O contrato sócio-racial brasileiro (em memória de Charles W. Mills)

Manoel Pereira Lima Junior

Professor da rede estadual do estado da Bahia e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação da UFBA. Membro do GT Filosofia e Raça

12/05/2022 • Coluna ANPOF

Se o estado de natureza a partir do qual os contratualistas europeus fundaram a sociedade civil foi hipotético e fictício na Europa, no Brasil, eles tornaram esse estado hipotético algo factual. O contrato social luso-brasileiro tem um documento histórico que narra sob quais condições o contrato foi formalizado. Assim escreveu Pero Vaz de Caminha a “El rei”: 

Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento¹ desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer (...) Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes que comemos (...) E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi².

Esse fragmento da carta remete àquilo que Mills (e que já mencionei acima) destacou sobre contrato social: é um contrato de exploração. Pero Vaz de Caminha diz, literalmente, que “a nova terra” pertence ao rei. Esse documento histórico mostra como há completa desconsideração pelos povos que aqui habitavam. Não se reconhece que esses povos são os donos da terra, nem reconhece que ali havia uma sociedade e uma forma de governo. Reduzem os diferentes povos a um adjetivo comum: índios. 

O historiador Luís Henrique Dias Tavares, no livro História da Bahia, diz que “A palavra índio originou-se da palavra Índia. Acrescentou-se a esse erro outro maior: a denominação índio para todos os povos que os europeus foram encontrando nas terras que seriam as Américas do Norte, Central e do Sul. Portanto, também o Brasil.” (2008, pg. 16). Começa-se, assim, a um só tempo, os contratos racial e epistêmico luso-brasileiros. A carta de Caminha coloca os nativos da terra na condição de pré-humanos – como eu havia mencionado acima. Tudo que se narrou na carta sobre os povos nativos foi imaginado pelo português. Nada foi dito pelos nativos. Os povos nativos foram tomados como incapazes de articular linguagem compreensível e conhecimento. Isso os colocaria numa condição pré-humana. E se é assim, estão mais próximos dos animais do que dos seres humanos. Logo, pode-se explorar seus trabalhos e suas terras sem culpa, porque essa espécie está do lado de fora do contrato social. Mais tarde esse modelo contratualista seria aplicado aos negros e às negras trazidos de África para o Brasil. Pode-se notar, aqui, que a injustiça epistêmica é um dos pilares sobre os quais se sustenta o contrato social, pois, a percepção, a nomeação e as categorias empregadas para descrever o “novo mundo” ignoram por completo as línguas faladas pelos diferentes povos de África e da “nova terra” – a linguagem, com seus conceitos e definições (e também as diferentes línguas), dá forma à experiência. Ao impor a língua do dominador ao dominado, perde-se muito da experiência vivida de um povo.

O contrato social foi fundado sob o identitarismo branco. Hoje, fala-se muito de identitarismo, mas essa foi uma invenção branca para separar, segregar e explorar os não-brancos. No caso brasileiro, o triplo contrato (social, racial e epistêmico) garantiu o apagamento epistêmico da herança linguística de nativos brasileiros e povos africanos. Com isso empobreceu nossas experiências e trocas epistêmicas. A etnolinguista Yeda Pessoa de Castro afirma que 

Se as vozes dos quatro milhões de negro-africanos que foram traslados para o Brasil ao longo de mais de três séculos consecutivos não tivessem sido abafadas em nossa História, por descaso ou preconceito acadêmico, hoje saberíamos que eles, apesar de escravizados, não quedaram mudos, falavam línguas articuladamente humanas e participaram da configuração do português brasileiro não somente com palavras que foram ditas a esmo e ‘aceitas como empréstimos pelo português’, na concepção vigente, mas também nas diferenças que afastaram o português do Brasil do de Portugal (2011, pg. 2).

Essa passagem do texto de Yeda Pessoa de Castro mostra bem o prejuízo epistêmico causado aos povos africanos – o mesmo pode-se dizer em relação aos povos nativos do Brasil. O preconceito racial-epistêmico não somente impediu de se reconhecerem as contribuições desses povos para a formação da língua brasileira, impediu também de se reconhecerem suas epistemologias. O não reconhecimento da inteligibilidade e da competência linguístico-cognitiva gerou um dano epistêmico profundo, que persegue as gerações desses povos.

Se olharmos mais atentamente perceberemos que a marginalização epistêmica faz parte do projeto de poder e dominação da coroa portuguesa. O extermínio não somente dos corpos de nativos e africanos, mas também o extermínio das línguas faladas por esses povos foi uma forma de exercício do poder. Quantas sublevações e insurgências foram impedidas pelo simples fato de impedir a circulação de ideias em línguas não faladas pelos portugueses? Provavelmente, muitas. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, afirma que 

Os entraves que ao desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil opunha a administração lusitana faziam parte do firme propósito de impedir a circulação de ideias novas que pudessem pôr em risco a estabilidade de seu domínio. E é significativo que, apesar de sua maior liberdade na admissão de estrangeiros capazes de contribuir com seu trabalho para a valorização da colônia, tolerassem muito menos aqueles cujo convívio pudesse excitar entre os moradores do Brasil pensamentos de insubordinação e rebeldia. (2014, pg. 145)

A fala de Sérgio Buarque deixa transparecer aquilo que Mills disse com clareza: a autoridade epistêmica nas colônias é definida pelo branco. O colonizador decide, unilateralmente, quais ideias e quais línguas podem circular e formar o pensamento médio brasileiro, de modo que armazenar e compartilhar informação e conhecimento a partir de fontes confiáveis, obrigatoriamente, torna-se um padrão branco. Isso tem a ver com o que Edward Craig descreveu no livro Conhecimento e Estado de natureza (está em inglês): o termo “conhecimento” surge a partir da prática de trocas de informação, estabelecendo “fontes confiáveis”. E Bernard Williams, pensando sobre a genealogia dos conceitos de “verdade” e “veracidade”, afirma que existem virtudes epistêmicas básicas (acurácia e sinceridade) que são aprendidas na comunidade linguística. 

Desse modo, obstaculizar a “atividade linguística” de um grupo étnico é também obstaculizar sua capacidade de organização político-epistêmica. Uma das estratégias empregadas pelo português era misturar povos de nações diferentes, de modo que dificultasse a comunicação e a troca de ideias e informação. Nesse sentido, se Williams estiver certo, então, o contrato social luso-brasileiro (comparativamente ao estado de natureza descrito por Williams) não permitiu o desenvolvimento das virtudes básicas da verdade: acurácia e sinceridade. Porque estimulou o engano e a prática da insinceridade. De modo que a atividade básica de trocar informação, transmiti-la e armazená-la estava comprometida enquanto prática social por não haver fontes seguras. Isso parece uma prova inconteste de que o contrato social foi sustentado pelo contrato racial-epistêmico subsidiário, pois, sem trocas e armazenamento de informações a partir de fontes confiáveis seria difícil organizar formas de resistência e de insurgência contra o opressor.

Sérgio Buarque nos diz ainda que a língua principal falada em São Paulo no século 17 era o tupi (2014). Os jesuítas da época, por causa do processo de catequização, tiveram que aprender o tupi, caso contrário não teriam êxito. Mesmo nas casas dos colonos as línguas domésticas eram tupi ou africanas, pois, as amas-de-leite ficavam responsáveis pelo cuidado com as crianças brancas, que aprendiam seus vocabulários. A língua portuguêsa só era empregada na esfera pública – e pelos homens, pois, não esqueçamos, nossa sociedade é patriarcal, de modo que mulheres e crianças faziam parte da esfera doméstica. Na Bahia, se deu algo parecido com o que ocorreu em São Paulo. A influência das línguas africanas era grande na esfera doméstica e foi amplamente encorporada ao português. O que é mais importante pensar, aqui, é que o colonizador português usou o seu poder social para interferir, diretamente, sobre a formação do que viria a ser o povo brasileiro. Excluiu racial e epistemicamente uma parcela significativa das pessoas que estavam na base dessa construção do Brasil. Controlar as línguas é controlar as ideias e pensamentos. Por essa razão, foi uma decisão político-epistêmica deslegitimar e marginalizar as línguas e a capacidade e competência cognitiva dos povos não-brancos. Assim, decidir o que era certo, direto e justo ficaria restrito à esfera do contrato social branco circunscrito ao domínio da língua portuguesa.


Referências

BUARQUE de HOLANDA, S. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

CHARLES W. Mills. The Racial Contract. New York: Cornell University Press, 1997.

CRAIG, E. Knowledge and the State of Nature: an essay in conceptual. Oxford: Oxford University Press, 1991

PESSOA de CASTRO, Y. Marcas de Africania no Português Brasileiro. In. Africanias.com, 2011.

TAVARES, Luís Henrique D. História da Bahia. São Paulo: UNESP, 2008.

WILLIAMS, B. Truth and Truthfulness – An Essay in Genealogy. Princeton: Princeton University Press, 2002.


Notas

[1] Grifo nosso.

[2] Extraí esses fragmentos de uma versão digital da carta de Pero Vaz de Caminha em um sítio na internet: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf em 15/06/2020.

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