O elo perdido de Lima e o(s) parafascismo(s) cotidiano(s)

José Marcelo Siviero

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP); Pós-doutorando em Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR)

03/09/2024 • Coluna ANPOF

O fascismo não é mais gigante e monolítico; agora é pulverizado e múltiplo, e isso faz parte de sua estratégia

Uma noite de domingo abalou a América do Sul e poucos perceberam. Em 5 de abril de 1992, durante uma transmissão em cadeia nacional, o presidente peruano Alberto Fujimori apresenta diante da nação um balanço dos conflitos desencadeados por seu agressivo pacote econômico, o plano que ficou conhecido como Fujishock. Nada que escapasse tanto ao programa neoliberal: fim dos subsídios estatais, restrição de investimentos, descontrole de preços, câmbio flutuante, austeridade fiscal.

Uma pausa para pegar o copo de água ao lado e um gole que afogou a democracia. Através de um autogolpe não tão inesperado (o governo enfrentava o Congresso da República desde o começo do mandato de Fujimori, em 1991, sem maioria e sob forte pressão popular), Fujimori ordena, em nome de supostas “regras de ouro “ com peso legal e legitimidade superior à Constituição vigente, que as Forças Armadas tomassem o país de assalto, ao mesmo tempo em que dissolve “temporariamente” os poderes Legislativo e Judiciário e a Controladoria da República, sob a condição de que o país reorganizasse por completo seu ordenamento jurídico e político, através de uma nova Carta Magna.

Segue-se prisão de jornalistas, juristas, intelectuais, militantes de movimentos sociais e quaisquer cidadãos opositores ao governo. Nada que chocasse tanto a América Latina após uma onda de golpes militares durante três décadas, com a diferença que o regente da quartelada era um civil eleito democraticamente, engenheiro agrônomo e professor universitário medíocre, mas que ganhou fama graças a um programa de debates na televisão peruana, amealhada à custa de muita polêmica.

Façamos três saltos ágeis para diferentes períodos no Brasil. Em 1999, no programa Câmera Aberta, produção independente veiculada pela Band em rede regional e horários locais, o então deputado federal Jair Bolsonaro defende a prisão arbitrária e o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso, prega uma guerra civil para sanear o país e promete um golpe de Estado no mesmo dia em que tomasse posse caso eleito presidente da República. Já em 2014, Bolsonaro afirma que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não “mereceria” o abuso. Em 28 de outubro de 2018 Bolsonaro seria eleito e recrudesceria gradualmente, durante todo mandato, acusações contra o sistema eleitoral brasileiro, especialmente quanto à segurança das urnas eletrônicas ou à imparcialidade do TSE, a ponto de proclamar em live, na paródia de um decreto-lei, que, sem voto impresso, “não haverá eleição”.

Há divergências entre Fujimori e Bolsonaro. Um intelectual civil, reservado e de fala articulada, e um militar reformado, bronco e boquirroto. Um que teve sucesso no autogolpe aplicado rápida e friamente, outro que o preparava de maneira atabalhoada, espalhafatosa, culminando no fracasso do 8 de janeiro de 2023. Fujimori é cerebral, Bolsonaro é passional.

Saltemos a 2024 e assistimos a uma arrancada súbita do coach Pablo Marçal nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo, apesar da escaramuça com o clã Bolsonaro e dos ataques da campanha de Tábata Amaral.

Sinais de que o fascismo atual, preconceituoso, excludente, violento e rasteiro, tão megalomaníaco quanto o clássico, não precisa de marchas sobre Roma ou procissões de tochas em Berlim para ganhar o poder. Não precisa de golpes com tanques nas ruas ou Constituições rasgadas; mais discreto e eficiente, sob a batuta da praticidade do neoliberalismo, trapaceia dentro das leis e atropela os ritos democráticos. Se insurge não para romper o sistema, mas para fechá-lo e endurecê-lo. Exorciza o espírito das leis e conserva apenas a sua letra nua. A roupagem varia: alguns preferem as antigas fardas, outros, como Javier Milei, o collant de super-herói, e nossos candidatos aos parlamentos do Brasil usam o modesto terno de pastor.

O (nazi)fascismo mudou, evoluiu, tornou-se jovem, exercitou-se e mudou seus hábitos de nutrição, enquanto grande parte das esquerdas envelheceu e se acomodou na nostalgia. Antes de gritamos “fascistas não passarão”, devemos colocar o fascismo das fotos em preto e branco no museu e pensar na torrente de parafascismos em suas mutações e particularidades, e sempre no plural, pois a única rubrica sob a qual se podem classificar Trump, Órban, Milei e Marçal é a do medo e da paranoia. E um campo progressista acuado nada faz senão perder eleições e comemorar eventuais vitórias apertadas. Essa(s) onda(s) parafascista(s) se assemelha(m) mais ao regime corporativo de Oliveira Salazar, esse esquecido coadjuvante, do que aos potentados do Eixo.

Parafascismos são minúsculas agressões que ocorrem no dia a dia, normalizadas. É o discurso raivoso que “escapole” em pequenas frases, breves e secas. É um rosnado que raspa a garganta, o olhar de esguelha. É todo uma ramagem de fanatismos, desejos violentos, preconceitos e temores que se entrelaça, e, não raro, praticam a autofagia com a mesma frequência que a endogamia. Algo que se constrói gradualmente e se tempera até com esclarecimento, tolerância, cortesia, formação e pedantismo. Muitas coisas diferenciam o radicalismo de um religioso do de um terraplanista, o de um rentista ambicioso para um militarista, de um monarquista para um ruralista, e que não há espaço suficiente aqui para desvendar todas os detalhes. Algo que se fragmenta para aumentar a própria força e multiplicar a presença ostensiva.

Uma matriz instalada no tecido social que nos torna, mencionando Adorno, toda uma milícia massificada de “guardas da esquina”, sem cadeia de comando ou estado-maior. O preenchimento completo dos caracteres expostos n’A Personalidade Autoritária. Há um medo irracional, um complexo de estereotipias e a transferência desse fluxo de pulsões para um inimigo imaginário, que é mais espelho do que inimigo. Como Fujimori e o Sendero Luminoso, Milei e a casta e Bolsonaro e “tudo que está aí”.

Dentro da mesma matriz, há um retrocesso ou recuo de toda a sociedade perante as contingências históricas que abalam os grupos humanos e o conduzem a mudanças drásticas de comportamento, valores e culturas; e, longe de encontrar aí um terreno propício para novas modalidades da práxis, surge um medo do novo que galvaniza, segundo Merleau-Ponty num célebre e preciso comentário político, toda uma coleção de ideias envelhecidas e obsoletas, colocando-as, ainda que anacrônicas e caricatas, na ordem do dia. Não é à toa que a ditadura de Fujimori buscou refúgio entre os evangélicos pentecostais, transformando-os numa força política até hoje atuante no Peru, e que todos os espectros da direita brasileira trazem consigo um imaginário velho, composto não só de teocratas neopentecostais de tendência sionista, mas também adeptos da monarquia, integralistas, tecnocratas, oligarcas, militaristas e tudo que possa oferecer, ilusoriamente, a imagem do passado feliz. Galvanização medrosa esta que paralisa até o campo progressista.

O mesmo Merleau-Ponty nos advertirá, numa lição que merece ser repetida até que se aprenda e se pratique, que “a queda não é pois um acidente, as causas têm cúmplices em nós. Há igual fraqueza em atribuir as culpas só a si mesmos e em acreditar só nas causas exteriores [...]. O mal não é criado por nós ou por outros, nasce nesse tecido que tecemos entre nós e nos sufoca” (Signos, p. 37). Há que se entender, portanto, que o(s) parafascismo(s) nasce(m) em ambiente que lhe é propício e onde há alimento, e que necessariamente precisa de cúmplices. Impossível também não relembrar Étienne de la Boétie, quando diz que o tirano só o é porque os tiranizados lhe conferem o poder, e entre esses mesmos oprimidos há um desejo de também se tornarem tiranetes e desfrutar de um fiapo do mesmo poder. E assim surgem os fãs de bilionários, generais e coaches...

É preciso penhorar a inocência para que se possa construir um futuro em que ela volte a ser viável, endurecer colocando a ternura em custódia temporária. Urge subir o tom e não temer dobrar as apostas. Nem sempre o amor vence no campo político. E terminar a escavação dessas ruínas peruanas antes que o esquecimento soterre os monolitos de Lima.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.