Marx e sua prática criativa: o estilo literário em "Sobre o Suicídio"

Jordânia Araújo

Professora de Filosofia (IFBA) e doutoranda em Filosofia (UFBA); Integrante do GT Filosofia e Gênero

08/11/2022 • Coluna ANPOF

Marx publicou um artigo na revista Gesellschaftsspiegel , pouco conhecido, intitulado originalmente como Peuchet: sobre o suicídio. Este artigo traz à cena uma contribuição do filósofo revolucionário no que diz respeito à problemática do suicídio. O estilo literário desse ensaio é considerado singular em relação ao conjunto da obra de Marx, já que foi construído a partir de memórias de um arquivista policial da Restauração. 

O texto Sobre o suicídio se destaca pela excepcionalidade, por uma possível qualidade incomum com o conjunto de sua obra. Mas será, com efeito, um texto desgarrado do conjunto da obra e do pensamento do filósofo renano? A excepcionalidade do texto de Marx, que não encontra coautoria o nome de Engels, seu dileto amigo de toda uma vida e obra, está apoiada nas memórias/narrativas de Peuchet. Marx o descreve, na “introdução” ao artigo como aquele que se enveredou por caminhos diversos, inclusive perpassou pelo campo literário, ou seja, Peuchet “passou das belas-letras para a medicina, da medicina para a jurisprudência, da jurisprudência para a administração e para a especialidade policial”. (MARX, 2006, p. 23).  

Importa lembrar que Marx era um “devorador de toda espécie de arte literária, da prosa agustana às baladas industriais” (EAGLETON, 1976, p. 14). Com efeito, Marx era sensível às manifestações artísticas e literárias e dedicava, em certa medida, uma atenção significativa aos estilos literários, começando pelo seu próprio.  

Muito antes da publicação do ensaio que trata sobre o suicídio, a literatura já pertencia ao mundo de Marx, já que “a arte e a literatura faziam parte do próprio ar que Marx respirava, como intelectual alemão fantasticamente culto dentro da grande tradição clássica da sua época.” (EAGLETON, 1976, p. 13). Não se pode negar o quanto a literatura atravessou a vida e o pensamento do filósofo, tampouco é possível distanciar as remissões à literatura que Marx fará em suas distintas obras. Portanto, não se trata de uma característica isolada de um escrito ou outro. Pelo contrário, é perceptível a constante presença da literatura em sua vida e desse formato estilístico ao longo de seus escritos. 

A literatura localiza o que há de mais tangível nas relações humanas. Ratificar esta característica significa dizer que ela expõe de forma perceptível conflitos, tragédias, vicissitudes e contingências humanos no âmbito concreto. Ademais, não só o mundo objetivo é figurado por ela em sua proeminência, as questões subjetivas também ganham destaque no terreno da literatura. E nada melhor do que a literatura para impulsionar uma crítica à sociedade moderna e adentrar as reflexões de ordem teórica, trazendo para a vida real o que estava pairando na abstração dos ideólogos. 

O artigo Sobre o suicídio é um caso de adaptação efetuada por Marx a partir das memórias de Jacques Peuchet e, ao que tudo indica, tinha como finalidade provocar efeitos reflexivos no público por intermédio de uma descrição envolvente das narrativas particulares. De acordo com Michael Lövy o ensaio é “a peça composta de passagens traduzidas para o alemão de Du suicide et des ses causes, um capítulo das memórias de Jacques Peuchet.” (LÖWY, 2006, p. 13). Além disso, ainda segundo Lövy nesse escrito há alguns aspectos que apresentam diferenças no que diz respeito ao conjunto da obra de Marx, uma vez que “Não se trata de uma peça escrita pelo próprio Marx, mas composta, em grande parte, de excertos, traduzidos ao alemão, de outro autor. Marx tinha o hábito de preencher seus cadernos de notas com excertos desse tipo, mas jamais os publicou, e menos ainda sob sua própria assinatura.” (LÖWY, 2006, p. 13). 

O exame feito no artigo Sobre o suicídio (1846) está apoiado em um estilo criativo, o que resulta em uma escrita que apresenta a realidade de forma sedutora, relacionando as experiências particulares de cada personagem nos contextos sociais em que estão inseridas. Isto permite um entendimento amplo e ao mesmo tempo singular do fenômeno do suicídio. Caberia acrescentar que Marx elabora um instrumental teórico “urdido com fios literários concretos”, que não se limitaria aos domínios de um campo específico de conhecimento (SILVA, 2012, p. 11).  

Além de apresentar seus comentários/modificações acerca do suicídio através das narrativas de Peuchet, o filósofo também destaca, na introdução de seu texto, a relevância de um exame baseado no formato literário. Assim, ele elucida que é preciso que a crítica das condições sociais seja feita e evidenciada por “escritores de todas as esferas da literatura, sobretudo dos gêneros do romance e das memórias” (MARX, 2006, p. 21). O aspecto literário e a qualidade dos escritos de Peuchet parecem ter sido elementos que suscitaram interesse em Marx e, por isso, Michael Löwy (2006, p.15) pontua que as memórias do arquivista “apresentariam uma variante de qualidade literária: basta lembrar que um dos seus episódios inspirou O conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas.”  

O artigo é considerado como um texto curioso pela preocupação de Marx com a temática do suicídio, mas, sobretudo, também pelo formato da sua escrita. No entanto, Marx que foi um leitor voraz, escreveu a maioria de suas obras citando os grandes clássicos da literatura. Além disso, é importante lançar luz às trezentas páginas (aproximadamente) de textos literários que o próprio Marx escreveu, e que apenas parte desses escritos foi preservado (HEINRICH, 2018, p. 212).  

Portanto, o recurso ao estilo literário não parece ser um aspecto curioso do ensaio Sobre o suicídio, tampouco da obra do filósofo revolucionário. Pelo contrário, se apresenta como uma vertente característica do pensamento de Marx. O manuscrito é um material que resgata elementos heurísticos do autor que são frequentemente esquecidos, ou até mesmo anulados. Sem embargo, a publicação mostra ligações salutares com os demais escritos de Marx, e o estilo literário se apresenta como um desses aspectos. Ainda que o tema do suicídio não tenha aparecido de forma recorrente em suas preocupações investigativas, a finalidade de observar e examinar a condição humana nas relações concretas o acompanhará até o túmulo. 

O escrito Sobre o suicídio também ganha relevância por apresentar um debate sobre as relações assimétricas entre os gêneros. Esta discussão é característica em todo o artigo, cuja atenção dedicada à temática – tão atual e cara aos nossos dias – aparece com maior aprofundamento neste ensaio do que em outras obras do jovem Marx. Para Michael Löwy “A principal questão social discutida em relação ao suicídio é a opressão das mulheres nas sociedades modernas.” (LÖWY, 2006, p. 13). Sendo assim, “esse texto de Marx é uma das mais poderosas peças de acusação à opressão contra as mulheres já publicadas.” (LÖWY, 2006, p. 13) 

O ensaio Sobre o suicídio (2006) traz à tona quatro casos de autoextermínio, entre os quais três contam com o protagonismo feminino. No primeiro caso investigado por Marx, tem-se a descrição de uma jovem pertencente a uma família de alfaiates que passa uma noite com seu noivo às vésperas do casamento. Ao chegar em casa, ela é constrangida por uma cena de reprovação e humilhação. Em seguida, a jovem se suicida no rio Sena.  

O segundo caso exibe uma mulher, cujo confinamento provocado pelo marido desencadeia sucessivas circunstâncias opressivas. Ele que – tem seu rosto desfigurado por uma doença incurável – se sente apossado de ciúmes, levando a jovem a um sofrimento constante por estar numa relação abusiva. Devido a isso, ela se suicida.  

Em seguida, Marx comenta o caso de uma jovem grávida que tenta realizar um aborto, pois a sua condição implicaria em um conflito moral avassalador. Mas ela não consegue realizá-lo e compreende o suicídio como um recurso e uma força capaz de livrá-la das opressões que a circunscreviam na vida privada.  

Por fim, tem-se um quarto caso, um pouco diferente dos três primeiros. Neste, Marx examina o relato de um homem desempregado que não aceitava a ideia de ser sustentado pela esposa e filhos. Ele se sentia ferido moralmente sob o crivo da imposição patriarcal de ser provedor da família. Sendo assim, vê-se mergulhado em profundo desânimo e sob a presença de uma falta de mudança de perspectiva. Desse modo, ele encontra no suicídio uma forma de diluir seus tormentos e de acabar com sua angústia.  

Portanto, a temática do suicídio em Marx é, acima de tudo, um convite para revisitar as reflexões do filósofo renano sobre um tema polêmico e atual e também para pensar o quanto o estilo literário do autor pode favorecer uma possível penetração nas relações concretas e contraditórias que circundam a existência humana. Trata-se, então, de uma oportunidade de conceber um Marx preocupado em apresentar o tema do suicídio através de uma estilística singular, mostrando que o suicídio pode ser projetado no ser humano e como ele vai muito além do ato corporal, ou seja, a atividade suicida reflete o próprio comportamento que antecede ao fenômeno em si, na ideação, planejamento, fantasia e nas circunstâncias reais.

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