O espectro de Descartes assombra os engenheiros e entusiastas da "inteligência artificial"

Claudinei Luis Chitolina

Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor de Filosofia da Unespar - PR.

09/05/2023 • Coluna ANPOF

A racionalidade técnica (instrumental) representa no mundo contemporâneo a forma hegemônica de pensamento, uma vez que os meios técnicos importam mais que os fins de nossas ações. Porém, tal concepção de racionalidade já fora criticada pelos teóricos da Escola de Frankfurt (sobretudo, por Adorno, Horkheimer e Marcuse) – que identificaram nesta forma de racionalidade a redução do pensamento ao cálculo utilitário – o que implica negar ou relegar a razão crítico-reflexiva a um segundo plano. Para estes autores, a racionalidade técnica é expressão do desejo de poder, porque opera segundo a lógica da manipulação simbólica e da dominação (do homem sobre o homem e do homem sobre a Natureza). Por isso, não se pode compreender os avanços técnicos desvinculados de seus compromissos econômicos e ideológicos. Cooptada pelo capital, a técnica em seu atual estágio de desenvolvimento capturou e instrumentalizou a razão, a fim de colocá-la a serviço do capital e dispensar o homem da tarefa de pensar. A invenção de novos artefatos técnicos visa transferir habilidades de pensamento para as máquinas como se o pensamento fosse redutível a uma operação de lógica matemática ou computacional. Ou seja, muitas funções mentais são agora operacionalizadas por máquinas, i.e., a automatização da inteligência parece ser possível.

Recentemente, esta forma de racionalidade foi reintroduzida oficialmente no processo educacional em nosso país pela reforma do Novo Ensino Médio sob nova roupagem semântica – pensamento computacional – sinônimo de inteligência, modernidade e de progresso tecnológico. Apresentada como panaceia para os males da educação brasileira, a racionalidade técnica e sua ideologia conservadora constituem o eixo central da reestruturação das matrizes curriculares das escolas brasileiras do Novo Ensino Médio, tal como aparece nos documentos oficiais e nas publicações didáticas e paradidáticas. 

De modo ainda mais preocupante é o fascínio e o deslumbramento causados pela divulgação na grande mídia das potencialidades tecnológicas das novas ferramentas de “inteligência artificial”. O ChatGPT (Chat Generative Pre-trained Transformer), p.ex., é um robô virtual – que parece ser capaz de ler, falar, escrever (produzir textos, pintar quadros, compor músicas e poesias)  – funções cognitivas que até então, eram prerrogativas dos seres humanos. Para os arautos das IA, os emergentes avanços tecnológicos atestam não só que as máquinas pensam (e que o homem é capaz de criar uma réplica de si mesmo) uma vez que executam tarefas que quando executadas pelos seres humanos requerem pensamento, mas que estamos próximos do dia em que as máquinas ultrapassarão a inteligência humana e se tornarão superinteligentes (hipótese da singularidade tecnológica). 

Ora, é incontestável que a revolução tecnológica alterou as condições de existência do homem contemporâneo, de tal modo que parece impossível realizarmos determinadas tarefas sem os recursos técnicos de que hoje dispomos. A tecnologia digital transformou não apenas a forma de trabalhar e produzir, a forma de se comunicar (falar, ler e escrever) e de aprender, mas nossa forma de pensar – de viver e de agir. Fruto de descobertas e de avanços científicos, os novos inventos técnicos estão moldando nosso pensamento e mediando nossas ações. Porém, tais fatos suscitam complexas e controversas questões filosóficas que não podem ser ignoradas. Pergunta-se: será a tecnologia uma ferramenta intrinsecamente neutra (livre de juízo de valores) – produto do progresso civilizatório ou um instrumento ideológico de dominação? A técnica é por natureza ambivalente – depende tão somente do uso de que dela fazemos ou é concebida e gestada para determinados fins ou propósitos? Poderá a técnica elevar a humanidade a um estágio superior de desenvolvimento civilizatório? Será o pensamento computável – redutível a um cálculo e passível de replicação artificial? É possível mecanizar ou automatizar as operações da inteligência? É legítimo falar de “inteligência artificial” ou deveríamos falar de simulação artificial da inteligência? Em que medida nossa maneira de pensar e de agir são dependentes da técnica? É a mente uma máquina digital? Pode uma máquina pensar? Pensar é o mesmo que calcular e computar? Que espécie de pensamento é o cálculo? É possível reduzir o pensamento a uma operação matemática (de cálculo)? Computadores e computação são a mesma coisa? A mente é uma máquina? Quais são as possibilidades e os limites da lógica computacional? 

Ora, a teoria cartesiana da mente sustenta que a capacidade de pensar não pode ser extraída do poder da matéria. O corpo (a res extensa) tem como propriedade a extensão e o movimento, ao passo que a mente (a res cogitans) tem como propriedade o pensamento. A mente não funciona segundo as leis da mecânica, porque é de natureza imaterial. A descoberta do cogito constitui, neste sentido, uma vigorosa tese metafísica (inverificável do ponto de vista experimental) segundo a qual todo pensamento pressupõe um sujeito (eu) que pensa. Na Quinta Parte do Discurso do método, Descartes apresenta argumentos e evidências empíricas para mostrar a diferença que existe entre a mente e as máquinas (os autômatos naturais e artificiais). Os autômatos são capazes de proferir ou pronunciar palavras, mas são incapazes de falar – de compor livremente frases e discursos, porque não pensam (não entendem o que dizem). Descartes acrescenta que os autômatos também são incapazes de agir ou de tomar decisões livres, porque não são dotados de vontade ou de liberdade; ao contrário, operam segundo mecanismos pré-determinados (as leis da mecânica), por isso, são artefatos técnicos especializados, enquanto a razão humana (o intelecto e a vontade) é universal ou indeterminada em suas capacidades. Descartes se depara com um problema filosófico que consiste em distinguir seres pensantes (inteligentes) de seres que parecem pensar – que imitam ou simulam o pensamento e o comportamento humano. Para o filósofo francês, as máquinas são constituídas tão somente de matéria, por isso, há um abismo intransponível – uma diferença de natureza entre homens e máquinas. Contudo, a teoria cartesiana da mente foi alvo de inúmeras objeções desde o século XVII, porque segundo seus objetores, tal concepção abriga inconsistências lógicas e constitui um obstáculo teórico irremovível para as ambições de filósofos, cientistas e engenheiros que pretendem estender o materialismo mecanicista das redes neurais para a compreensão do funcionamento da mente. Porém, no afã de querer demonstrar possíveis equívocos da teoria cartesiana da mente, teóricos anticartesianos de variadas tendências se viram embaraçados em novas dificuldades (supostamente insanáveis) – o que denota que o problema mente-corpo formulado por Descartes não foi superado, mas ignorado. Neste sentido, a emergência, os avanços e as implicações (sociais, políticas, econômicas, educacionais) das ferramentas de “inteligência artificial” tornaram Descartes um filósofo atual e incontornável – capaz de servir de contraponto às tentativas teóricas e técnicas de replicação artificial da inteligência e às tentativas de estender a inteligência a todos os seres existentes. 

Assim, diante da irrefreável tendência de substituição do homem pelas máquinas digitais na execução de tarefas consideradas especificamente humanas, o interdito cartesiano (é impossível reproduzir artificialmente a inteligência) parece superado. Ora, se, por um lado, a expressão “inteligência artificial” ganhou repercussão na grande mídia e alcançou o grande público, é porque se busca fabricar um consenso acerca da possibilidade de se replicar artificialmente as operações intelectuais em toda sua extensão e complexidade. Por outro lado, a cooptação ideológica de intelectuais e pesquisadores por parte de empresas de tecnologia visa referendar a crença na “inteligência artificial” por meio de argumentos controvertidos do ponto de vista filosófico e científico. Em termos cartesianos, somente um conceito deficitário ou equivocado de inteligência poderia  se contrapor à ideia de que a capacidade de pensar pressupõe uma mente (um sujeito que pensa). Se, de fato, o pensamento pudesse ser reduzido à manipulação de símbolos  (ou à computação), então o modelo computacional de mente seria não só capaz de produzir pensamentos, mas de explicar a natureza e o “funcionamento” de nossa mente. Porém, a mente não é uma máquina. 

Sob a perspectiva cartesiana, os autômatos – as supostas máquinas pensantes (inteligentes) não são sistemas autônomos – dotados de inteligência, subjetividade, liberdade (criatividade) e consciência – condição sine qua non para que haja pensamento. Embora pareçam pensar, as máquinas eletrônicas ou digitais (computadores e robôs) não pensam, apenas imitam o pensamento. A simulação de funções cognitivas pelas máquinas não se identifica com o pensamento. Os dispositivos de “inteligência artificial” funcionam segundo a lógica computacional implantada em programas (algoritmos) operacionais. O treinamento bottom-up das ferramentas de “inteligência artificial” poderia ser visto como uma evidência a favor da “aprendizagem de máquina”, mas é determinado em última instância por um aprendizado top-down, i.e., por uma programação implícita (pré-programada), o que evidencia a ausência de inteligência. Neste sentido, a denominada “aprendizagem de máquina” (machine learning) é um treinamento por reforço – que é o contrário da verdadeira aprendizagem humana. Por isso, a ideia de uma máquina inteligente revela-se uma contradictio in terminis. Para Descartes não é possível separar o pensamento do sujeito que pensa (da inteligência). Pensar significa conceber, entender, compreender, imaginar, querer e sentir. Por isso, em Descartes encontramos uma crítica avant la lettre à tentativa de instanciar e replicar a inteligência em autômatos, de tal maneira que a discussão contemporânea acerca da (ir)reprodutibilidade técnica ou artificial da inteligência não pode ignorar os limites intrínsecos dos autômatos demonstrados por Descartes. 

DO MESMO AUTOR

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Claudinei Luis Chitolina

Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor de Filosofia da Unespar - PR.

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