O Ensino de Filosofia em tempos da Caverna Digital

Valéria Cristina L. Wilke

Professora de Filosofia (UNIRIO); Integrante do GT Filosofia e Gênero

Gilberto Miranda Júnior

Mestrando em Filosofia no PROF-FILO/UFABC

16/05/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil)
GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof

Poucos teriam coragem de discordar da força e do alcance da filosofia de Platão para a história do pensamento humano. Seja pela influência de seu pensamento na construção da própria ocidentalidade, seja pela pertinência dos temas que abordou, a filosofia platônica figura, ainda hoje, como uma das mais importantes dentro do que os seres humanos produziram em diferentes cenários históricos e geográficos.

Uma das mais emblemáticas passagens literárias da história da filosofia ocidental é a construção alegórica que Platão apresentou no Livro VII de A República, equivocadamente chamada de Mito da Caverna por muitos, na qual o filósofo grego ilustrou os principais argumentos que compõem seu livro, o que proporcionou que essa alegoria desempenhasse um papel central. A partir dela, Platão disponibilizou uma lente para examinar a natureza da percepção, a distinção entre ilusão e realidade, discorreu sobre epistemologia, sobre educação e considerou, ademais, o caminho a ser percorrido em busca do conhecimento.

Para a reflexão que propomos, não importa se, de fato, são formas puras que determinam nossa experiência da realidade, ou mesmo se é possível, racionalmente, alcançar e participar de sua natureza perene e estruturante, pois o que nossa experiência cotidiana nos mostra, mesmo diante da mais incipiente investigação, é que aquilo que se apresenta a nós, aquilo que é aparente a nossos sentidos, à nossa percepção e, posterior, entendimento, é basicamente moldado por camadas que não estão visíveis ou perceptíveis a nós em um primeiro momento. Para dar conta dessa questão, Platão desenvolveu um instrumental teórico sobejamente conhecido, cujas considerações fogem ao escopo desse texto. Entretanto, essa problematização sobre o que nos é aparente e a natureza diversa daquilo que determina a forma dessa aparência permanece para nós como uma das grandes questões filosóficas, tanto dos tempos de Platão, quanto, substancialmente, de nosso tempo. Depois dele, variados diagnósticos da realidade foram elaborados, em diferentes contextos, visando dar conta, justamente, do entendimento da relação com a realidade historicamente construída em que vivemos.

Quando miramos, por exemplo, no advento do capitalismo no moderno ocidente, identificamos que o ser humano se viu diante de determinadas figurações que passaram a engendrar subjetividades, crenças e formas de ser que nos tornam cativos no interior de estruturas de poder, obliterando nossa compreensão das circunstâncias que se apresentam de forma naturalizada à nossa percepção. Uma vez que as diferentes camadas que determinam os processos de percepção e de compreensão da realidade constituem-se, segundo Platão, objetos de investigação da Filosofia, hoje permanece a exigência de que a Filosofia e, principalmente, seu Ensino, lancem olhares dirigidos para investigar a integralidade da forma como existimos. Se defendemos que o Ensino de Filosofia seja fundamental para o cumprimento da Lei de Diretrizes de Base, que prevê a formação para a cidadania e a preparação ao mundo do trabalho, ele também precisa ser assegurado para a concretização da formação integral do ser humano. Nesse sentido, torna-se imprescindível que sua atuação, no interior da escolarização básica, questione e problematize essas camadas e estruturas ocultas.

Hoje, potencialmente mais do que em todas as épocas, o ocultamento das estruturas decisórias e de manutenção de poder e das formas de conhecer, de produzir e reproduzir a vida, parece caracterizar inelutavelmente nosso tempo. A forma como o avanço tecnológico, no cenário do capitalismo neoliberal, tem moldado nossa percepção e a forma como vivemos, proporcionou a criação de uma verdadeira Matrix que funciona, virtual e objetivamente, à semelhança da caverna platônica, a Caverna Digital, panorama na qual vemos emergir novas formas de viver como, por exemplo, uma nova governamentalidade, a algorítmica.

Pedagogicamente, a alegoria platônica da caverna cai como uma luva para compreendermos todo o mecanismo opaco dos algoritmos que passou a comandar nossa existência. Cada vez mais, testemunhamos que a existência das pessoas, interconectadas pelos diferentes nós das plataformas e redes digitais, acha-se, em crescente medida, determinada por essa estrutura invisível que visa determinar, sub-reptícia e subjetivamente, quais decisões devemos tomar, o que pensar, o que reconhecer como verdadeiro. No horizonte da digitalização, o modelo econômico vigente na dataficação (Zuboff, 2021, Silveira et. al. 2021, Poell, Nieborg & Dijck, 2020) está engendrando novas formas de experiência vivencial em que os algoritmos exponencialmente moldam nossos gostos, preferências e percepções sobre a realidade. B. Chul Han, ao abordar o tema da caverna digital (2022), indicou que ela consiste em um ambiente digital no qual cada indivíduo interconectado acha-se acorrentado a sua própria tela, tal como a de um celular, que o aprisiona por meio da imersão em fluxos incessantes de informações que objetivam, mais do que informar, aprisioná-los em imagens técnicas digitais que embriagam a todos. As correntes que prendem os prisioneiros, impedindo-os de se mover e virar a cabeça, forçando-os a olhar apenas para o fundo da caverna onde veem somente sombras, estão, inequivocamente, representados pelo design viciante dos frontends dos aplicativos, seus feeds infinitos, notificações intermitentes invasivas e nos algoritmos de engajamento, que aprendem nossas preferências para nos bombardear de conteúdos que nos chamam a atenção e que dificultam a saída ou a mera busca por diversidade que esteja para além das bolhas informacionais (câmaras de eco).

 Essa nova roupagem da caverna platônica funciona, pois, como um mecanismo de controle psicopolítico: a partir da manipulação algorítmica da informação e  da consciência, que promove o aprisionamento dos indivíduos na ilusão da liberdades, os novos prisioneiros se submetem voluntariamente à vigilância e à modulação constante de suas opiniões e escolhas. Consequências desse cenário aparecem em diagnósticos de como esse fato tem, dentre outros aspectos, (i) comprometido profundamente a liberdade humana e a constituição de uma esfera pública democrática; (ii) alavancado a ascensão de grupos de extrema-direita acentuadamente nazifascistas escorados pelo apoio dado mundialmente por grandes segmentos populacionais; (iii) criado as condições materiais para a vigência de um novo tipo de governança, a governamentalidade algorítmica (Rouvroy & Berns, 2013), conceito que descreve como algoritmos e sistemas digitais passaram a exercer formas de controle social, regulando comportamentos, tomando decisões e moldando subjetividades, e muitas vezes substituindo ou complementando mecanismos tradicionais de governo, ou seja, como as empresas de Big Data e governos utilizam algoritmos para gerir populações de maneira automatizada e, no mais das vezes, opaca; (iv) produzido uma epidemia de desinformação como projeto infocomunicacional de grandes setores econômicos corporativos e governamentais.

Hoje, portanto, não é apenas necessária a problematização dessas questões na escola básica: tornou-se, isso sim, imprescindível. A própria BNCC orienta para que os e as estudantes sejam preparados para viverem na cultura digital, cada vez mais mediada pelas tecnologias e redes digitais, destacando que a abordagem não se limita ao uso instrumental de ferramentas digitais, mas visa à compreensão crítica, ética e criativa dessas tecnologias na sociedade. Ademais, em 2023, o governo federal sancionou com vetos a Lei 14.533, criando a Política Nacional de Educação Digital (PNED), com o objetivo de incrementar recursos e práticas digitais voltadas para o acesso e o trânsito autônomo e responsável das cidadãs e cidadãos brasileiros pelas infovias, privilegiando as populações mais vulneráveis, sendo que um dos eixos está orientado especificamente para a educação digital escolar. Assim, o papel de professores de filosofia da Educação Básica se torna fundamental, na medida em que a crítica sobre estruturas de poder e da própria percepção da realidade são próprias da investigação filosófica. Por outro, o ensino de filosofia pode proporcionar o espaço para a discussão filosófica de vários temas que atravessam a cultura digital.

Urge também que, no Ensino Superior, os departamentos de Filosofia e as coordenações das licenciaturas se comprometam com o fornecimento da formação adequada que inclua temas como os relatados acima, ao compreenderem a “importância de abrir espaço, no período formativo, para a discussão de temas relacionados ao mundo digital, à cultura digital, à ética informacional e aos direitos e cidadania digitais. [...] "Essa sugestão não se deve apenas à satisfação da exigência legal dos balizamentos das políticas educacionais, mas para continuar sendo ouvido o convite milenar da Filosofia que é o de discutir na praça pública, de modo compartilhado e dialógico, os problemas do seu tempo" (Wilke, 2024, p. 387). Para além da crítica à plataformização do ensino ou às fakenews, torna-se necessário entender, de forma mais ampla e profunda, a própria realidade social e ontológica em que todos nós estamos imersos. Educar para essa complexidade é o grande desafio, pois os algoritmos estão nos moldando a uma simplificação grosseira e uma verticalização fragmentada baseada em perfis, o que tem facilitado, em muito, a ascensão da extrema-direita no mundo em sua proposta tutelar autoritária e hierárquica.


Referências bibliográficas

HAN, Byung Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Petrópolis: Vozes, 2022.

PLATÃO. A República. Tradução: Ingrid Cruz de Souza Neves. Brasília: Kiron, 2013.

POELL T., NIEBORG, D, DIJCK, José van. Plataformização. Fronteiras – Estudos Midiáticos.. São Leopoldo, v. 22, n. 1, jan./abr 2020.

ROUVROY, Antoinette; BERNS, Thomas. Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação?. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. (Coleção Estado de sítio). p. 107–139.

SILVEIRA, Sérgio Amadeo, CASSINO, J.F., SOUZA, Joyce (org). Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

WILKE, Valéria C. L. Cidadania e Soberania digitais para o uso emancipador das tecnologias digitais no Ensino de Filosofia: Politizar as tecnologias. PROBLEMATA- International Journal of Philosophy, v. 15, n.1, 2024.

ZUBOFF, Shoshana. Big Other: Capitalismo de Vigilância e Perspectivas para uma Civilização de Informação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. (Coleção Estado de sítio). p. 17–68.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.