Modernidade abigarrada | Especial XX Anpof

Susana de Castro

Professora do Departamento de Filosofia e do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof.

Príscila Teixeira de Carvalho

Doutora em Filosofia pela UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero.

19/08/2024 • Coluna ANPOF

Se, por um lado, a modernidade histórica foi um período de escravidão para os povos indígenas e africanos na América, foi também um período de resistência e conflitos, neste sentido um espaço para o desenvolvimento de estratégias envolventes, contra-hegemômicas e projetos de modernidade indígenas (CUSICANQUI, 2021, p. 89) e quilombolas (GONZALEZ, 2020, p.51).  Com o intuito de não reduzir o feminismo a um movimento da modernidade emancipada, própria do patriarcado capitalista eurocentrado, precisamos reconhecermo-nos na resistência das mulheres contra a hegemonia patriarcal que foi construída durante o colonialismo tanto quanto a hegemonia racial branca (GARGALLO, 2014, 38).

Do ponto de vista da hegemonia racial branca, hoje, na América Latina assistimos ao desmoronar da ideologia mestiça embranquecida que constitui o fundamento ideológico da formação dos Estados pós-coloniais (SEGATO, 2007, p.19). No caso do Brasil, o mito da democracia racial foi sendo nas últimas décadas demolido graças principalmente à luta política do movimento negro. Governos progressistas criaram por força dos movimentos políticos identitários no Brasil o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério dos Povos Indígenas, e uma política de ações afirmativas. Nos outros países da América Latina, de maioria indígena, como Bolívia e Equador, assiste-se à visibilização das pautas indígenas com a criação do estado plurinacional na Bolívia e a criação da Universidad Intercultural de las Nacionalidades y Pueblos Indígenas Amawtay Wasi, no Equador. Mas as políticas públicas igualitárias não estão sendo suficiente para diminuir o fosso da desigualdade social, nem o genocídio da população negra e indígena. Como afirma a antropóloga Rita Segato, o Estado quer apresentar a posteriori o antídoto para o problema que ele mesmo gerou. Neste sentido, o processo de descolonização ainda não atingiu as estruturas do Estado e suas políticas econômicas neoliberais e antipopulares.

É dentro deste contexto emancipatório que queremos discutir os desafios da luta dos povos indígenas contra os projetos transnacionais de extrativismo dos recursos naturais pelas empresas mineradoras. Os projetos de governos de esquerda no nosso continente não foram capazes de barrar a ideologia do universalismo do mercado global de tal modo que continuam subordinando o desenvolvimento social ao ideal neoliberal de práticas hipercapitalistas e individualistas. Projetos comunitários de autogoverno são combatidos porque ferem os interesses privatistas e extrativistas das grandes mineradoras. Precisamos repensar o que para nós significa modernidade, uma vez que a modernidade do hiperconsumo está nos levando à destruição do planeta.

Nas raízes desse descompasso encontramos nosso colonialismo interno. Este nos levou e ainda leva a apoiar uma ontoepistemologia europeia, segundo a qual o ser humano seguiria uma marcha evolutiva na qual seu exemplar mais desenvolvido seria o europeu, mito criado no Iluminismo. De acordo com este mito, o europeu abandonou a visão de mundo moldada pelo pensamento mítico e adotou a visão de mundo evoluída determinada pelo pensamento científico tecnológico, por isso devem nos servir de modelo. Ao descolonizarmos nosso pensamento, nos damos conta, porém, de que a herança afroameríndia nos mostra que outras modernidades são possíveis, inclusive uma modernidade que adote uma filosofia do tipo do perspectivismo ameríndio, segundo a qual todos os seres animados possuem subjetividade, não só o ser humano. Não podemos prescindir dos saberes dos povos que durante séculos habitaram esse território. Isso não significa voltar ao passado como se houvesse um passado intacto a nos esperar. Para o mundo indígena a história não é concebida linearmente, o passado-futuro estão contidos no presente. Por essa razão, Silvia Cusicanqui rejeita a noção de ‘povos originários’, já que ‘origem’ nos remete a um passado estático e arcaico. Somos populações abigarradas (ch’ixi), isto é, populações nas quais a mistura étnica (europeu, indígena, africano), se confundem na percepção, sem nunca se misturar por completo. Trata-se de uma etnicidade que comporta a lógica do terceiro incluído. Uma pessoa abigarrada é branca e negra ao mesmo tempo, indígena e europeia, mas sem nunca se misturar completamente. Cada etnia preservando seus antepassados. Para a autora, a aposta índia de modernidade é centrada em uma noção de cidadania que não busca a homogeneidade, mas a diferença. A modernidade que emerge desses acordos abigarrados é, no caso da Bolívia, uma hegemonia índia construída ao se realizar nos espaços criados pela cultura invasora, o mercado, o Estado, o sindicato. Essa hegemonia abigarrada funda-se em um projeto de “modernidade mais orgânico que a modernidade de falsa elites, caricaturas do Ocidente que vivem da ventriloquia de conceitos e teorias, de correntes acadêmicas e visões de mundo copiadas do norte ou tributárias dos centros de poder hegemônicos”. (CUSICANQUI, 2021, p. 115-116)

Mulheres de diversos segmentos, mas sobretudo as indígenas, procuram resistir já que a terra, além de ser um espaço físico, é o espaço onde tudo faz sentido, configurando-se como “território” repleto de significados e sentidos. Em certo sentido, enfrentamentos e resistências se constituem como o solo dos territórios. Por meio de alianças e trocas de aprendizados, as latino-americanas e caribenhas apontam caminhos nos quais ferramentas sociais e analíticas se fundem e se potencializam. Contra a violência patriarcal, o latifúndio e a ordem estatal historicamente refém do Capital, mulheres indígenas propõem um resgate dos saberes ancestrais de cura, mas também de resistência cada vez mais politicamente significante.


Referências

Cusicanqui, Silvia Rivera. Ch’ixinakax Vtxiwa, uam reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. São Paulo: n-1 edições, 2021.

Gargalho, Francesca. Feminismo desde Abya Yala – ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en Nuestra América. Cidade do México, 2014.

Gonzalez, Lélia. “A mulher negra na sociedade brasileira”. In: Gonzalez, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

Segato, Rita Laura. La nación y sus otros. Raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo libros, 2007.


O minicurso "Feminismos Decoloniais e Comunitários: resistência anticapitalista ao extrativismo neocolonial" será ministrado pela Profa. Dra. Susana de Castro (UFRJ) e pela Dra. Príscila Teixeira de Carvalho (UFRJ), integrando a programação do GT de Filosofia e Gênero.

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Carla Rodrigues

Professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e pesquisadora Faperj
Integrante do GT Filosofia e Gênero

01/11/2017 • Coluna ANPOF