Mulheres nortistas e nordestinas na Filosofia no Brasil

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

Profa. Dra. Filosofia (UFAM)

14/03/2022 • Coluna ANPOF

-Por que a Filosofia é bem vinda ao norte e nordeste do Brasil? 

Nasci e cresci no norte do Brasil que à época sonhava com modelos econômicos desenvolvimentistas, brincávamos na rua sob os olhares dos nossos pais e ouvíamos vários epítetos em relação ao futuro da pátria-mátria, chamada de ‘país do futuro’ e de ‘gigante adormecido’. Passadas algumas décadas, apesar de todos os avanços estruturais conquistados, no balanço das promessas, percebo que as mudanças na qualidade de vida da população  não foram universalizadas e a lógica do mando e da subserviência apenas trocou de turno e de atores.

 Diante das dimensões continentais brasileiras, parece difícil pensar num plano de integração e unidade nacional capaz de abarcar todas as diferenças regionais. O desafio da elaboração de uma pertença cultural capaz de unificar o grande mosaico brasileiro étnico-cultural parece ser um dos maiores entraves na constituição desse Estado nação. A miséria, talvez seja um dos elementos comuns em solo ingrato, e dentro dela, ainda é possível observar os graus sobre os quais ela  atinge e se distribui entre a população brasileira. Lamentavelmente, ela encarna classes, cores, gêneros e lugares, dentro e fora das metrópoles. 

A partir de um exame histórico é perceptível observar o nível de bem estar social e de integração nacional alcançado pela região norte em relação ao resto da federação, afirmo com veemência que é quase nenhum, se pensar que já somamos duas décadas a mais do 2º milênio na história ocidental e a realidade social ainda se caracteriza pela perversa falta de oportunidade para todos.   Segundo a ótica liberal, vivemos sob a égide do atraso, a tal ponto de ter se cristalizado no imaginário do senso comum brasileiro representações equivocadas, caricaturas do cotidiano e designações que visam desmerecer o outro. Como são nomeados os ‘paraíbas’ e os ‘baianos’.   Dito de forma mais simples, ainda somos vistos com as mesmas lentes do exotismo que serviram de chave de leitura dos primeiros colonizadores.

Esse é o primeiro preconceito que nos atinge, no entanto, essa opinião desfavorecedora “dos que moram longe”, esconde os mesmos problemas do racismo estrutural brasileiro.  Nesse cenário nefasto, de reprodução das desigualdades sociais, tudo se amplifica quando entram em cena condições de gênero e de cor, colocando, por exemplo, as mulheres no degrau mais ínfimo das condições de exploração.  No entanto, curiosamente esse perfil da mulher pobre, preta e periférica revela a identidade de grande parte das mulheres que são chefes de família no Brasil. Por tudo isso, e respondendo ao questionamento inicial, digo que a filosofia é bem vinda fora do eixo sul-sudeste brasileiro.  

Acolho com alegria, o interesse cada vez mais crescente da inclusão de pautas  minoritárias nas discussões filosóficas no Brasil. Acolho a pluralidade e a defesa dos historicamente marginalizados. Admiro minhas colegas e todas as mulheres dispostas a enfrentar jornadas duplas de trabalho, vulnerabilizadas por várias formas de assédio, dispostas a receber salários menores, ocultadas por preconceitos e resilientes na luta diária pela conquista dos seus lugares de fala. Saúdo a coragem das nossas predecessoras, sobretudo, nessa seara das letras, das artes e do pensamento crítico pelas suas posições audaciosas. Admiro Hanah Arendt, quando em seu desassombro no diz que: “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança”. Sim, Hannah, o fantasma do totalitarismo continua nos assombrando e a violência continua sendo um grande marcador passional da humanidade, afetando os mais frágeis, indo desde as manifestações bélicas, até aquele olhar condenatório sobre nossos corpos.

Certa vez, tive a oportunidade de participar como membro de uma banca de Defesa Pública de Dissertação na área da Sociologia que versava sobre o monitoramento da cadeia protetiva em torno das mulheres ameaçadas de feminícidio na cidade de Manaus, chocou-me os dados da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas que mostravam em detalhes o mapeamento do ciclo de reprodução dessa violência, indicando as classes sociais, idades, cores, as regiões, os bairros e até os dias da semana no quais incidiam um movimento maior de mulheres que registravam queixas contra seus companheiros nas delegacias.    

A Filosofia no norte é bem vinda em uma cidade que sente vergonha do seu passado ancestral e que por ignorância reproduz toda a sorte de preconceitos contra os menos favorecidos seguindo os mesmos critérios de classe, cor e de gênero. Nessa oportunidade, e pela exposição de motivos, quero render homenagens a uma personagem literária, cuja condição que ocupa e o labor exercido, reflete a imagem do aproveitamento abusivo vivido diuturnamente pelas mulheres mais pobres. Apesar do contexto dramático da narrativa possuir feições regionais, ele também se atualiza pela universalidade das condições postas pelo regime escravocrata herdado do passado colonial brasileiro.  

O romance “Dois Irmãos” (2000) de Milton Hatoum, é ambientado na cidade de Manaus do final dos anos 1940 e narra a vida de uma família de comerciantes libaneses, na qual Domingas é uma indígena que desempenha os serviços domésticos da casa.  Segundo o narrador, Nael, filho de Domingas, ao defini-la nos diz que é uma mulher que não fez escolhas. Em sua infância órfã ela foi levada ao internato das freiras e daí foi dada de “presente” à família, ainda jovenzinha. (...) “Uma menina mirrada que chegou com a cabeça cheia de piolhos e rezas cristãs”.  Acolhida e desprezada ao mesmo tempo, torna seu corpo refém daqueles de quem ela cuida de forma silenciosa e cujo rosto se torna invisível no limite da desterritorialização cultural do quartinho que ocupava nos fundos da casa com o filho bastardo, fruto do estrupo doméstico por parte de um dos filhos dos patrões. Sua existência se passa assim, marcada pelas relações de diferença e de identidade vividas nessa casa, pelo servilismo, pela sujeição e pelo seu apagamento. Apenas Nael, consegue restituir no relato e, em parte, a dignidade existencial de Domingas que faleceu mirrada da mesma forma que chegou à casa dos patrões, vinda do orfanato.                           

Por tudo isso, a Filosofia é bem vinda!     

A Filosofia enquanto instrumento emancipador da ordem coletiva a partir das ações dos indivíduos, enquanto problematizadora das questões existenciais e mundanas, de forma crítica, ética e racional, é bem vinda em qualquer lugar. A Filosofia enquanto produtora de diálogos, conceitos, discursos, narrativas, argumentações, é bem vinda à conjuntura atual de meias-verdades, de notícias falsas e da disseminação do ódio.

A Filosofia que aponta para a felicidade como o telos humano, produto da conquista moderada das paixões; juntamente com aquela outra que ama as coisas simples e enxerga que as refeições com os amigos e a fuga da dor, são rotas de escape das solidões nas grandes cidades.  Recomendo a filosofia que nos ensina que não enxergamos o mundo como ele é, mas como nós somos, valorizando os acontecimentos a partir dos nossos posicionamentos perante a vida e às condições objetivas de existência que nos foram dadas, lembrando que tudo isso pode ser feito de forma metódica e acompanhada do exercício da dúvida e da revisão.

Amo aquela filosofia que abraça as incertezas e aplica a probabilidade como princípio explicativo das profundidades do universo e se junta aos que souberam distinguir as quantidades e qualidades das coisas e reconheceram que a realidade é muito mais complexa do que essas propriedades.  Estou certa de que a liberdade e a autonomia do pensar podem ser alcançadas com a filosofia que reconhece que o significado da palavra se dá pelo seu uso e o limite da linguagem; e o limite é o mundo de cada vivente. Reverencio o mestre da pedagogia do oprimido que vem sofrendo ataques da parte dos que cultivam a cultura do cancelamento nos meios digitais e esquecem que as verdades plantadas por ele eternizaram-se na história do pensamento e que, suas sugestões metodológicas em relação à prática docente se fazem mais do que necessárias e urgentes.

A palavra ensinada deve ser produtora de sentido e antídoto para a ignorância e a ingenuidade, nos diz ele. Almejo a filosofia que nega com veemência que possa haver miséria em meio à riqueza construída a partir da legitimação de meios violentos e ilícitos de exploração da mão de obra humana. Essa filosofia, a passos lentos, começa a perceber que o planeta terra enquanto organismo vivo tem sido o maior espoliado e que estamos deveras atrasados na tarefa de inserção das pautas de preservação ambiental e sustentabilidade nos nossos currículos escolares, sem a ilusão da espera que essas iniciativas partam das grandes conferências climáticas, e onde cada indivíduo possa imaginar que o seu oikos é uma extensão da nossa taba. 

Torço pelo sucesso da filosofia que atribui à elite do atraso a causa das condições aviltantes de existência na nossa sociedade da ralé que não consegue nem perceber as desigualdades profundas como tais. Sonho, que no jogo dialético entre o senhor e o escravo seja desnaturalizado o ódio estéril em relação aos pobres e a filosofia possa contribuir para a cultura da paz.           

       - Viva Domingas! Viva as mulheres! Viva a Filosofia! 

BATISTA, Valéria. Políticas Públicas para Mulheres: o processo político de efetivação da Lei Maria da Penha. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas. Manaus, 2018. 

TEMPSKI, Patrícia. Diálogo Filosófico sobre Qualidade de Vida. Cadernos ABEM, vol. 6, outubro 2010. https://www.fm.usp.br

MARQUES, Ângela. Um rosto para Domingas: hospitalidade e reconhecimento na criação narrativa de uma identidade feminina em Dois Irmãos de Milton Hatoum. IPOTESI, Juiz de Fora, vol.21, n. 1 p.46-63, jan/jun, 2017.