Meritocracia: uma discussão sem sentido

Thaís de Andrade Fragas

Mestranda em Filosofia (UFBA)

05/05/2023 • Coluna ANPOF

Com certa frequência encontramos entre as colunas de jornais e as redes notícias que, supostamente, demonstram que é possível “vencer” as diversas disparidades sociais tão somente através do esforço pessoal. Nessas situações, verifica-se um movimento das elites de buscar uma exceção à regra para imputar ao oprimido a responsabilidade por sua própria situação. Contrários a este posicionamento, muitos são aqueles que acreditam, verdadeiramente, que as conquistas de suas vidas se devem, exclusivamente, aos seus respectivos empenhos e que “os que ficaram para trás merecem seu destino da mesma forma”, como bem explica Michel Sandel, autor do livro A tirania do Mérito. Sendo assim, proponho, nesta oportunidade, que pensemos o conceito de meritocracia a partir da filosofia de Beauvoir. 

De pronto, faz-se necessário esclarecer que a filósofa compreende que as possibilidades de realização individual dependem, por exemplo, da situação econômica e social em que nos encontramos. Ora, se assumimos, como Beauvoir faz, que todos nascem igualmente livres e sem pré-definições, podemos nos perguntar: o que faz com que um homem branco norte-americano tenha uma melhor condição de vida do que uma mulher negra latino-americana, ou mesmo um homem latino americano? Não precisamos ir tão longe, atenhamo-nos à área da filosofia: em 2020, Valéria Wilke publicou um artigo, na Problemata: R. Intern. Fil., no qual investigava a evolução da formação de filósofas graduadas entre 2000 e 2016, no qual questiona como podemos explicar que o número de concluintes do sexo masculino, em 2016, tenha sido mais do que o dobro maior do que o quantitativo de concluintes do sexo feminino no ensino presencial? Ora, se o número encontrado nessa pesquisa já é brutal, quando nos debruçamos sobre mestrado e doutorado, e questionamos, além de gênero, raça e condição social, então não temos dúvida que há, ainda, muito trabalho a ser feito. 

Mas será mesmo que somos nós, as minorias, que não estamos nos esforçando o suficiente? Não parece ser o caso. À luz da filosofia de Beauvoir, o que proporciona o desenvolvimento diferente de cada um dos sujeitos está nas oportunidades que lhes são disponibilizadas. Da mesma forma que a criança nascida com o sexo masculino pode se desenvolver melhor porque lhe é permitido o uso do seu corpo como instrumento de descoberta e dominação dos dados do mundo, aqueles sujeitos que nascem em condições socioeconomicas mais favoráveis, tem um espectro mais amplo de possibilidade de ser e, assim, podem galgar condições de vida ainda mais avantajadas. 

Por essa razão que, partindo do pensamento de Beauvoir, a ideia de meritocracia não é somente contraditória, mas é vazia de sentido. Conforme explica Markovits, no livro a cilada da meritocracia, a expressão, cunhada após a Segunda Guerra, tinha como interesse inicial combater as estruturas da sociedade de benefícios na qual as pessoas alcançam certas posições em razão do seu status social, ou seja, da família, dos títulos e do dinheiro que possuíam, mas se tornou, ao longo do tempo, um “mecanismo para a concentração e a transmissão dinástica da riqueza e dos privilégios”. Em muito, a sua tese assiste razão, contudo, se olharmos por lentes beauvorianas, o problema vai além. 

A ideia de meritocracia demanda que a ascensão ou recompensa social se dê através de conquista, do esforço do sujeito, e não por simples herança, de modo que, mesmo estando em situações existenciais diferentes, as pessoas poderiam, por talento, ambição e esforço, transformá-las em contextos mais favoráveis. A hipótese é interessante, mas ignora questões externas à vontade do sujeito e que independem dele, principalmente quando pensamos em gênero e raça. Acreditar que, em uma sociedade racista e machista, uma mulher negra tem a chance de alcançar uma situação existencial igual a do homem branco, bastando, para isso, que ela se esforce, é ilusório. Não se trata de falta de capacidade da mulher para galgar uma melhor condição econômica e social, mas sim da dificuldade e, muitas vezes, impossibilidade, de ultrapassar as barreiras que os outros, compondo os valores do corpo social, impõem contra ela. 

Desse modo, quando falamos em situação, ou a situação do sujeito universal materialmente localizado, o que se busca compreender é o meio real, material, no qual o sujeito tem de manifestar, ou de afirmar, a sua existência. Reiteramos: uma pessoa que nasce na Europa, em um país rico e estruturado como Alemanha, terá as mesmas possibilidades que uma pessoa que nasceu na América Latina, no Brasil, sendo uma pessoa de baixa renda e negra? É evidente que não. Portanto, as possibilidades, ou seja, os caminhos que esses dois sujeitos podem traçar dependem das escolhas de cada um para construir e afirmar a sua subjetividades, mas elas são diferentes porque o meio no qual vivem apresenta diferentes oportunidades de ser. Assim, se nos propomos a mudar o cenário em que vivemos, primeiro precisamos repensar as oportunidades reais que oferecemos ao outro.