz respeito ao trabalho físico, ao dispêndio em conjunto de força, músculo, cérebro, neurônios; e ao o que nos impede de reconhecer que trabalhos a mais de duas mãos são possíveis. Por que se apenas o momento solitário de auto regalo intelectual pode ser considerado um trabalho filosófico genuíno e digno de crédito junto à comunidade, como explicar os trabalhos de Marx e Engels, Adorno e Horkheimer, Deleuze e Guattari, Viveiros de Castro e Danowski, Negri e Hardt, Foucault e Arlette Farge, Davis e Gonzáles, Descartes e Elisabeth da Boêmia, Leibniz e Lady Masham (seja escrevendo juntas e juntos ou funcionando como pares conceituais ou estrelas gêmeas, que gravitam atraídas entre si) – e tantas outras parcerias que não conseguimos lembrar ou não colocaremos para o texto não ficar maior que o limite da Coluna Anpof? Acaso suas obras não seriam “boa filosofia”? Mesmo nestes casos, também vemos muitas vezes em operação o apagamento do Múltiplo em torno do Uno, do autor ou autora único. Do “Eu escrevo, logo quem pensa sou eu”.

Entendam: não estamos fazendo pouco ou duvidando do vigor do trabalho individual de cada um de nós nesta comunidade (aqui mesmo, neste texto a quatro mãos, cada um de nós autores tem seus próprios e “solitários” interesses, estudos, publicações, etc.). Modos de filosofar IMENSOS e MONUMENTAIS são assinados por uma única autora ou autor na história de nosso trabalho. Mas sua produção, até mesmo pela complexidade humana, sempre envolve as e os demais de alguma maneira. Hegelianamente, somente é possível a autoconsciência a partir da intersubjetividade. Ou, para Bob Dylan, “há multidões dentro de mim”.

É das trocas de experiência, de pensamento e de vivências que a boa filosofia, seja feita a uma, duas, quatro, seis ou inúmeras mãos, surge. Este texto é apenas uma parca manifestação (ou manifesto) para que reflitamos se a obsessão pela solidão filosófica, presente nos critérios de avaliação dos programas de pós e de graduações e inculcada em nossa formação ao ponto de vermos a colaboração filosófica como sinal de fraqueza, não serve no final apenas para um gozo solipsista. Precisamos de muitas e muitos pensando, ao mesmo tempo e agora, juntos e separados.